São 127 poemas de 44 autores, como Carlos Drummond de Andrade, Caio Fernando Abreu, Hilda Hilst, Lúcio Cardoso e Angélica Freitas

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Poesia gay é ficção de gays e simpatizantes? Para a poesia, quanto menos complementos e penduricalhos — opa! —, melhor. Na verdade, o que importa mesmo é se a poesia é de qualidade. A poesia do americano-inglês T. S. Eliot e do brasileiro Carlos Drummond de Andrade é heterossexual? Talvez seja. Mas críticos qualificados a examinam deste ponto de vista? Não. Amanda Machado e Marina Moura organizaram o livro “Poesia Gay Brasileira — Antologia” (Machado e Amarelo Grão, 287 páginas). A epígrafe menciona Safo de Lesbos (620 a. C.): “Como escolher? Sou uma só e os desejos, dois”. O que resulta? O livro é excelente. Dado o acoplamento do termo “gay”? Independentemente da temática, a obra se sustenta, fica de pé.

Estaria eu implicando com a homossexualidade, com a alegria de ser diferente do que se costuma tratar como regra, como coisa normativa? Não. A poesia da antologia, mesmo a desbragadamente gay, tem qualidade, até alta qualidade. O registro da diferença, em tom divertido ou não, revigora a tese de que uma democracia verdadeira é inclusiva não apenas política e socialmente. Deve e precisa incluir as variedades da sexualidade humana. Pode-se dizer que o amor — ou a paixão, que talvez seja a radicalização e, mesmo, o destempero do amor — não tem sexo? A frase ganha interrogação porque, além de não poética, não é verdadeira. O amor tem sexo — só que múltiplos, variados.

Toda forma de amor vale a pena — desde que os parceiros sejam livres e o relacionamento não seja forçado, que os indivíduos não se sintam violentados. O prazer tem a ver, necessariamente, com amor? Não. O prazer sexual não é irmão gêmeo do amor. Assim como pode haver sexo sem amor, é possível amor sem sexo. Parece evidente que amor com sexo e sexo com amor são os caminhos mais buscados. Mas as pessoas escolhem suas próprias maneiras de condutas sexuais, são menos, na prática, normativas e padronizadas do que eventualmente sugerem ou nós imaginamos. O sexo cria uma liberdade rara para os indivíduos — deixando-os livres para a fantasia, para o despudor, para o que é mas não é dito.
Se o leitor me perguntar: “Que nota daria ao livro?” Não há como não dar nota 10 — pela qualidade da poesia, inclusive, por assim dizer, de seu sexo. Sim, a poesia é vigorosa quiçá por ser impregnada da energia da sexualidade, que, agora, ousa dizer seu nome. A obra resgata uma “falta” — diria uma “falha” — na cultura patropi. É o registro de outras vozes, que, incorporadas, deixam de ser, quem sabe, “malditas”. E, afinal, maldita deve ser a violência — não o prazer, ou melhor, os prazeres. A poesia fica mais rica quando inclui — e, no caso, não incorpora como igual, e sim como diversidade (não há uma unidade rigorosa entre as poéticas arroladas em “Poesia Gay Brasileira”) — e não discrimina.

As organizadoras mencionam a coletânea “Poemas do Amor Mal­dito”, organizada por Gasparino Damata e Walmir Ayala, em 1969 — nos tempos do AI-5. Seria “a primeira antologia de poemas gays do Brasil”. Entretanto, como os autores não explicitam a temática gay, quiçá devido aos anos de chumbo, Amanda Machado e Marina Moura sugerem que a obra recém-lançada, que sai efetivamente do armário ao falar “do amor entre pessoas do mesmo sexo”, é a “primeira antologia de poemas gays brasileira”. O livro contém 127 poemas de 44 autores. “Do século 19 até a chamada contemporaneidade.” As editoras esclarecem que alguns dos poetas não são homossexuais.

Alguns dos poetas: Ales­sandra Safra, Amador Ribeiro Neto, Aymmar Rodruguéz, Beatriz Regina Guimarães Barboza, Cassandra Rios (cita Safo), Hanna Korich, Hilda Hilst, Ítalo Moriconi (o crítico literário e organizador de antologias surpreende como bom poeta), Junqueira Freire, Lau­rindo Rabelo, Lúcio Cardoso (trecho de “Receita de homem”: “Depois deve ser alto,/sem lembrar o frio estilo da palmeira./Moreno sem excesso para que se encontre/tons de sol de agosto em seus cabelos./E nem louro demais para que, de repente, no olhar cintile algo de cigana pátria adormecida./E que tenha mãos grandes, para demorados/carinhos/e adeuses que se retardem ao peso do próprio/gesto./Pés grandes, também, porque não,/para que os regressos sejam breves”), Mário de Andrade, Mário Faustino, Neil de Castro, Renata Pallottini, Roberto Piva, Simone Teodoro, Walmir Ayala.

A poesia de Angélica Freitas dialoga, de maneira bem-humorada, inovadora e mimética (às vezes, para divergir) com outros campos da arte, como a música (“Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago) e a literatura. Trecho de “Alcachofra”: “amélia que era a mulher de verdade/fugiu com a mulher barbada/barbaridade/foram morar num pequeno barraco/às margens do rio arroio macaco/em pedra lascada, rs//primeiro a solidão foi imensa/as duas não tinham visitas/nem televisor/passavam os dias se catando/pois tinham pegado piolho/e havia pulgas no lugar//‘somos livres’ dizia amélia/e se atirava no sofá/e suspirava/a mulher barbada também suspirava/e de tanto suspirar/já estava desesperada”. Como se trata de uma poesia quase-conto, paro aqui e deixo ao leitor as delícias de conferir as artes “desquilibrantes” da poética de Angélica Freitas — inventiva, sobretudo adiante do que transcrevi aqui. Há a perícia dos que andam sobre areia movediça e não afundam. Porque são leves.

“Epílogo”, da mesma Angélica Freitas, menciona a escritora americana Gertrude Stein, modernista antes de alguns modernistas — a brasileira mimetiza: “gertrude stein era gertrude stein era gertrude stein”, tudo em minúsculas, como e. e. cummings —, a cantora e bailarina Josephine Baker, a escritora Djuna Barnes, Ezra Pound (citado apenas como Ezra), e a poeta envolve-se na história: “eu era alice e djuna era josephine” (Alice B. Toklas era a amante de Gertrude Stein, a amiga de Picasso e Hemingway). Não resisto a publicar o fecho — o que acho que posso fazer ao não revelar o entrecho: “lésbicas são um desperdício ele disse/você já ouviu falar em Mussolini?” Pois, com sua rara habilidade em manejar as palavras, como se fossem fios invisíveis que, tecidos, se tornam visíveis, Angélica Freitas parece nos dizer: Ezra Pound, o notável poeta, crítico e editor — copidescou tanto o Eliot do poema “Terra Devastada” quanto o Joyce do romance “Ulysses” — era fascista, adepto de Benito Mussolini, o horror o horror o horror, era, neste caso, um desperdício, não as lésbicas.

Divirto, rio e meu cérebro ativa-se com o poema “Na banheira com gertrude stein”. Angélica Freitas deveria ser “denunciada” como escravagista das palavras. A poeta faz o que quer com suas servas e usa e abusa do mundo da cultura, extraindo diamante novo de minas às vezes abandonadas. Anote: Angélica Freitas, jovem de 45 anos, é brilhantíssima. Foi e irá mais longe…

O poeta e filósofo Antônio Cícero comparece com “Onda”, que merece transcrição completa: “Conheci-o no Arpoador,/garoto versátil, gostoso,/la­drão, desencaminhador/de sonhos, ninfas e rapsodos.//Contou-me feitos e mentiras/indeslindáveis por demais:/eu todo ouvidos, tatos, vistas,/e pedras, sóis, desejos, mares.//E nos chamamos de bacanas/e prometemo-nos a vida:/Comprei-lhe um picolé de manga//e deu-me ele um beijo de língua/e mergulhei ali à flor/da onda, bêbado de amor”. O que renova a forma paradoxalmente, neste poema de delícias e subentendidos que, a rigor, são inteligíveis, é o conteúdo, o manejo delicado, ainda que sugira aspereza, das palavras. Frise-se: o conteúdo, e como é expresso, o que é forma, retira seu caráter à primeira vista formalista.

O indefectível Caio Fernando Abreu, com o poema “Obsceno”, grita presente. É mais direto do que a maré de Antônio Cícero, e há certa perícia. Trata-se de um poema que o começo é o fim e o fim é o começo. Um labirinto de prazeres. Trecho: “todos os homens que nunca serão meus/passam/e passam e seguem a passar sobre meu corpo/ardido como as pedras da rua quando bate forte/um sol de dezembro em pleno meio-dia/to­das as tardes/amém”.
“Rapto” é apontado como o único poema de Carlos Drummond de Andrade no qual a homossexualidade se faz presente. Há mesmo um espírito gay na poesia? Tudo indica que sim, mais explícita no seu final: “outra forma de amor no acerbo amor”.

No poema “O ritmo”, Francisco Bittencourt cria um diálogo, digamos, entre o sexo e a poesia (as palavras devorando palavras, por certo; até o poema é fornicado), com suas variedades: “O ritmo para ao meio, quer se entregar,/mas muda o tema./O cérebro domina a emoção./O racional, o porquê domina./Isso não é nunca poesia. A poesia é a poesia./Só pode parecer à entrega, a um coito./Quando os pelos-versos se tocam há uma descarga/elétrica”. Adiante, no mesmo poema, assinala: “É o ritmo. Esse ritmo é o poema sendo fornica­do./Entre milhões de tentativas uma foda é divina,/igual ao nascimento de um poema”. Terei de pedir desculpa ao moralismo pelo uso de uma palavra não-canônica em jornal. Pedirei, um dia — não agora.
Recomendo os poemas de Glauco Mattoso, que parecem verbosos, dado o aparente forçar das palavras, mas há uma contenção que tanto diverte quanto enreda o leitor. O não politicamente correto, no poema “O cauto causo do jogo do jugo”, pode chocar, mas é de primeira linha.

Glória Horta ousa a partir do título, “Poema gay”: “O falo é um fardo/o corpo, a farda da farsa,/e eu sou o grito, o berro, o urro, o erro/minhalma é uma menina e meu corpo uma mentira/mentira//não sou homem nem mulher/um ser que sobra e falta e desencontra/num mundo diferente de todos os mundos”. Antes que você se encante ainda mais com o belo (e doloroso) poema, corto, como um diretor de cinema, e recomendo a leitura completa de suas palavras cortantes… no livro.

“Julieu e Romito”, de Horácio Costa, exibe a perícia de um grande poeta: “Não sabemos o que é o amor:/Se o vivemos, logo o desprezamos/E se não, o desejamos”. O bardo acrescenta: “Sobre o amor no mesmo sexo/De pares literários, quase nada:/Não se terão amado homens//E mulheres entre si?”

Os poemas são, por vezes ou sempre, safados? São. No geral, são belíssimos.

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