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[Resenha publicada no Jornal Opção em 22 de agosto de 2012]

“Brasil em Alta — A História de um País Transformado” (Geração Editorial), do repórter do “New York Times” Larry Rohter, é um balanço da história do Brasil, incluindo uma análise de sua cultura. Dado o número de páginas, 392, o autor deixa de citar músicos, artistas plásticos e escritores importantes, mas, ao exclui-los, não deixa de incluir autores menores. Assim, o problema não é só de espaço, e sim de escolha.

Larry Rohter começa bem: “Machado de Assis é para a ficção brasileira o que Mark Twain é para a literatura estadunidense: o modelo, pedra de toque e fonte para definir um estilo nacional; descobridor e desenvolvedor de uma temática genuinamente nativa”. Não tem nada de errado. Machado de Assis é mesmo o Jesus Cristo da literatura do país, mas por que nenhuma menção ao esforço de José Alencar para escrever uma literatura nacional? E por que não aproximar o autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de Henry James, quiçá o Machado de Assis americano — ambos mestres da ambiguidade?

Machado de Assis: o maior escritor brasileiro | Foto: Reprodução

Machado de Assis é apontado como “o maior artista literário negro até hoje”, e aqui Rohter está citando Harold Bloom. Susan Sontag, mencionada pelo repórter, sem usar o (redutor) termo “negro”, disse que o autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro” — dois romances que valem uma literatura nacional (e até multinacional) — é “o maior escritor já surgido na América Latina”. Acima do argentino Jorge Luis Borges, acrescenta Larry Rohter. O americano Philip Roth trata o criador de “Quincas Borba” — na verdade o comentário foi feito a partir da leitura de “Brás Cubas”, que o teria inspirado — como “um grande ironista, um comediante trágico” que “sublinha o sofrimento fazendo-nos rir”. Compara-o a Samuel Beckett, deixando de citar, o que seria mais apropriado, o irlandês Laurente Sterne. O poeta americano Allen Ginsberg nota o autor de “O Alienista” como o “outro Kafka”. Larry Rohter não cita dois críticos que fizeram muito pela aceitação de Machado de Assis no exterior — o inglês John Gledson (ás também sobre Drummond) e o francês Jean-Michel Massa (autor da estupenda biografia “A Juventude de Machado de Assis”).

Depois de Machado de Assis, ganha espaço a Semana de Arte Moderna de 1922, apontada como um divisor de águas. Mário de Andrade, “talvez o intelectual e crítico brasileiro mais brilhante do século 20”, é valorizado pelo romance “Macunaíma” (sua poesia é esquecida). “Usando uma linguagem embutida de locuções populares e indígenas em vez de português castiço ‘Macunaíma’ narra as desventuras de um índio, ‘herói sem nenhum caráter’, mas mesmo assim ‘o herói de nossa gente, nascido no mato-virgem e filho do medo da noite’, à medida que ele viaja da zona rural para São Paulo e Rio de Janeiro e volta.”

Jorge Amado: escritor baiano | Foto: Reprodução

Excluindo Oswald de Andrade (não sei por que, fiquei um pouco contente com isto, embora saiba que estou errado, assim como o repórter), Larry Rohter salta para Jorge Amado, que, segundo o crítico, “aprofundou ainda mais a noção de uma literatura genuinamente brasileira, baseada em temas e linguagem extraídos das ruas”. Um provável equívoco do crítico: “Graças a filmes de sucesso baseados em seus romances ‘Dona Flor e Seus Dois Maridos’ e ‘Gabriela, Cravo e Canela’, ele é também célebre fora do Brasil”.

Jorge Amado era célebre no exterior antes dos filmes, graças, possivelmente, à sua prosa luxuriante, à sensualidade das personagens e à publicidade intensa feita pelos comunistas. Comunistas que parecem nunca ter compreendido direito sua obra.

Carlos Drummond de Andrade: poeta mineiro | Foto: Reprodução

Larry Rohter acrescenta: “Os críticos de Amado, e existem muitos, reclamam que ele favorece um exotismo romântico em detrimento do realismo social, mas não há dúvida de que a sua obra abrange vários tipos sociais reconhecíveis e também explica a influência de crenças e costumes africanos na sua visão de mundo e valores”.

Há acertos e problemas. A crítica a Jorge Amado não é à falta de “realismo social” — pelo contrário, sempre apontaram o seu exagero na questão social, chegaram a tachá-lo de adepto do realismo socialista (um equívoco, em parte, mas não no todo) —, e sim à sua linguagem não muito elaborada, à sua prosa às vezes frouxa e excessiva. Mas Jorge Amzdo é o carnaval dos escritores — um símbolo do Brasil, diferentemente de Machado de Assis, que bem poderia ser qualificado como um escritor inglês, russo e até francês, tal sua universalidade. Um Laurence Sterne, não “dos” e sim “nos” trópicos.

Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, Diadorim e Riobaldo | Foto: Reprodução

Em saltos elásticos, com o objetivo de caracterizar tão-somente escritores representativos, Larry Rohter passa de Jorge Amado para Guimarães Rosa — deixando de lado escritores como Monteiro Lobato, José Lins do Rego, Bernardo Élis (não merecem nenhum registro).

Larry Rohter diz que os brasileiros estão certos quando dizem que o autor de “Sagarana” é “o nosso James Joyce” (poderia aproximá-lo de William Faulkner, como faz Silviano Santiago). “Sua obra-prima de 1956, ‘Grande Sertão: Veredas’, é um épico denso, de estilo fluxo de consciência, em que ele brinca com a linguagem, inventando novas palavras e frases para descrever a vida no sertão.”

Para não dizerem que é misógino, apesar da exclusão de Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Telles, Larry Rohter cita, com destaque, uma escritora, só uma: Clarice “Lispector especializou-se em estudos psicológicos profundamente introspectivos, a exemplo de ‘Perto do Coração Selvagem’, narrativa estilo fluxo de consciência sobre as mudanças no estado emocional de uma jovem chamada Joana, e ‘A Paixão Segundo G. H.’, em que uma mulher de classe alta no Rio de Janeiro atravessa uma crise existencial ao limpar o quarto de sua empregada”.

Clarice Lispector: uma maiores prosadoras do Brasil | Foto: Reprodução

A literatura brasileira tem quarteto qualitativo: Machado de Assis-Graciliano Ramos-Guimarães Rosa-Clarice Lispector. Larry Rohter esquece olimpicamente de citar o gigante Graciliano Ramos — não há qualquer menção a obras decisivas como “Vidas Secas” e “São Bernardo”. A prosa seca do escritor alagoano tem uma fortuna crítica considerável, que aponta sua riqueza e variedade e sua linguagem requintada (apesar de não parecer, à primeira vista) mas sem pomposidade. Nenhuma história da literatura brasileira — ainda que pequena, como a de Larry Rohter — pode esquecer o João Cabral de Melo Neto da prosa.

Se esquece Graciliano Ramos, Larry Rohter destaca Paulo Coelho, e aí predomina o repórter —, atento às coisas da moda, e não à permanência — e não o crítico. “O imensamente popular” Coelho, diz o ex-correspondente do “Times” no Brasil. Ele pertenceria “a uma categoria própria”. No entanto, não ficamos sabendo exatamente qual é, até porque o misticismo não foi inaugurado por Paulo Coelho.

Paulo Coelho: autor de best-sellers internacionais | Foto: Reprodução

Depois, são arrolados dois escritores de categoria, Rubem Fonseca e Dalton Trevisan. João Antônio, Sérgio Sant’Anna, João Gilberto Noll, Cristovão Tezza, Bernardo de Carvalho, Socorro Acioli, Ronaldo Correia de Brito e Ronaldo Costa Fernandes não merecem uma linha. O que revela que ao repórter categorizado falta uma certa percepção do novo, do presente.

Castro Alves é o primeiro poeta citado. Sua poesia seria uma espécie de “cópia” da matriz francesa, Victor Hugo. “Até poemas escritos em favor da causa abolicionista, como ‘O Navio Negreiro’, hoje parecem ornamentados e elaborados demais, especialmente quando recitados por crianças na escola, onde ainda são obrigadas a memorizá-los.” Será que Larry Rohter, tão preocupado com o ex-presidente Lula da Silva, realmente visitou alguma escola brasileira? Os alunos são obrigados a memorizar poemas de Castro Alves? O repórter cede lugar ao ficcionista.

João Cabral de Melo Neto: o poeta “não” existe | Foto: Walter Firmo/AE

Ao deixar Castro Alves de lado, com seu “floreado estilo romântico”, Larry Rohter parece que se esquece que as pessoas, inclusive os poetas, escrevem numa época dada —, o repórter descobre o néctar de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Eles escreveram, afirma, num “estilo mais despojado e preciso, próximo do vernáculo”. Drummond era um “ironista capaz de enxergar a vida nos seus termos mais desoladores”. A linguagem elaborada (entre o lírico e a secura da poesia moderna), o que não quer dizer rebuscada, é pouco lembrada por Larry Rohter. Os poetas João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar não merecem referência.

Nelson Rodrigues, que nasceu há 100 anos, é apontado como “um dramaturgo de gabarito mundial”. Para sustentar sua “tese”, Larry Rohter baseia-se no que disse o diretor de cinema Bruno Barreto: “Se apenas tivesse escrito em inglês, seria tão célebre quanto Tennessee Williams, O’Neill ou Pinter, tamanha é a qualidade universal, atemporal e subversiva da sua obra”. Por que não compará-lo também a Racine, Shakespeare e Ibsen?

Nelson Rodrigues: cronista e dramaturgo | Foto: Reprodução

Dos livros basilares de não-ficção, Larry Rohter cita “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A obra é “considerada a maior de não ficção do país”. Noutro capítulo, o autor cita “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, mas faz uma leitura redutora, fruto da hegemonia do pensamento marxista. A escola paulista de sociologia parece que nunca perdoou o fato de a maior obra de interpretação do Brasil ter sido escrita por um sociólogo nordestino e não marxista.

Larry Rohter postula que Gilberto Freyre praticamente defende a escravidão, o que não é fato, sobejamente explicado e esclarecido por intelectuais brasileiros, não lidos pelo repórter algo desavisado. “Raízes do Brasil” (aparece só na bibliografia), de Sérgio Buarque de Holanda, e “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro, não são discutidos.