Livro de Elio Gaspari mostra que homens-chaves da ditadura controlaram o primeiro governo civil

25 junho 2016 às 09h36

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“Num universo de 125 cargos relevantes” da equipe do ex-presidente José Sarney, “a taxa de sobrevivência dos quadros do governo de Figueiredo fora de 60%, a maior já registrada”

O livro “A Ditadura Acabada” (Intrínseca, 447 páginas), de Elio Gaspari, mostra que a transição da ditadura civil-militar para a democracia, em 1985, fica melhor caracterizada se for definida como “transação”. Na verdade, embora os civis — no caso, “representados” por José Sarney, que havia sido presidente do PDS, o partido que apoiava o regime — tenham voltado ao poder, com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, os grupos que mandavam antes continuaram mandando no “novo” governo. Novo, aliás, é prisioneiro de aspas do realismo.
A transação de 1985 é vista por Elio Gaspari como “o maior processo de conciliação da história nacional”. Conciliação pelo alto, como costumam sugerir os leitores de “Os Donos do Poder”, o livro de Raymundo Faoro. Com a morte de Tancredo Neves, assumiu a Presidência da República José Sarney, “que não vivera, nem viveria, um só dia na oposição”.
Elio Gaspari mostra que os homens da ditadura infiltraram-se no novo governo — controlando-o de ponta a ponta. “O ministro da Fazenda, Francisco Dornelles, fora o chefe da Receita Federal no governo que terminava. O das Relações Exteriores, Olavo Setubal, era um banqueiro que governara a cidade de São Paulo e por pouco não chegara a governador do Estado. Os ministros de Minas e Energia (Aureliano Chaves), da Educação (Marco Maciel) e das Comunicações (Antonio Carlos Magalhães) haviam sido governadores de seus Estados e dissociaram-se do governo havia poucos meses. O dos Transportes, Afonso Camargo, há poucos anos”, relata Elio Gaspari. Aureliano Chaves havia sido vice-presidente do governo do presidente João Figueiredo.
“Os mais poderosos ministros militares, Leonidas Pires Gonçalves (Exército) e Ivan de Souza Mendes (SNI), haviam sido oficiais diretamente envolvidos na deposição de João Goulart e generais que nunca deixaram de defender a máquina repressiva do regime. Um estudo do professor Ben Ross Schneider mostraria que, num universo de 125 cargos relevantes da administração federal, a taxa de sobrevivência dos quadros do governo de Figueiredo fora de 60%, a maior já registrada”, conta Elio Gaspari. Numa nota de rodapé, o pesquisador acrescenta: “Num universo de 87 quadros, Médici trocara 50% do plantel de Costa e Silva. Num universo de 118 quadros, Geisel mantivera 49%. Num universo de 148 quadros, Figueiredo mantivera 53% de burocratas do governo de Geisel”.
Se uma pessoa tivesse ficado em coma durante alguns meses, acordando depois da posse do presidente José Sarney e verificando a lista dos principais auxiliares do novo governo, certamente pensaria que a ditadura teria se prolongado. Há historiadores, como Daniel Aarão Reis, que percebem o governo Sarney como o último governo militar, sem, claro, um general como presidente. É como se Sarney fosse o último general — só que sem farda (só com o fardão da Academia Brasileira de Letras).
O pesquisador ressalva que Sarney abriu espaço também para integrantes da luta contra a ditadura. “A conciliação de Tancredo mudava o país quando era visto pelo outro lado, o dos que militavam na restauração democrática. O ministro da Justiça (Fernando Lyra) viera da ala mais combativa do MDB. Aluizio Alves (Administração), José Aparecido de Oliveira (Cultura) e Renato Archer (Ciência e Tecnologia) haviam sido cassados. Voltava ao palácio do Planalto Waldir Pires, consultor-geral da República de João Goulart. Ele fora um dos últimos a deixar aquele prédio em 1964 e dos primeiros a ter seus direitos políticos suspensos.” Iris Rezende, também cassado pela ditadura, foi ministro da Agricultura do governo Sarney.