Lançamento Livro afirma que Churchill e Orwell eram irmãos na luta pela liberdade do indivíduo

24 novembro 2019 às 00h00

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Ganhador do Pulitzer afirma que, mesmo pertencendo a linhas ideológicas diferentes, os dois britânicos se irmanavam na defesa da democracia
O que Winston Leonard Spencer-Churchill (1874-1965) e George Orwell (1903-1950) — cujo nome de batismo era Eric Arthur Blair — têm em comum? Alguma coisa, por certo, como se verá adiante. A começar do fato de que escreviam muito bem. Orwell um pouco melhor? Talvez, e sobretudo por ser mais, digamos, “moderno” (e não tão moderno quanto James Joyce, o autor de “Ulysses” e “Finnegans Wake”).

Quando a Europa estava deitada, sob o domínio do nazista Adolf Hitler, o britânico Churchill manteve a Inglaterra em pé. Não faltou quem, como Lorde Halifax, temendo o poderio do nazista e, sobretudo, a destruição do país de Shakespeare, quisesse compor com a Alemanha. Jogando duro, com as armas de que disputa — e as mais letais eram suas palavras traçantes —, Churchill não permitiu nenhum acordo com o homem que mandou matar 6 milhões de judeus e milhares de ciganos e homossexuais (além de adversários políticos, como socialdemocratas, socialistas e comunistas). O primeiro-ministro era corajoso — o que, diga-se, assustou Hitler, que respeitava os britânicos — e dotado de um humor supimpa (sua língua ferina não perdoava ninguém — nem os amigos).
Há um lugar certo na história? Bem, entre 1939 e 1945, havia — o dos Aliados, que incorporavam os comunistas de Stálin, que lutaram bravamente pela vitória da democracia na Europa, enquanto na União Soviética vivia-se sob uma ditadura genocida (o stalinismo é responsável pela morte de 25 milhões a 30 milhões de pessoas). Churchill sugeriu que, para enfrentar Hitler, buscaria aliados até no Inferno. Pois Stálin era a “reencarnação” de Lúcifer como político. Estadista notável, político de primeira linha, Stálin foi decisivo para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. Quando se fala Stálin tenha-se em mente os soldados soviéticos — que eram de uma coragem suicida; aliás, se recuassem, o líder comunista mandava matá-los. O que mais enfraqueceu Hitler foi a aventura das forças armadas alemãs em território soviético — quando os germânicos cometeram o mesmo erro do exército de Napoleão Bonaparte em 1812 (história imortalizada no romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, que pode ser lido em português em notável tradução de Rubens Figueiredo).

Os alemães entraram na União Soviética, arrasando o que podiam. Depois, foram empurrados de volta para a Europa, também com violência extremada. Hitler “enterrou” parte de suas forças qualificadas na guerra no Leste europeu e, por isso, estava mais fragilizado quando teve de enfrentar a Inglaterra revigorada pelo apoio dos Estados Unidos. Mas o fato é que, sem Churchill, a “língua franca” do mundo (que um dia será o mandarim) não seria o inglês, o esperanto que deu certo, e sim o alemão, a língua de Goethe, Heine, Rilke, Kafka e Thomas Mann.
Orwell era pobre e estudou em Eton. Era culto. Escrevia muito bem e não era liberal — era de esquerda e anti-stalinista. Lutou na Guerra Civil Espanhola e lá descobriu como o stalinismo era perigoso para a democracia e para o indivíduo (inclusive fisicamente). Na Espanha, onde os democratas lutavam pela democracia, os stalinistas batalhavam por uma ditadura de esquerda e Francisco Franco peleava por uma ditadura de direita, Orwell percebeu que havia alguma coisa errada com as esquerdas. Os comunistas patrocinados por Stálin matavam tanto franquistas quanto anarquistas e trotskistas. Ao mesmo tempo que combatiam as tropas de Franco, os comunistas lutavam contra seus inimigos internos. Noutras palavras, já pensavam que, no caso de vitória, assumiriam, de imediato, a hegemonia e não permitiriam a participação de anarquistas, trotskistas e socialdemocratas no governo. Pensavam, a rigor, como Franco.

Depois da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), Orwell percebeu, com o máximo de clareza, a nova configuração global da política. A esquerda stalinista, dados os livros “A Revolução dos Bichos” (sátira poderosa ao stalinismo) e “1984” (uma radiografia do totalitarismo), passou a tratá-lo com desprezo, sugerindo que era aliado dos capitalistas — o que não procedia. Orwell permaneceu de esquerda, mas de uma esquerda solitária, sempre pensando pela própria cabeça. O que mais prezava era a liberdade — assim como Churchill.
“Churchill & Orwell — A Luta pela Liberdade” (Zahar, 335 páginas, tradução de Rodrigo Lacerda), de Thomas E. Ricks, é um excelente estudo comparado de dois gigantes do século 20.
De cara, Ricks nota que a personagem Winston tem o prenome de Churchill — o que não é por acaso. “Eles se admiravam mutuamente à distância, e, quando chegou o momento de escrever ‘1984’, George Orwell batizou seu protagonista de Winston. Segundo os registros, Churchill gostou tanto do livro que o leu duas vezes.”
Ricks observa que a “prioridade maior” de Churchill e Orwell era o “compromisso com a liberdade humana”, o que deu aos dois “uma causa em comum”.
Num mundo em que a individualidade era posta pra escanteio, com o Estado controlando tudo, Orwell e Churchill permaneceram defendendo o espaço do indivíduo, sua liberdade.
Pode-se sugerir, como faz Ricks, que Churchill e Orwell “indicaram o caminho, no âmbito político e intelectual”, num ambiente de trevas profundas, tanto no campo da esquerda, com a vigência do stalinismo de Stálin, quanto no campo da direita, com a hegemonia do nazismo de Hitler. Ao entrar na batalha contra a Alemanha, em 1939, Churchill disse: “É uma guerra, analisada em sua essência, para gravar, em rochas inabaláveis, os direitos do indivíduo, e é uma guerra para estabelecer e reavivar a estatura humana”. Em seguida, Orwell comentou: “Vivemos numa época em que o indivíduo autônomo está deixando de existir’.
O que Churchill e Orwell queriam, cada qual com seu estilo e ideologia, era “preservar a liberdade do indivíduo numa época em que o Estado se intrometia poderosamente na vida privada”. Os dois eram, no dizer do historiador Simon Schama, “os arquitetos do seu tempo” e “os mais improváveis aliados”.
No campo político e intelectual, “os esforços” de Churchill, este mais (sobretudo na arena política), e Orwell — cuja crítica corrosiva chegou a influenciar os estudos sobre o totalitarismo de direita (nazismo) e de esquerda (stalinismo) — “ajudaram a estabelecer as condições políticas, físicas e intelectuais que tornaram” o mundo atual possível. Um mundo livre, ou mais livre, e democrático.
Ricks enfatiza que “nenhum dos dois jamais perdeu de vista o valor do indivíduo no mundo, e tudo o que isso significa: o direito de discordar da maioria, de estar até mesmo persistentemente errado, o direito de desconfiar do poder da maioria e a necessidade de afirmar que as autoridades podem estar erradas”. O jornalista menciona um dito célebre de Orwell: “Se a liberdade significa alguma coisa, é o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Ricks acrescenta: “Aos fatos que elas não desejam admitir”.
Por fim, Ricks assinala: “Churchill nos ajudou a ter a liberdade de que nos beneficiamos hoje. Os escritos de Orwell sobre a liberdade ainda influenciam a nossa forma de compreendê-la”.
Duas curiosidades: Churchill era filho da espevitada socialite norte-americana Jennie Jerome e do político britânico Randolph Churchill; e Orwell recebeu apoio, para publicar seu primeiro livro, da brasileira Mabel Robinson Fierz. Ela nasceu no Rio Grande do Sul e, aos 17 anos, mudou-se para a Inglaterra — pátria de seus pais —, onde se casou com um engenheiro (ela se tornou amante do escritor).