Um dos mais respeitados jornalistas brasileiros no exterior, Jamil Chade, correspondente da Folha de S.Paulo na Europa, fez uma ótima reflexão que serve de alerta a quem comemora que “a democracia venceu” a disputa contra o bolsonarismo no Brasil. Na visão – correta – dele, não tem nada ganho nesse jogo.

Em artigo publicado no sábado, 4, o experiente Chade – que também é escritor, autor de cinco livros – já avisou com o título: “Profissional, a ameaça golpista da extrema direita é tudo menos “Tabajara’”.

É primeiro preciso contextualizar o nome/adjetivo indígena envolvido na história. O povo Tabajara constitui uma etnia ancestral que habitava partes do litoral brasileiro, especialmente do Nordeste, até a chegada dos portugueses em 1500.

Mas o termo ganhou notoriedade na década de 90, com o quadro “Organizações Tabajara”, do programa humorístico Casseta & Planeta, em que vários produtos de qualidade duvidosa eram anunciados. Foi um sucesso que caiu no gosto popular, graças à grande audiência da TV Globo, que transmitia a atração. Na linguagem das ruas, “tabajara” passou a ser aquilo que tem algo de jocoso ou trapalhão, mas, em qualquer dos casos, é também tosco ou malfeito.

Foi nesse sentido que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes usou a palavra, quando disse que os planos golpistas do bolsonarismo seriam uma “Operação Tabajara”. Moraes foi envolvido pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES) em uma denúncia de uma armação no início de dezembro que visava, ao fim, evitar a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e a prisão – sim, prisão – do próprio ministro.

Em suma, depois de toda a repercussão do caso na semana passada, ficou parecendo que Alexandre de Moraes menosprezou a estratégia e seus agentes. No meio disso tudo, ao lançar a expressão, também caiu em uma saia justa, pois ofendeu o povo indígena com a conotação pejorativa. Isso é corrigível com um justo pedido de desculpas.

Mas, como bem coloca Jamil Chade em seu artigo, “se o projeto específico citado pelo senador parece surreal e improvável, é necessário reconhecer que as democracias estão ameaçadas pela existência de um movimento extremamente profissional, sedutor, com muito dinheiro, plano e objetivo”. O plano da extrema direita, de demolir as democracias mundo afora, existe e é um movimento muito bem articulado e regado a muito dinheiro, alerta.

De certo modo, é o que também diz o professor Carlos Ugo Santander, da Faculdade de Ciências Sociais (FCS) da Universidade Federal de Goiás (UFG), em entrevista publicada no Jornal Opção deste domingo, 5. “Essa nova direita se recicla com uma estratégia muito mais agressiva, na qual se destaca o uso eficiente das novas tecnologias de comunicação, como as redes sociais”, afirma.

Reacionários têm em seu poder um controle impressionante da comunicação moderna, não apenas das tecnologias

É algo com que o correspondente coaduna: “Ao longo dos últimos anos, a extrema direita descobriu como poucos o poder das redes sociais e criou uma verdadeira realidade paralela para levar milhões de pessoas a acreditar que movimentos autoritários podem dar a solução para seus desafios, que são reais”, escreveu, no artigo.

No fundo, o que planeja essa nova direita/extrema direita de que não se incorre em equívoco quem a chamá-la de iliberal? É exatamente usar essa suposta “tosquice” em seu favor para chegar ao poder. Em contrapartida, esses reacionários têm em seu poder um controle impressionante da comunicação moderna, não apenas das tecnologias, mas também do conhecimento de como as pessoas a elas reagem.

Alexandre de Moraes, portanto, errou. Mas ele não é o único. O Brasil talvez seja apenas um país sortudo, em meio a tantos outros que enfrentaram ou enfrentam o drama de ver a democracia sendo corroída: é que na Hungria de Viktor Órban, na Turquia de Recep Erdogan, na Polônia de Andrzej Duda, seus representantes eram mais competentes para se manter no poder após chegar até lá. Por aqui – e também nos Estados Unidos –, o carisma do líder-mor da extrema direita vinha acompanhado de muita inépcia no trato com a máquina de governo.

Em meio a um arsenal de insanidades, talvez tivesse bastado a Jair Bolsonaro que fizesse uma única concessão: à ciência, durante a pandemia. Com Luiz Henrique Mandetta no comando do Ministério da Saúde adotando as medidas sanitárias e com um incentivo à campanha de vacinação, a popularidade do então presidente seria muito mais alta. Tendo o cofre sob seu poder, Bolsonaro teria enormes chances de vencer Lula – basta lembrar que, com seu combo e ruindades, a diferença final foi de 1,8 ponto porcentual.

A nova direita, como diz o professor Santander, é multifacetada. No meio das muitas caras que possui, o bolsonarismo deve ser realmente uma das mais trapalhonas. O Brasil presenciou ministra com mentiras estapafúrdias e abjetas sobre abusos inomináveis contra crianças, ministro que imitou fala de chinês para debochar do maior parceiro comercial, deputada que usou o próprio tropeção para sacar arma contra guru astrólogo negacionista, patriotas que se grudavam em caminhão, evocavam extraterrestres ou rezavam para pneus.

Isso pode ser hilário, mas não deixa de ser perigoso. O último governo brasileiro mostrou que não há antagonismo entre se mostrar totalmente sem noção, até provocando gargalhadas, e, ao mesmo tempo, implantar uma agenda de necropolítica.

Jamil Chade está certo: a mobilização de europeus e estadunidenses contra Bolsonaro não é por causa de Lula, mas sim, pela importância estratégica de manter a democracia no Brasil, pilar do hemisfério sul e uma das maiores economias mundiais. O Brasil continuar sob o bolsonarismo seria fortalecer a extrema direita mundial e, portanto, aumentar a ameaça para todo o sistema.