J. R. Guzzo serviu ao bolsonarismo ou o bolsonarismo se serviu de J. R. Guzzo?

09 agosto 2025 às 21h00

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Roberto Civita contratou o jornalista Mino Carta, que havia editado o “Jornal da Tarde” e a revista “Quatro Rodas” (sem nunca ter dirigido um automóvel), para criar a revista “Veja”, em 1968, há 57 anos.
Durante anos, a “Veja” (era “Veja e Leia”) deu prejuízo e não era altamente vendável nas bancas. Mino Carta desconfiava que as “Páginas Amarelas” não dariam certo, porque o Brasil não teria entrevistáveis suficientes. Ao menos não com alta qualidade. Mas a seção de entrevista acabou por dar certo.
Durante os anos de chumbo, a cúpula da “Veja” teria negociado a cabeça de Mino Carta com os militares (sob intermediação do ministro Armando Falcão). Roberto Civita sempre negou a negociação. Mas o jornalista mantém sua versão.
De acordo com o biógrafo de Roberto Civita, Carlos Maranhão, houve uma tentativa de manter Mino Carta como membro da Editora Abril, ainda que escanteado, e o jornalista teria sido demitido. Quem quiser verificar as versões de Mino Carta (https://tinyurl.com/2ywzh8fw e https://tinyurl.com/3cc3r8yv) e de Civita (https://tinyurl.com/2yxh6hs4) deve ler três resenhas do Jornal Opção.

Criar uma revista do zero não é nada fácil. Emplacá-la, conquistando um público fiel, é muito difícil. Tanto em 1968 quanto em 2025. Mino Carta montou uma redação extraordinária e fez uma revista de qualidade indiscutível, sempre com bons textos.
“Veja” não conquistou o público de imediato, embora fosse respeitada nos meios intelectuais e temida pelos militares. Logo depois da saída de Mino Carta (hoje, com 91 anos, dirigindo a revista “CartaCapital”), Roberto Civita indicou para o cargo de diretor de Redação José Roberto Dias Guzzo.
Sob o comando de J. R. Guzzo, que manteve a redação de Mino Carta, com alguns acréscimos, a “Veja” se consolidou e, em pouco tempo, se tornou a revista semanal dominante do país. Editaram várias revistas para tentar superá-la e nenhuma conseguiu.
Mino Carta dirigiu a “IstoÉ” e a “Senhor”, muito boas, e, mais tarde, o grupo Globo fundou a “Época”, inclusive egressos da “Veja”, como Paulo Nogueira e Augusto Nunes. Mas nenhuma conseguiu arrancar o primeiro lugar da publicação da Editora Abril.
J. R. Guzzo — que também dirigiu a “Exame” — implantou um sistema de qualidade insuperável na “Veja”. Repórteres escreviam as reportagens, que eram, por vezes, reescritas pelos redatores. Eram amplamente verificadas pelos checadores. (Modelo semelhante ao da revista “New Yorker”, dos Estados Unidos.)

Mesmo tendo de dirigir a redação, J. R. Guzzo às vezes colocava a mão na massa, reescrevendo reportagens, melhorando o conteúdo e dando-lhes nova forma. Era o tempo das máquinas de escrever e das laudas.
Os repórteres escreviam os textos, em suas Remingtons e Olivettis, e entregavam as laudas para os editores que, frequentemente, passavam o material para os redatores.
J. R. Guzzo pegava algum texto e o copidescava de maneira implacável. Ao final, as laudas ganhavam a cor azulada de sua bic e os textos precisavam ser redatilografados (no Jornal Opção, Herbert de Moraes Ribeiro fazia o mesmo, assim como José Maria e Silva e eu).
Dada a fama de reescrever os textos, de modificá-los no seu âmago, J. R. Guzzo ganhou a fama de “Mão Peluda”. Seu objetivo, ao mexer nos textos, era torná-los mais claros, objetivos e precisos.
O sucesso de J. R. Guzzo, jornalista de talento indiscutível, deve muito ao diretor adjunto Elio Gaspari (aos 81 anos, escrevendo textos extraordinários na “Folha de S. Paulo” e publicando livros sobre a história do Brasil).

Elio Gaspari era e é um repórter notável. Na arena política, era imbatível. J. R. Guzzo e seu subordinado — o primeiro, conservador, e o segundo, de esquerda — fizeram uma dupla perfeita, tipo Pelé e Coutinho. Sempre no ataque. A melhor fase da “Veja”, quando publicou reportagens espetaculares, se deu sob o comando dos dois.
A “Veja” balançava a República, sempre com textos primorosos, bem cuidados por, entre outros, J. R. Guzzo, Elio Gaspari e Roberto Pompeu de Toledo.
J. R. Guzzo, ao deixar o comando da “Veja”, passou a escrever artigos contundentes na revista. Por alguma discordância, acabou afastado.
Convidado pelo “Estadão”, J. R. Guzzo começou a escrever artigos polêmicos, sempre vergastando a esquerda e, nos últimos meses, decisões do Supremo Tribunal Federal.

A rigor, J. R. Guzzo era bolsonarista? Talvez não. Era sofisticado demais para se alinhar à súcia bolsonarista — uma rede primária que conseguiu, ainda não se sabe como, inscrutar no inconsciente — não é bem a palavra — de milhões de brasileiros.
Mesmo sem sofisticação intelectual, o bolsonarismo explora, com rara habilidade, certos ressentimentos das classes médias. Parece dizer aquilo que, de algum modo, precisa ser despertado — ou ganhar representação — num cantinho reprimido do cérebro delas.
Com sua sofisticação habitual, além da pena veemente, J. R. Guzzo acabou se tornando um “parça” de combate dos bolsonaristas. Mas argumentava contra a democracia? Me parece que não. Queria democracia ampla, inclusive para aqueles, como os bolsonaristas, que não têm apreço algum pelo democracia.
Sua defesa intrínseca da lei beirava ao idealismo, como se a realidade — o bolsonarismo é visceralmente golpista e antidemocrático — pudesse ser ignorada. Ou joga-se duro contra o bolsonarismo, contendo-o com o uso “elástico” da lei, ou ele, um monstro bárbaro, talvez assim dissesse o poeta grego Konstantinos Kaváfkis —, termina por abolir a democracia e implantar uma ditadura.
J. R. Guzzo, sempre brilhante e posicionado, defendia o império da lei, no modo “certinho”, inclusive para os golpistas. Na sua opinião, democracia é isto. Noutras palavras, mesmo golpistas merecem o “respeito” da democracia e, portanto, das leis (que, claro, não querem obedecer).
Mesmo discordando, várias vezes, das opiniões de J. R. Guzzo, sempre li seus artigos com interesse. Pela inteligência flamante, faca só lâmina, dos argumentos contundentes. É uma pena que, direta e, muito mais, indiretamente, tenha servido ao bolsonarismo.
J. R. Guzzo era conservador ou liberal? Um liberal-conservador, quem sabe. Talvez fosse um jornalista — de feitio intelectual — anti-sistema, sobretudo anti-esquerda.
O paulista J. R. Guzzo morreu, aos 82 anos, de infarto, no sábado, 2, em São Paulo.