IA ajuda a identificar nazista que matou judeu na Ucrânia em 1941
25 outubro 2025 às 21h00

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Os nazistas “maiores”, como Adolf Hitler, Heinrich Himmler, Joseph Goebbels, Hermann Goering, estão bem radiografados por jornalistas e, sobretudo, historiadores. Foram examinados, alguns deles, por pesquisadores do porte de Ian Kershaw, britânico, e Peter Longerich, alemão. Os dois são autores de biografias excelentes de personagens seminais da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Nazistas “médios”, como Reinhard Heydrich, Adolf Eichmann (https://tinyurl.com/33v85jhs), Rudolf Höss (https://tinyurl.com/2hhvrbxz) e, entre outros, Josef Mengele, também já foram (e continuam sendo) esquadrinhados.
Adolf Eichmann foi analisado pelas filósofas alemãs Hannah Arendt e Bettina Stangneth (https://tinyurl.com/yskm7edd). O livro de Stangneth apresenta um Eichmann mais expressivo do que o visto pela autora de “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal” (Companhia das Letras, 344 páginas, tradução de José Rubens Siqueira).

A respeito de quão os alemães estavam informados sobre o Holocausto — o brutal e inominável assassinato dos judeus —, há um livro crucial: “Apoiando Hitler — Consentimento e Coerção na Alemanha Nazista” (Record, 517 páginas, tradução de Vitor Paolozzi), do historiador canadense Robert Gellately.
Sim, o povo alemão estava bem informado a respeito do massacre dos judeus (https://tinyurl.com/ykjmnjyd). Robert Gellately, mesmo admitindo que a Alemanha vivia sob a ditadura do nazismo, assinala que a coerção dos alemães era menor do que se costuma pensar. A coerção — totalitária — era muito mais contra os que não apoiavam o nazismo.
Fato ocorreu em Berdychiv, na Ucrânia
Busca-se, nos últimos anos, os assassinos ditos “menores”, como o alemão Jakobus Onnen, que aparece numa fotografia famosa atirando num judeu. A imagem registra também uma cova cheia de corpos.

Professor de línguas e educação física, Jakobus Onnen morreu em combate, em agosto de 1943, aos 37 anos, em defesa da Alemanha nazista.
Nascido em 1906, Jakobus Onnen era um nazista convicto. Tanto que se filiou ao Partido Nazista antes de Hitler assumir o poder, em 1933.
A foto foi feita na Ucrânia e a cena ficou conhecida como “o último judeu de Vinnitsa”.
Jakobus Onnen foi identificado pelo historiador alemão Jürgen Matthäus. Depois de anos de pesquisa rigorosa, o pesquisador apresentou suas conclusões na revista “Zeitschrift für Geschichtswissenschaft” (“Revista de Estudos Históricos”).
A publicação acadêmica se tornou conhecida depois de reportagem do jornal britânico “The Guardian”. No Brasil, saiu uma matéria em “O Globo”, sob o título de “IA ajuda historiador a descobrir identidade de nazista em foto de assassinato durante Holocausto”.

Jürgen Matthäus informa que o judeu foi executado em 28 de julho de 1941, não em Vinnitsa, e sim em Berdychiv. Muitos judeus viviam na cidade.
A unidade móvel Einsatzgruppe C, encarregada de exterminar judeus — nas regiões invadidas da União Soviética de Stálin —, foi a responsável pela matança da qual participou, como agente ativo, Jakobus Onnen.
“A identificação só foi possível após uma combinação de esforços: pesquisa documental em arquivos históricos, colaboração com o grupo de jornalismo investigativo Bellingcat, relatos de familiares e análise forense com o uso de inteligência artificial”, anota a reportagem de “O Globo”.
A inteligência artificial é o fetiche do momento. E é mesmo útil, como no caso de “o último judeu de Berdychiv”.
Mas a descoberta de Jakobus Onnen começou antes do uso de inteligência artificial. Um alemão disse a Jürgen Matthäus que suspeitava que o homem da foto fosse tio de sua mulher.
Membros dos Bellingcat submeteram as fotografias de Jakobus Onnen, repassada pela família, à inteligência artificial. Elas foram comparadas, com IA, à foto de 1943.
Jürgen Matthäus disse ao “Guardian” que “a correspondência entre os rostos, segundo os especialistas técnicos, é incomumente alta para esse tipo de imagem histórica”.
“Ferramentas digitais nas ciências humanas vêm sendo cada vez mais usadas, mas normalmente para análise de grandes volumes de dados, não para estudos qualitativos. Esta não é uma solução milagrosa — é apenas uma entre várias”, postula Jürgen Matthäus.
O que o pesquisador está sugerindo é que a IA, ainda que seja importante, às vezes decisiva, não é a alternativa matadora. Precisa ser combinada com a pesquisa tradicional, como ele fez durante anos, indo atrás de informações, examinando documentos.
A hora de identificar a vítima
A fotografia deve ter sido feita por um soldado, companheiro da jornada assassina de Jakobus Onnen. Espécie de troféu, era para impressionar outros colegas.
A revista “Der Spiegel”, espécie de “Veja” da Alemanha, relata que, “dos cerca de 20 mil judeus que viviam” em Berdychiv, “em 1941, apenas 154 ainda estavam vivos em 1944”.
As “execuções em massa continuaram até o último dia da ocupação alemã no Leste. Acredito que essa imagem deve ser tão importante quanto a do portão de Auschwitz, porque mostra o assassinato direto, o confronto entre o assassino e sua vítima”, afirma Jürgen Matthäus. (Confronto? Talvez não seja a palavra adequada.)
A culpa individual dos alemães é, por vezes, ocultada pela culpa coletiva. Sendo coletiva, continua sendo culpa, mas aí atribuem-se os massacres quase tão-somente aos “grandes” nazistas, como Hitler e Himmler, ou aos comandantes dos campos de extermínio, como Rudolf Höss (Auschwitz), Franz Stangl (Sobibor e Treblinka — escapou para o Brasil), Gustav Wagner (vice-comandante de Sobibor; depois da guerra, “escondeu-se” no Brasil), Arthur Liebehenschel (Majdanek) e Kurt Frank (Treblinka). (Gustav Wagner foi reconhecido por um sobrevivente de Sobibor, Stanislaw Szmajzner, que morava em Goiânia. Confira o documentário: https://tinyurl.com/52r4pt9b)
A culpa, quando individualizada, pode evidenciar como o nazismo calou fundo na alma do povo alemão. O livro de Robert Gellately mostra isto de maneira detalhada.
Portanto, Jürgen Matthäus tem razão quando sustenta que “a enorme quantidade de material visual e escrito enviado por soldados alemães para casa desmonta o mito de que as pessoas não sabiam do genocídio”. Não havia inocência — os alemães sabiam, e muito, sobre o que seus governantes faziam na Polônia, nos campos de concentração e extermínio, e mesmo na Alemanha, por exemplo, em Dachau e Ravensbrück (onde mulheres foram torturadas e assassinadas, como Olga Benario, a mulher do brasileiro Luiz Carlos Prestes).
A pergunta que Jürgen Matthäus planeja responder agora é sobre quem foi a vítima de Jakobus Onnen. Deixou parentes?
O pesquisador ucraniano Andrii Mahaletskyi e Jürgen Matthäus estão examinando arquivos dos tempos da União Soviética referentes às comunidades da Ucrânia. Se aparecerem imagens semelhantes ao judeu retratado, a inteligência artificial será decisiva para identificá-lo com (mais) precisão.
“Houve mais de 1 milhão de vítimas na União Soviética ocupada” (pelos nazistas). A maioria continua sem nome, exatamente como os assassinos queriam”, denuncia Jürgen Matthäus.
Os nazistas da Alemanha mataram milhões de pessoas fora dos campos de concentração e extermínio e suas vítimas permanecem, em larga medida, anônimas. Assim como os assassinos persistem anônimos. Um deles, mesmo morto, foi identificado. Palmas para os pesquisadores, sobretudo para Jürgen Matthäus.
