História do encontro “beckettiano” entre os escritores Al Alvarez e Samuel Beckett
01 novembro 2025 às 21h00

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As memórias do poeta, prosador, ensaísta e crítico literário britânico Al Alvarez (1929-2019) — “¿Cómo Fue Que Todo Salió Bien?” (Entropía, 411 páginas, tradução de Juan Nadalini) — são excelentes. Além da história pessoal, de sua família, conta-se parte substancial da literatura do século 20, com ênfase na poesia. São “personagens”, entre outros, John Donne, D. H. Lawrence, Auden, T. S. Eliot, Robert Lowell, Sylvia Plath (foram amigos), Ted Hughes, John Berryman, Samuel Beckett, Frank Kermode, Richard Blackmur (seu patrono em universidades americanas), Zbigniew Herbert, Philip Roth, John Lee Carré.
O livro é tão prazenteiro que mesmo as partes que não me interessam — como pôquer (Alvarez era exímio jogador) e montanhismo (era expert) — valem a pena. São valiosos os trechos que tratam das universidades inglesas (é formado por Oxford) e americanas. O autor não deixa de mencionar a frivolidade e mesquinharias do ambiente universitário.

Com uma carreira certa nas melhores universidades, como Oxford, Al Alvarez preferiu cair fora e se firmar como poeta, prosador e crítico. Depois, desistiu de ser crítico, mas passou a escrever reportagens especiais para a “New Yorker”.
O encontro de Al Alvarez com o poeta e crítico Ezra Pound e o poeta Auden são espetáculos à parte. Notáveis.
Inquirido sobre os romances de D. H. Lawrence, Pound olhou Alvarez, encolheu os ombros e disse: “Não me interessam os russos”. O autor de “Os Cantos” estava num manicômio. Mas o comentário era mais irônico — uma depreciação do autor de “Mulheres Apaixonadas” — do que maluco.
Lúcido e divertido, Pound contou a Alvarez como havia sido seu encontro, no hospício, com T. S. Eliot.

Andarilho, Alvarez conversou com a mulher de Lawrence, Frieda, nos Estados Unidos e acabou se casando com sua neta. O casamento não deu certo, exceto pelo filho Adam.
O texto a seguir será baseado unicamente no capítulo 18, “Otros amigos”. Concentro-me no encontro entre Alvarez e o escritor irlandês Samuel Beckett — que, digamos, ganhou o Nobel de Literatura para si e, quem sabe, James Joyce. Os dois são “irmãos”, mas não gêmeos. São parecidos e, ainda assim, diferentes.
Antes de destacar Samuel Beckett, vale uma breve nota sobre o crítico britânico Ian Hamilton, amigo de Alvarez.
Ian Hamilton editou revistas (“The Review” e “The New Review”) e elevou a crítica britânica a outro patamar, de acordo com Alvarez. Seu foco era a poesia, “a forma artística menos rentável do mundo”, segundo Alvarez.
“A poesia é a forma de comunicação verbal mais sóbria, concentrada e exposta que existe, e escrever poesia é como tratar de roubar um banco. (…) É um ofício despótico e exige sacrifícios”, assinala Alvarez.

O memorialista relata que Ian Hamilton abriu espaço, pioneiramente, para os prosadores Julian Barnes e Ian McEwan. E para vários outros.
“O dinheiro é como a divindade — jamais se manifesta a quem não crê realmente nele”, diz Alvarez — se referindo a Ian Hamilton, que vivia quebrado e fugindo dos credores.
Encontro meio surreal com Samuel Beckett
Alvarez diz que gostaria de ter frequentado a casa de Samuel Beckett. Para conversarem, por certo, sobre prosa, teatro e poesia (saiu uma boa edição da poesia do irlandês pela Editora Relicário, com tradução precisa de Marcos Siscar e Gabriela Vescovi).

“Mas só o vi uma vez, em abril de 1976, na sua festa de aniversário de 70 anos”, conta Alvarez.
Convidado pelo crítico Frank Kermode, Alvarez escreveu para a série Fontana Modern Masters um estudo introdutório à obra de Samuel Beckett. Queria escrever sobre o diretor de cinema Jean Luc Godard, mas Kermode disse “não”.
Ocorre que Alvarez não era, em 1975, um grande leitor da obra de Samuel Beckett. Havia lido apenas “Esperando Godot” e “Final de Partida”. “Não havia lido nenhum de seus romances difíceis.”
Então, Alvarez sentou-se à mesa e leu toda a obra do autor de “Molloy”, “Malone Morre” e “O Inominável”.
“Fiquei fascinado, e não só porque o tema invariável de Beckett era a depressão e eu acabara de passar quatro anos escrevendo um livro sobre o suicídio” (Alvarez tentou se matar, sobreviveu e viveu 90 anos), anota o memorialista.

“Me impactou seu humor negro, seco, a fecundidade técnica que lhe permitia executar variações infinitas sobre o mesmo tema, a distância rigorosa que mantinha com seus narradores, a pureza da linguagem — reduzida ao essencial, sem uma só vírgula fora do lugar”, escreve Alvarez.
O memorialista, que vai e vem, retoma a história do centenário de Samuel Beckett. A festa ocorreu no apartamento de John Calder, amigo e editor do escritor.
John Calder “não havia convidado muita gente porque Beckett detestava multidões”. “Também era célebre por seu desdém aos críticos.” Por isso, Alvarez ficou surpreso a entrar para a lista dos convidados.
Apresentados, Samuel Beckett disse a Alvarez: “Agora não podemos falar sobre minha obra”. O crítico concordou e o irlandês pareceu agradecido.
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. Então, Samuel Beckett disse: “Me interessou muito ‘O Deus Selvagem’” (livro de Alvarez).

Alvarez respondeu: “Se não podemos falar sobre sua obra tampouco podemos falar a respeito da minha”.
A troca de farpas, se é a palavra (talvez seja mais apropriado “elegâncias”), serviu para descontrair tanto Samuel Beckett quando Alvarez. “A conversação fluiu sem problemas. Falamos durante quase uma hora.”
É uma pena, mas Alvarez diz que não se recorda sobre o que conversaram. “Mas me recordo perfeitamente de seu aspecto.”
“O grande sacerdote [oficiante] de vagabundos — cuja obra está povoada de mendigos, loucos, senis precoces, aleijados que caminham com dificuldade [coxeiam], de pessoas metidas em urnas [caixões] e lixeiras, com areia até o colo ou destinadas a arrastar-se pela lama [barro] por toda a eternidade, de seres sem corpo, sem membros, sem nome — era um homem majestoso e de uma presença extraordinária: alto, ereto, atento, ascético, como um desses tantos nobres da pintura espanhola”, relata, com graça e olhar atento, Alvarez.

Samuel Beckett, no dizer de Alvarez, tinha a beleza de um falcão, “com algo de ave de rapina no perfil e um olhar firme, misterioso; não uma beleza violenta, e sim mais severa, distante, reservada”.
Durante a conversa, Samuel Beckett bebia uísque. “Sempre me atraiu mais a comida que a bebida, assim que olhava libidinosamente a mesa”, admite o memorialista.
Alvarez perguntou para Samuel Beckett: “Não quer comer algo?”
“Beckett contemplou desdenhosamente os manjares” e disse: “Não sou um glutão”. Envergonhado, Alvarez ficou ruborizado.
“Quando fui me despedir, Beckett sorriu amavelmente, encolheu os ombros e disse, resignado: ‘Que pena que não falamos sobre seu livro’.”
Samuel Beckett estava falando do livro “O Deus Selvagem”, de Alvarez? “Por algum motivo, tive certeza de que se referia ao livro que falava sobre ele. Nunca saberei.”
Um amigo de Samuel Beckett disse a Alvarez que o escritor “havia gostado do livro” no qual analisou a sua obra.
(As memórias de Alfred Alvarez — escritor britânico de origem judaica — saíram na Inglaterra em 1999 e foram publicadas na Argentina pela Editorial Entropía, em 2021. Não há edição brasileira.)
Leia sobre Beckett como diretor de cinema
