História da nora alemã de Getúlio Vargas que teria espionado o Brasil pra Alemanha do nazista Hitler

23 maio 2023 às 15h03

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[Texto publicado no “Diário da Manhã”, no início da década de 1990, e no Jornal Opção, com ligeiros ajustes, em 1996]
A espionagem em território verde-amarelo já rendeu um livro explosivo: “Suástica Sobre o Brasil — A História da Espionagem Alemã no Brasil” (Civilização Brasileira, 1977, edição esgotada), do brasilianista Stanley Hilton. O rigoroso trabalho de Hilton — um americano que escreve bem em português — será comentado adiante. Por enquanto, nossa atenção será voltada para o polêmico livro “Couraça da Alma” (Expressão e Cultura, 487 páginas, 1996), memórias do pintor Emmanuel Nery. O debate chegou ao mercado de ideias por intermédio do “Jornal do Brasil”, faz algum tempo, que optou por não consultar a obra básica de Hilton — não se sabe por quê. Se as pesquisas de Hilton tivessem sido citadas, a “guerrilha” do “JB” poderia ter sido ampliada ou, pelo menos, nuançada.
Nuançada pelo seguinte fato: em suas 567 páginas, a pesquisa amplíssima de Hilton não cita Ingeborg Ten Haeff como espiã do 3º Reich. Mas menciona gente muito mais importante.

O livro de Emmanuel Nery tem um mérito: reconta a história do médico ortopedista Lutero Vargas — filho de Getúlio Vargas — e de Ingeborg. Pena que não adicione documentos provando o que denuncia. O testemunho oral vale muito, mas, nesse caso, pode ser apenas suspeita.
Resumo da história: Ingeborg, mulher de Lutero Vargas, “espionou” o Brasil, especificamente o que acontecia no Palácio do Catete, para o entourage de Adolf Hitler. Ela nega (leia mais abaixo).
Nazismo ‘plantou’ espiã na família de Vargas
O “Jornal do Brasil” transcreve um trecho do livro. Embora longo, julgamos oportuno reproduzi-lo: “Eu tinha muito apego ao Lutero. Naquele tempo, eu não sabia que sua tristeza crônica era produto da injustiça que lhe fora reservada pelo destino. Um peso que Lutero carregava, amenizado com a bebida. Quando jovem, em meados dos anos 30, foi se especializar em ortopedia na Alemanha, estão nazista. Lá, cercado de deferências especiais por ser filho de Getúlio Vargas, ditador, designaram-lhe um assistente de alta competência.

“Com a convivência, Lutero se apaixonou pela bela e inteligente germânica. Voltaram para o Brasil casados. Nasceu uma filha. Passaram-se os anos e o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial (…) Pela sua posição como membro da primeira família do país, a alemã não foi internada como o resto de seus patrícios. Pelo contrário, continuou nas altas esferas do poder, circulando pelo palácio presidencial.
“Bem antes da capitulação alemã, Getúlio recebeu relatórios altamente secretos do serviço de contraespionagem norte-americano, provando o envolvimento da nora com espionagem e, ainda, revelando que, antes do conflito, ela fora plantada para assistir Lutero a fim de envolvê-lo emocionalmente, e se possível, casar com ele e se tornar uma olheira privilegiada dentro do governo brasileiro.
“Lutero foi obrigado a aceitar a brutal realidade sobre a mulher muito amada, assim como teve que assistir à sua discreta deportação para os Estados Unidos. Restou-lhe a filha, a quem passou a se dedicar de corpo e alma.” Com relativa discrição, chegou-se a comentar, não na reportagem do “JB”, que Ingeborg seria lésbica. (O romance histórico “Getúlio”, de Juremir Machado da Silva, publicado este ano pela Editora Record, reconta, com as cores da ficção, mas sem falsear a história, as relações de Lutero com Ingeborg.)
Pesquisador perspicaz, Hilton nada descobriu sobre o assunto. Mas expôs fatos nada lisonjeiros para os Estados Unidos e para a Inglaterra. O serviço de espionagem desses dois países elaborou muitas informações falsas e passou para o governo brasileiro como verdadeiras. Não está se dizendo aqui — não se tem provas contra ou a favor — que Ingeborg não tenha sido espiã nazista. Tão-somente se tenta explicitar que Getúlio Vargas recebeu informações falsas tão bem produzidas que pareciam verdadeiras.
(Antes, um comentário a respeito de Emmanuel Nery. O pintor, filho da poeta e deputada Adalgisa Nery [1905-1980] com o pintor Ismael Nery, teve como padrasto Lourival Fontes [1989-1967, conhecido como “corno da corte”, segundo Juremir Machado], o poderoso diretor do Departamento de Imprensa e Propaganda do Estado Novo, até 1943. Lourival Fontes, Goebbels mirim, tinha informações privilegiadas a respeito da atuação dos espiões alemães no Brasil, inclusive por ser simpático ao nazismo — ou nazista mesmo, segundo seus detratores. Sendo assim, certamente Emmanuel Nery deve ter informações de cocheira. O único problema é que ele não apresenta provas do que diz. Os documentos teriam sido levados por Lourival Fontes, depois da separação de Adalgisa.)
Depois de publicar a versão do Emmanuel Nery, o “Jornal do Brasil buscou a versão de Ingeborg, que descobriu nos Estados Unidos. A reportagem tem o título de “O fim do silêncio de Ingeborg” e foi publicada no dia 6 de outubro de 1996.
Ingeborg contesta a versão de pintor
Ingeborg nega, peremptoriamente, ter sido espiã de Hitler no Brasil.
Escreve a repórter Jennifer Gonzales: “Ingeborg foi localizada pelo “Jornal do Brasil” em Nova York e concordou em receber a reportagem em sua casa, um elegante apartamento no bairro do Village. Lá, essa alemã de aparência ainda atraente, nascida em Dusseldorf, gastou três horas e meia a contar o seu lado da história. Aos 76 anos, serena, ao lado do terceiro marido, John Githens, Ingeborg tem um encanto que não vem apenas do seu elegante porte ou de seus modos refinados. Ela tem uma personalidade que irradia doçura e calor humano”.
Quando Jennifer Gonzales explicou que é a acusada de ter sido espiã nazista por Emmanuel Nery, Ingeborg feicou nervosa (“suas mãos tremiam tanto que os pires” — ela estava levando as xícaras de café para a cozinha — “faziam barulho”). “Essa é uma acusação gravíssima. Esse senhor tem que fundamentar com provas uma declaração dessa natureza”, criticou.
A versão de Emmanuel Nery é algo parecida com a história que se conta de Olga Benario. Esta teria vindo ao Brasil, na década de 30, não para ajudar Luiz Carlos Prestes a fazer a revolução vermelha, mas para vigiá-lo. Estava a serviço de Stálin (diz-se, até, que seu objetivo era matar o presidente Getúlio Vargas). Emmanuel Nery também sustenta a tese de que, desde o início, Ingeborg havia sido plantada ao lado de Lutero com o objetivo de seduzi-lo. Em busca de informações privilegiadas para o 3º Reich.
Ingeborg conta uma história bem diferente. Ela garante que conheceu Lutero no dia em que ele chegou na Alemanha, em setembro de 1939. Ou seja, já com a guerra começada. A reportagem do JB não nota: mas em plena guerra, o “aliado” Getúlio Vargas, simpático ao nazismo ou esperto, como se diz hoje, fazendo jogo duplo, mandou um filho se especializar na Alemanha.
Conta Ingeborg: “Eu estava com algumas amigas em um restaurante perto de Berlim, quando Lutero e Alvarenga (seu amigo e primeiro secretário da embaixada brasileira) chegaram. Como o local estava lotado, eles perguntaram se poderiam juntar-se à nossa mesa. Lutero sentou-se ao meu lado e todos nós nos divertíamos muito. Ríamos muito dele, que só sabia falar Liebchen (meu amor) e Auf Wiedersen (adeus) em alemão”.
A atração por Lutero, um brasileiro baixinho, tem, segundo Ingeborg, uma explicação: “Ele era extremamente divertido, um bon vivant, capaz de gastar o salário de um mês inteiro em um lauto jantar com os amigos. Lutero brincava dizendo que só iria a uma festa se soubesse que eu estaria lá”.
Emmanuel Nery assegura que Ingeborg foi assistente de Lutero no hospital onde se especializou em ortopedia. Ela replica: “Essa história de que eu trabalhei como assistente dele no hospital é simplesmente falsa; nunca trabalhei como enfermeira ou coisa do tipo. Meu interesse sempre foi pelas artes”. Ela garante que, aos 20 anos, “era apenas uma estudante de teatro e não tinha o menor interesse em política”.
O livro de Emmanuel Nery diz que eles se casaram na Alemanha, o que é contestado por Inegborg. Lutero teria pedido a alemã em casamento por telegrama. “O autor desse livro que me acusa de espiã devia, no mínimo, checar as informações que declara verdadeiras, como a de que nos casamos na Alemanha.” Ela mostrou à repórter do “JB” recortes de jornais e fotos que comprovam que o casamento civil foi realizado no Palácio Guanabara, em 1940.
O relacionamento com a família de Vargas era bom, segundo Ingeborg. “Tive um relacionamento muito querido com Dona Darci [mulher de Vargas], que sempre me apresentava às pessoas como sua filha. E quando ficava doente, me pedia para estar junto dela. Almoçava e jantava no Palácio, mesmo antes de Cândida [filha de Lutero e Ingeborg] nascer.”
“Espiã” nega ter sido deportada
Sobre a deportação, revelada por Emmanuel Nery, Ingeborg também diverge: “Voltei ao país algumas vezes após a separação. Se tivesse sido deportada, como isso poderia acontecer?”
A respeito de sua separação, Ingeborg mostrou-se em dúvida.
Ela conta que, em 1944, quando sua filha Cândida tinha 3 anos, seu casamento estava em crise. “Foi então que, uma noite, Lutero disse que levaria Cândida a uma festa de aniversário. Quando voltou, ela não estava junto. Ele estava furioso, foi tirando todos os seus pertences da casa.”
A alemã frisa que Lutero não lhe deu uma explicação para o fim do casamento. Últimas palavras de Lutero, segundo a versão de Ingeborg: “Você tem todos os direitos sobre Cândida por ser a mãe, mas eu não deixarei que você a leve”.
Por que Ingeborg nada fez para obter a guarda da filha? “Como eu poderia lutar contra uma família tão poderosa quanto os Vargas?”, diz a alemã. (Assis Chateaubriand, alguns centímetros menos poderoso que Vargas, conseguiu aprovar uma lei para obter a guarda de sua filha Tereza.) A repórter do “JB” insiste: por que ela não procurou apoio em sua família na Alemanha? “Na época não podia contar-lhe que estava me separando, a história toda era ultrajante demais. Seria uma vergonha se soubesse da verdade”.
Uma amiga da família de Lutero, Nini Corrêa, fez o possível para Ingeborg rever a filha. Mas não foi possível. “Não quis fazer um escândalo, não faz parte da minha formação ou personalidade.”
Quando Cândida tinha 7 anos, Ingeborg voltou ao Brasil. O encontro entre as duas ocorreu no jardim de infância de uma escola. “Quando a vi, a agarrei e comecei a balbuciar: ‘Mamãe, é a tua mamãe’.”
A menina pensava que a mãe estava morta e não se emocionou com os abraços. Ingeborg diz que ficou muito triste. Sete anos depois, Cândida, com 14 anos, visitou Ingeborg em Nova York. O encontro não foi empolgante. “Ela escolheu voltar ao Brasil e ficar com seu pai.”
No Brasil, a repórter Cristiane Costa, do “JB”, ouvi Cândida Darci Vargas, então (1996) com 55 anos.
Quando sua mãe desapareceu de repente, a menina Cândida, com 3 anos, não conseguiu entender nada. “Fiquei no ar. Meu mundinho tinha acabado. Nunca me contaram por que razão meus pais se separaram. Fui juntando as coisas aqui e ali.”
Ela ironizou quando foi informada de que Ingeborg dizia ignorar os motivos da separação: “Que inocente! Minha mãe é uma artista”.
Cândida garante que jamais recebeu a informação de que a mãe era acusada de ser espiã nazista. Mas acha que o pai sofreu pressões políticas por ser casado com uma alemã. Para ela, o que motivou a separação foi a “imaturidade dos dois”.
Hoje, Cândida é divorciada, tem uma filha que também mora em Nova York, e vive em São Francisco de Assis, cidade próxima a São Borja, no Rio Grande do Sul. “Estou na lona. Perdi tudo.”
Lourival Fontes & Lacerda e o jogo duplo do Goebbels patropi
“Couraça da Alma”, de Emmanuel Nery (filho do pintor e desenhista paraense Ismael Nery [1900-1934], tido como precursor do surrealismo no Brasil) e da escritora Adalgisa Nery, traz também informações interessantes sobre Lourival Fontes, Carlos Lacerda e Samuel Wainer.
Emmanuel Nery, menino-jovem atento, presenciou cenas formidáveis nos bastidores dos governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951-1954). Um “defeito” ele assume: “Sei de coisas que mudaram a história. Mas não tenho provas escritas”.
As provas ocupavam um quarto inteiro, na casa de Lourival Fontes, o Goebbels sergipano, e Adalgisa Nery, que era admirada como mulher e poeta por políticos e intelectuais (ela teria sido amante de Getúlio Vargas). “Ele guardava tudo, até os recibos de gente contratada para bater palma nos comícios de Getúlio”, relata. Com a separação do casal, Fontes carregou os documentos, e Emmanuel nunca mais os viu. Mas reteve na memória coisas que eles relatavam, ou, então, ele mesmo viu.
A história política registra que Getúlio Vargas teve em Carlos Lacerda (1914-1977) um de seus inimigos mais ferozes. Lacerda fez o impossível para demolir Vargas. Conseguiu. Mais isso está devidamente anotado pelos historiadores. Por isso o que Emmanuel Nery revela é ainda mais interessante.
O pintor conta que, embora oficialmente inimigos, Lacerda e Fontes se encontravam com frequência. “Quando a coisa era muito importante, meu padrasto preferia marcar os encontros lá em casa. Um dia, vi o Lacerda chegando e fiquei de orelha em pé. Pude perceber que ela falava de Samuel Wainer [dono do jornal “Última Hora”] e dizia que também queria abrir um jornal. O Lourival pediu um tempo para conversar com Getúlio.”
Em novo encontro, na semana seguinte, Fontes apresentou a resposta negativa de Vargas. “Pois então diga para ele que de agora em diante tem em mim um inimigo”, teria respondido Lacerda. A história não está registrada no “Depoimento” de Lacerda, livro publicado pela Nova Fronteira.
Fontes era chefe da Casa Civil de Vargas, no governo democrático do gaúcho, mas não estava satisfeito. Avaliava que Getúlio, dia menos dia, cairia. Por isso aderiu à horda de Átilas de Lacerda. “O Lourival era honestíssimo e de absoluta confiança do presidente. Mas o vício do poder é pior que heroína ou cocaína. Ele já tinha experimentado o ostracismo uma vez, quando foi afastado do DIP, e nossa casa, de repente, ficou vazia. Não estava disposto a passar por isso de novo”, contemporiza Emmanuel Nery.
Segundo o memorialista, Fontes passou a ser “olheiro de Lacerda”, um dos principais líderes udenistas. “Tanto que, quando Getúlio morreu, sua filha Alzirinha não deixou que segurasse o caixão. E, mais tarde, foi eleito senador apoiado pelos partidos de oposição ao PTB. No Senado, era discriminado como um verdadeiro Judas.”
Samuel Wainer e a escolha errada
A história de como foi feito o jornal “Última Hora”, de Samuel Wainer, ganha nova versão. Em “Minha Razão de Viver”, memórias de Wainer editadas pelo jornalista Augusto Nunes, romantiza-se em termos a história do jornal. Não só. Wainer, o “Profeta”, amplia o seu papel na volta de Vargas à Presidência da República. Emmanuel tenta demolir o “herói”.
Assis Chateaubriand, uma águia política e uma raposa jornalística, chefão dos Diários Associados, mandou Samuel Wainer procurar Lourival Fontes com um objetivo: escrever uma série de reportagens com o velho ex-ditador, então sem poder, “exilado” em São Borja.
“Samuel tinha instrução de Chatô para satisfazer Vargas ao máximo antes de lhe apresentar a proposta de colocar seu imenso complexo de comunicação à disposição do provável candidato à Presidência”, relata Emmanuel Nery.
O objetivo de Chatô não era exclusivamente jornalístico. Se Getúlio fosse eleito, o rei do Brasil queria lançar mais um jornal. O baixinho sulista seria o financiador, ou, na pior das hipóteses, abriria as portas para Chateaubriand conseguir o dinheiro. Mas o tiro saiu pela culatra.
“O plano de Chatô era perfeito, exceto por três falhas fatais: escolheu o Samuca para tratar do assunto, usou seu grande inimigo Lourival para chegar a Getúlio e subestimou a fama de Vargas como uma das melhores raposas políticas do país”, conta o memorialista.
“Wainer fez tudo certinho e ganhou a amizade de Getúlio, usando a imprensa do chefe… para lhe passar a perna e obter seu próprio jornal e o financiamento do Banco do Brasil. Assim nasceu o diário “Última Hora”, e não como foi afirmado na autobiografia de Samuel”, diverge Emmanuel.
Há outra história fascinante: Adalgisa Nery despertou paixões em Diego Rivera, “com quem Emmanuel chegou a realizar alguns murais”. O pintor Diego Rivera (1886-1957) foi a grande paixão da pintora Frida Kahlo, que também esteve nos braços do russo Trótski, no México.
Conexão patropi
Plínio Salgado ‘espionou’ para o governo nazista
A história da espionagem fascina. Até porque é cercada pelo glamour talvez fabricado pelo cinema. Kim Philby, por exemplo, ficou famosíssimo. Sua história de agente duplo (por 30 anos!) está bem contada em “O Terceiro Homem”, de E. H. Cookridge (Nova Fronteira, de 1968). Harold Adrian Russel Philby era agente da Inglaterra e, sobretudo, da União Soviética — ao lado de Guy Burgess e Donald MacLean. O terceiro homem era amigo do escritor inglês Graham Greene. Amigo e seu chefe no serviço de espionagem inglês (veja o final deste texto). Mas a espionagem não tomou conta só da Inglaterra, Portugal e Estados Unidos. Também atingiu o Brasil. É o que nos conta Stanley Hilton, em “Suástica Sobre o Brasil — A História da Espionagem Alemã no Brasil” (Editora Civilização Brasileira).
O que se vai ler aqui é um resumo das 357 páginas da obra do brasilianista, até hoje não superada e, mesmo questionada, não desmentida.
A Alemanha nazista tinha um interesse especial pelo Brasil, mais importante e maior país da América Latina. Por isso, o chefe do Serviço Militar de Informações do Terceiro Reich (o Abwehr — defesa, resistência), almirante Wilhelm Canaris, que falava português e, durante a Primeira Guerra Mundial, teria sido amante de Mata Hari, decidiu mandar para o Brasil um grupo de espiões.
Os técnicos alemães, escreve Hilton, “desenvolveram três meios de comunicação a longa distância. Um consistia no emprego de tintas secretas para relatórios escritos; agentes do Abwehr usavam três tipos diferentes, o mais comum sendo a tinta obtida através da dissolução de um comprimido de piramidon em álcool. Uma invenção técnica engenhosa foi o famoso microponto. Com um aparelho especial, os alemães podiam fotografar e reduzir ao tamanho do ponto da letra i uma folha de papel inteira. O microponto então podia ser escondido no texto de uma carta, ou simplesmente fixado ao exterior de um envelope, e colocado no correio; com um microscópio, podia ser lido facilmente”.
Mas “a base do sistema de informações do Abwehr era a comunicação radiotelegráfica”. Conta Hilton: “Para os agentes no exterior, o Abwehr, com a assistência técnica da Telefunken, desenvolveu um transceptor — aparelho de transmissão e recepção — especial, o aparelho-de-rádio-para-agentes, ou Afu. Esse aparelho pesava apenas 13 quilos e podia ser facilmente escondido numa maleta. O Afu viria a se tornar a mais importante arma dos espiões enviados pelo Abwehr ao Novo Mundo”.
Amizade germânica com o governo de Vargas
Antes de passar diretamente à história da espionagem, Hilton revela dados interessantes. “Entre 1934 e 1939 seu comércio com este país [do Brasil com a Alemanha] dobrou.” Ou seja, o comércio com a Alemanha durante o regime nazista cresceu. “Em 1938 o Brasil forneceu mais de 30 por cento das importações de algodão do Reich, e este foi o maior comprador de borracha brasileira.”
“Os estrategistas alemães consideravam o Brasil um país basicamente amigo, do ponto de vista político”, nota Hilton. “Em 1937 e 1938, o Exército brasileiro assinou importantes contratos de armamentos com a Casa Krupp, e a polícia de segurança brasileira já estabelecera ligações com a Gestapo (desde 1935) visando coordenar medidas anticomunistas.”
Hitler chegou ao poder em 1933 e em 1939 explodiu a Segunda Guerra com a invasão da Polônia. Mas o Brasil não se importou tanto com isso. “Em vésperas da eclosão da guerra em setembro de 1939, uma reaproximação diplomática entre os dois países (Brasil-Alemanha) se efetivou”, conta o brasilianista.
Por que o Brasil? O país não era interessante só do ponto de vista comercial. “Havia pontos militarmente estratégicos nas Américas — o Canal do Panamá e o Nordeste do Brasil eram os mais óbvios — que deveriam ser vigiados”, observa Hilton.
Mais: os técnicos do Abwehr “descobriram que a comunicação radiotelegráfica com a América do Sul era muito mais fácil do que com os Estados Unidos. E, de todos os países daquela região, o Brasil era o lugar mais indicado para concentrar as atividades de espionagem”.
O governo nazista não só mandou espiões para o Brasil como contratou alemães, principalmente comerciantes, que já moravam no país. O engenheiro Albrecht Gustav Engels, talvez o mais importante deles, chegou ao Brasil em 1923 (um ano depois de o desconhecido Hitler tentar um golpe, em Munique, e pegar uma cana). Com o codinome Alfredo, Engels começou a espionar o Brasil em 1939.
Alfredo enviava as informações pelo correio. “No começo, os relatórios foram camuflados como simples cartas comerciais, com determinadas palavras representando itens militares e industriais.” Depois, montou-se um poderoso radiotransmissor clandestino, batizado com o nome de “Bolívar”.
Hilton frisa que, “já em fins de abril (de 1940), o Almirantado Britânico, como resultado das grandes perdas no Mediterrâneo, resolveu desviar todos os navios mercantes, menos os muito velozes, para rotas em torno da África do Sul, o que significava considerável aumento no valor estratégico dos portos brasileiros que serviam de pontos intermediários entre a África do Sul e a Inglaterra”.
“À medida que a atenção do Abwehr se voltava para o Atlântico”, assinala o historiador, “e aumentava a importância da América do Sul para o esforço de guerra inglês e para a mobilização americana, o interesse dos estrategistas militares alemães pela melhoria e expansão de seu aparato de espionagem no Brasil aumentava proporcionalmente. Como resultado, foi tomada em Berlim a decisão de pressionar Engels (Alfredo) no Rio de Janeiro a organizar uma rede de informações mais ampla e a empregar um radiotransmissor para eliminar a demora na comunicação.
Há historiadores que dizem que a Alemanha ainda não estava preparada para uma guerra mundial em 1939. Alguns dados sugerem isso. “A Alemanha, em setembro de 1940, dispunha de um total de 39 submarinos, exatamente o mesmo número do ano anterior, quando a guerra eclodira. A escassez de submarinos tornava mais complicada a tarefa (enviar submarinos para o Atlântico Sul, exatamente porque localizar os comboios anglo-americanos era tão difícil). Para empregá-los de maneira eficaz, informações mais completas e mais atualizadas teriam que ser obtidas. Isto era responsabilidade do Abwehr, cujo interesse pela expansão de seu posto de escuta no Brasil motivou o despacho, na primavera de 1940, de um agente especial (Alfred Becker) cuja missão era, primeiro, persuadir Engels a chefiar uma rede mais ampla e, segundo, ajudá-lo a montar uma estação de rádio”.
Sozinho, Engels não conseguiria montar o serviço de espionagem. Por isso entrou em cena o capitão Hermann Bohny, adido naval assistente na Embaixada no Rio de Janeiro, sob as ordens do capital Dietrich Niebuhr. Bohny recrutou Hans Otto Meier, “que conhecia profundamente o setor de transporte marítimo e que estava em posição de conseguir informações detalhadas e fidedignas”. Meier era gerente da Seção de Navegação da empresa Hermann Stoltz. (O Abwehr procurava recrutar basicamente “indivíduos com experiência militar e que já tinha agido, no setor comercial ou industrial, no Brasil”.)
Mas não foi fácil montar o serviço de espionagem. Só em março de 1941 é que Engels e o Abwehr conseguiram estabelecer os detalhes do serviço radiotelegráfico. Um técnico da Telefunken, Beno Sobisch, foi o principal responsável pela montagem do sistema.
Nesse mesmo ano, o FBI quase desarticulou o aparato de espionagem alemã nos Estados Unidos. Assim, o serviço de espionagem no Brasil se tornou ainda mais importante.
Informante no Palácio do Catete
O objetivo dos espiões era: “Fornecer informações sobre todos os aspectos da navegação entre a América do Sul, a Inglaterra e os Estados Unidos, e sobre a mobilização norte-americana para a guerra. (…) No Brasil, as informações mais valiosas sobre os assuntos navais anglo-americanos chegavam do posto de escuta no Recife. Com os submarinos sendo concentrados na área do Mediterrâneo, o Abwehr se tornou ainda mais ansioso para obter dados concretos sobre as rotas de comboios para a Inglaterra e o Mar Vermelho”.
Anota Hilton: “O Abwehr se interessava de modo especial pelas atividades militares norte-americanas no Nordeste, e, ainda em setembro, pediu que Engels investigasse uma base aérea que estaria sendo construída em Fernando de Noronha e os rumores de que ‘inúmeros aviões de bombardeio norte-americanos estão sempre presentes ali’” (em setembro de 1941).
Uma informação realça o que está na primeira matéria, sobre a possibilidade de uma nora de Getúlio Vargas, Ingeborg, ter sido espiã nazista. “Engels também acompanhava de perto os rumos da política externa brasileira, especialmente as relações do Brasil com os Estados Unidos. Suas comunicações com a Alemanha, aliás, indicam que ele tinha um informante dentro do Palácio do Catete, servindo no gabinete de Getúlio Vargas!”, exclama o historiador. Ingeborg, tudo indica, não trabalhava no gabinete de Vargas, mas tinha acesso à família do presidente.
Depois de Engels, outro espião muito importante, Josef Starziczny (codinomes Lucas e Niels Christensen), era engenheiro mecânico e inventor. “Foi ele que conduziu as experiências para determinar o meio mais seguro de fazer transmissões dos Estados Unidos e da América do Sul para a Alemanha. O resultado dessas experiências foi a descoberta de que o mais certo seria colocar na América do Norte estações clandestinas de baixa energia que transmitiriam para estações na América do Sul; estas, por sua vez, seriam mais poderosas e poderiam comunicar à Alemanha as informações recebidas do Norte”.
Lucas cometeu duas falhas imperdoáveis para um espião. Tinha uma das manias de Luiz Carlos Prestes: registrou suas atividades e guardou documentos. E apaixonou-se pela brasileira Ondina Peixoto de Oliveira.
Enquanto as relações entre Brasil e Alemanha iam bem, os espiões alemães agiam com extrema facilidade sob o beneplácito do chefe de polícia, Filinto Müller, que tinha ardente admiração pelo nazismo. Em seguida, com o esfriamento e o rompimento das relações, o serviço de espionagem foi desmontado com facilidade.
Mas, segundo Hilton, “o maior golpe dado pelos serviços de informações anglo-americanos na guerra secreta contra o Abwehr no Brasil foi algo com que os planejadores militares do Reich não contavam e algo que seus agentes no Brasil teriam achado inacreditável: a interceptação e decifração das mensagens radiotelegráficas trocadas entre postos do Abwehr na Europa e as várias células que agiam no Brasil!” O serviço de espionagem britânico também manteve um agente infiltrado no grupo alemão.
Conexão brasileira e o poeta espião
Presos, os espiões alemães foram torturados pela mesma polícia que antes fazia vista grossa.
Com a prisão dos espiões alemães, começou-se a priorizar espiões brasileiros. O capitão Túlio Regis do Nascimento, recrutado pelo capitão Bohny e pelo embaixador Pruefer, apesar de meio maluco, foi um dos mais eficientes. O poeta e jornalista Gerardo Mello Mourão, ex-correspondente da “Folha de S. Paulo” na China, também espionou para os alemães. Ele era integralista, como Miguel Reale, dom Helder Câmara, San Thiago Dantas e Gustavo Barroso.
Plínio Salgado, o escritor e líder integralista, também “foi” espião nazista. Escreveu o chefe do serviço secreto americano em Lisboa: “Como os americanos têm, no serviço alemão aqui, um agente, procuraram saber quem é o (agente) X. Resposta: Plínio Salgado”.
Segundo Hilton, os contatos entre Plínio Salgado e agentes alemães teriam sido feitos em 1941. O alemão Walter Schellenberg declarou: “Eu mesmo fui responsável por este contato (com Salgado)”. O agente Emil Schroeder tem outra versão: foi o próprio Plínio quem tomou a iniciativa de promover um encontro com ele, Schroeder.
Plínio “baseava sua oferta (de colaboração) na condição de que a Alemanha o reconhecesse, por assim dizer, como o líder político do Brasil”, lembraria Schellenberg. “Ao mesmo tempo, ele queria o apoio de nossa experiência para estabelecer um serviço secreto e nosso apoio material também.”
Ao contrário de Emmanuel Nery, Hilton documenta pelo menos a maior parte de suas informações. O que faz de seu livro uma obra de referência e, quem sabe, pode até mesmo incentivar algum ficcionista a escrever um grande romance sobre a atuação dos espiões alemães no Brasil (barbaramente torturados, diga-se).
O livro de Hilton provocou polêmica quando foi lançado. Há certas questões que podem ser revistas, ao menos em parte. Gerardo Mello Mourão é um dos maiores poetas brasileiras e só não é mais reconhecido, provavelmente, em decorrência de seu passado político. Pound, um poeta menor (o que dizer ruim) e copidesque maior (de James Joyce e T. S. Eliot), tem sido muito mais “perdoado” do que Mourão. A “ditacreta”, ditadura dos concretistas, e a “ditaquerda”, ditadura da esquerda, não permitem que um poeta da qualidade de Mello Mourão, que não faz parte das duas seitas, tenha maior reconhecimento.
Graham Greene e Kim Philby
Em “Pontos de Fuga” (Editora Record), Graham Greene conta, à página 177: “Logo depois que a guerra acabou, meu amigo Alberto Cavalcanti, o diretor cinematográfico brasileiro, pediu-me que escrevesse um filme para ele.
“Pensei em escrever uma comédia sobre o Serviço Secreto (inglês), baseada no que eu aprendera, com meu trabalho em 1943-44, sobre a atividade da Abwehr alemã em Portugal. Eu voltara da Freetown — após meus fúteis esforços de contrabandear agentes para as colônias de Vichy — e fora indicado para o subsetor de Kim Philby, em nosso Serviço Secreto, que lidava com a contraespionagem na Península Ibérica. Eu era responsável por Portugal. Lá, os oficiais da Abwehr, ainda não subornados por nosso próprio serviço, passavam a maior parte do tempo mandando para seu país informes completamente errôneos, baseados em informações recebidas de agentes imaginários. Era um jogo compensador, especialmente quando as despesas eram pagas e acrescentadas gratificações aos algarismos do salário, um salário garantido. A sorte do governo alemão, declinava e é assombroso como a concepção de honra se altera, na atmosfera da derrota”.
“O Fator Humano” é uma biografia romanceada de Philby? Segundo Greene, não é. “Sei muito bem, através da experiência, que só posso basear numa pessoa real um personagem muito menor e efêmero. Uma pessoal real serve de obstáculo à imaginação”, garante Greene. Mas Philby gostou do livro. (O romance “O Terceiro Homem”, de Greene, é sobre Philby. Resultou num belo filme de Carol Reed, com a participação, como ator, de Orson Welles.)
“Enviei um exemplar do livro para Moscou, para meu amigo Kim Philby, e sua resposta me interessou. Sua crítica era válida. Eu tornara as circunstâncias da vida de Castle em Moscou, ele escreveu, demasiado sombrias. A ele tinham dado tudo, até uma calçadeira de sapatos, coisa que nunca tivera. (Era verdade, acrescentou, que sua importância como agente superava a de Castle)”, relata Greene (páginas 221 e 222).
O espião que saiu do Sul
Ligações perigosas do presidente Getúlio Vargas
Historiador suspeita que o próprio Vargas, usando assessores, passava informações aos nazistas
Os historiadores até hoje discutem as simpatias do presidente Getúlio Vargas pelo nazismo. O baixinho gaúcho, um paquerador de primeira, jogava, maquiavelicamente, com a Alemanha e com os Estados Unidos. A rigor, ele sentia simpatias pelo Reich. Mas dominava como ninguém as artes da política. Só apoiou os EUA quando conseguiu benesses — como a usina siderúrgica de Volta Redonda —, não para si, e sim para o país.
Em 1940, um discurso de Vargas foi elogiado por Mussolini. “O próprio Mussolini enviou um telegrama particular a Vargas expressando sua ‘profonda soddesfazione’. Numa manobra tipicamente maquiavélica, Vargas, após assegurar Washington de suas simpatias, teve um encontro particular com o embaixador alemão, Kurt Pruefer, e procurou convencê-lo de seus sentimentos pró-Eixo”, ressalta Hilton.
Em conversa com Pruefer, Vargas disse que a pressão americana sobre seu governo estava aumentando, como indicavam os convites repetidos para visitar Washington. Afirmou que seria “constrangedor” ir aos Estados Unidos, posto que, em vista das declarações de Franklin D. Roosevelt a respeito da política do Reich na América do Sul, “sua visita a Washington seria sem dúvida interpretada e explorada como aprovação da política norte-americana”.
Vargas disse ao embaixador alemão que só iria aos Estados Unidos como mediador. Estaria Berlim disposto a autorizá-lo a sondar o terreno? Pruefer levou a proposta ao governo alemão, que recusou a mediação do líder brasileiro. “Mesmo se ele falasse em termos gerais a Washington e não mencionasse sua conversação com o senhor” (Pruefer), von Ribbentrop informou a Pruefer quatro dias depois, “seria, não obstante, suspeitado que ele fosse incitado pela Alemanha; isto poderia levar a conclusões erradas, já que a Alemanha não tem a menor razão para pedir qualquer iniciativa no sentido de propostas de mediação”.
Ainda em 1941, o alemão Pruefer, por intermédio de Benjamin Vargas, voltou a se encontrar, secretamente, com Getúlio Vargas. Vargas teria dito que ingleses e americanos estavam “muito arrogantes”. Benjamin disse que Getúlio queria lembrar a Pruefer “que havia uma grande distância entre as palavras e os atos” e que ele não pretendia interromper as relações com a Alemanha, “ainda que Washington o pressionasse a rompê-las”.
A história dos informantes brasileiros a serviço dos alemães não é suficientemente esclarecida por Hilton. “O embaixador Kurt Pruefer e o adido militar, general Niedenfuhr, recebiam de autorizadas fontes oficiais brasileiras informações confidenciais de natureza algumas vezes adulterada, mas geralmente correta”, diz o brasilianista. “As dificuldades estariam em determinar até que ponto a transmissão de informações por tais fontes representava solidariedade político-ideológica com os alemães, ou simplesmente obedecia a razões de alta política do Estado”, suspeita o historiador.
O embaixador Pruefer tinha o hábito de transmitir informações de uma fonte no Itamarati. Um coronel anônimo do Exército também era um conduto de informações à Embaixada alemã. O coronel “aparentemente era muito ligado ao general Dutra” (pró-nazista declarado, ao menos até um determinado período). A palavra “aparentemente”, para um historiador, é perigosa. Pouco ou nada acrescenta.
Mas, noutro ponto, Hilton vai além das ilações: “Outra pessoa que ocupava posição estratégica e que passava aos alemães notícias sobre assuntos políticos era Luiz Vergara, chefe de gabinete de Vargas. De acordo com um telegrama de Pruefer no início de 1941, Vergara encarava ‘a Alemanha com simpatia’ e mantinha contato com a Embaixada. Durante o período de crise e tensão inaugurado pelo ataque japonês a Pearl Harbor, Vergara aparentemente se comunicava frequentemente com Pruefer. ‘O secretário do presidente Vargas acaba de avisar-me que a declaração oficial da solidariedade com os Estados Unidos tem apenas valor platônico’, Pruefer telegrafou na manhã do dia 9 de dezembro (de 1941). ‘Não se pretende romper as relações com o Japão’”.
“No dia 21 de janeiro (de 1942), Pruefer avisou a Berlim que Vergara o procurava para dizer que Washington estava ameaçando Vargas até com um boicote econômico, caso não rompesse com os países totalitários, história extravagante, mas na qual o oficial alemão estava psicologicamente disposto a acreditar”, registra Hilton.
O que Hilton acrescenta é mais grave: “O que é provável, parece claro, é que Vergara, ao transmitir informações à Embaixada alemã, agisse sob ordens diretas de Vargas, que, conhecido maquiavélico que era, desejava até o fim proteger sua posição no campo alemão. As informações que Vergara transmitia — que Vargas realmente não tinha nada contra a Alemanha, mas que estava sendo sujeito a pressão brutal pelos americanos — eram grosseiramente exageradas, como demonstram documentos americanos e brasileiros, e tinham o propósito calculado de reforçar o que os alemães queriam acreditar. É importante levar em conta, a esse respeito, que o próprio Vargas, em horas menos críticas, se encontrava em particular com Pruefer para assegurá-lo de suas simpatias pró-germânicas”.
Mas o informante mais importante do Catete, se não era o próprio Vargas, suspeita-se que fosse o diplomata Fernando Nilo Alvarenga.
Em meados de setembro de 1942, Vargas removeu de seu posto o diplomata Fernando Nilo Alvarenga, que havia muito era membro do gabinete presidencial. “Sabe-se que Nilo Alvarenga mantinha relações amistosas com Albrecht Gustav Engels, o autor das mensagens ‘Alfredo’ interceptadas e que está atualmente sob custódia”, explicou o embaixador americano Jefferson Caffery.
A Embaixada (americana) suspeitava ter ele fornecido a Engels boa parte das informações políticas contidas nas mensagens radiotelegráficas e de ter sido o contato dos alemães dentro do Palácio do Catete (o que aparentemente isentaria Ingeborg). “Devo mencionar”, comentou Caffery, “que a maior parte das informações confidenciais que ele passou a Engels eram completamente errôneas.”
Golpe nazista no Brasil de Vargas
Por absurdo que possa parecer hoje, os Estados Unidos temiam um golpe nazista no Brasil. Por causa do Exército (Góes Monteiro, Dutra), que tinha simpatia pelos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). “A Escola de Guerra do Exército (Army War College) completou um estudo secreto que visava determinar quantas tropas norte-americanas seriam necessárias para suprimir um levante nazifascista no Brasil”, relata Hilton.
Em julho de 1942, Benjamin Vargas ligou para Oswaldo Aranha e informou que havia boatos a respeito de um golpe contra Getúlio. Aranha ligou para Filinto Müller. Este, irritado, chamou Aranha de alarmista. Discutiram. “Nessa altura, esgotada minha paciência, respondi-lhe com um palavrão e cortei o telefone”, disse Aranha a Getúlio. Ainda em julho, Filinto Müller chegou a ser preso por dois dias, mas acabou protegido pelo Exército.
A Alemanha nutriu durante muito tempo esperanças em relação a Vargas. Escreveu Joseph Paul Goebbels, o ministro da Propaganda e da Informação: “O Ministério do Exterior orientou-me a respeito da situação no Brasil (em fins de março de 1942). Trata-se de uma amarga luta entre o presidente Vargas, que está mais ou menos de nosso lado, e o ministro do Exterior, Oswaldo Aranha, que evidentemente é um sujeito comprado por Roosevelt e que está fazendo o possível para provocar um conflito com o Reich e as potências do Eixo”.
Goebbels dizia que a Alemanha pensava em retaliar. “Não temos, infelizmente, quaisquer facilidades para represálias. Temos aproximadamente 600 brasileiros em nossas mãos, enquanto no Brasil há 150 mil alemães. As possibilidades de um contragolpe econômico também são extraordinariamente limitadas de nossa parte, já que não controlamos, em capital brasileiro, a décima parte do capital alemão que os brasileiros possuem. Assim, temos que ser bastante cuidadosos”, lamentou Goebbels.
Com a aliança entre Brasil e EUA se ampliando, Hitler autorizou, em 1942, ataques aos navios brasileiros em águas territoriais do Brasil e, no início de julho, um grupo de dez submarinos partiu de portos franceses para águas brasileiras.
Em 15 de julho de 1942, os alemães “lançaram o ataque, pondo a pique cinco navios em três dias e matando mais 600 pessoas. Em 22 de agosto, em resposta à tremenda pressão popular, Vargas anunciou que um Estado de guerra existia entre o Brasil e o Eixo europeu”.
Livros para entender o período e o Brasil
O leitor que não busca livros de especialistas, mas obras mais cheias de vida, devem garimpar duas boas fontes de informação a respeito do período comentado aqui. Não se trata de obras sobre espionagem. São textos que revistam o Brasil. O melhor é “O Mundo Em Que Vivi”, do diplomata Pio Corrêa, Editora Expressão e Cultura. Infelizmente, talvez por causa das patrulhas ideológicas (o autor é conservador), as memórias de Pio não alcançaram a repercussão justa. Mas é um livro de balacobaco sobre a história brasileira do século 20. Imperdível.
Uma preciosidade das memórias de Pio, na página 168: (Pedro Aurélio Góes Monteiro) “Fez e desfez presidentes, dominou absolutamente o cenário militar e frequentemente o cenário político, e morreu pobre, dono apenas de uma pequena casa à rua que hoje leva o seu nome”.
Mais um pedaço do que podemos chamar de história miúda: Góes Monteiro “era feio, de uma fealdade glabra e balofa de índia velha — coisa que, aliás, em nada o preocupava, pois por felicidade para ele achava-se, em todo o caso, muito mais bonito do que o seu eterno rival, general Eurico Gaspar Dutra. (…) Perguntava-me, rindo: ‘Pio, você já reparou como o Dutra é feio?’” Góes Monteiro andava mal arrumado, amarrotado. “Sempre às voltas com uma dentadura postiça mal-ajustada”. São pedaços de vida que não se encontram na maioria dos livros ditos sérios e, às vezes, chatos e mal ajambrados.
O segundo livro é “Oswaldo Aranha — Uma Biografia”, de Stanley Hilton, Editora Objetiva. É um excelente estudo sobre esse político só mais recentemente explorado com mais liberdade e menos preconceitos. Antes, Aranha era notado tão-somente como americanófilo. Hilton consegue situá-lo melhor historicamente.
Num trecho, Hilton volta a discutir, rapidamente, a espionagem alemã. Na página 385, demarca-se a posição de setores do Exército em relação à posição brasileira a respeito do nazismo. “Dutra e Góes Monteiro se opunham a um rompimento com Berlim por causa da fraqueza militar do país e chegaram a colocar seus cargos nas mãos do chefe do governo. (…) Para os chefes militares havia dois problemas fundamentais no relacionamento com os Estados Unidos: (1) aquele país falhara em quase todas as suas promessas sobre assistência material para as forças armadas e (2) Washington não entendia que, para o Brasil, a principal preocupação estratégica era a Argentina”.
Há outra informação interessante no livro de Hilton: Getúlio Vargas, ao contrário de Oswaldo Aranha, não apostou na Revolução de 30 desde o início. Tentou contemporizar com o presidente Washington Luís, negociando com os dois lados, os revolucionários e os governistas, até o último momento, quando se tornou o líder, “inconteste”, do golpe que os historiadores chamam de revolução.
Ana Arruda Callado é autora de um livro interessante, mas pouco extenso: “Adalgisa Nery — Muita Amada e Muito Só” (Editora Relume Dumará, 146 páginas).