Harold Bloom diz que, embora filho de Sterne, Machado de Assis é um escritor original

03 novembro 2019 às 00h01

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“Memórias Póstumas de Brás Cubas” contém atmosfera tão original que não permite comparação com qualquer outro texto ficcional

Harold Bloom, falecido recentemente, aos 89 anos, era mais apaixonado por Literatura do que por teorias literárias, embora as conhecesse bem. Uma de suas obsessões era apontar a influência de um autor noutro autor e como cada escritor — poeta ou prosador — transformava tal influência, repetindo o que havia absorvido ou acrescentando um ponto “novo” à história literária. Para o crítico americano, o dramaturgo e bardo britânico William Shakespeare era Deus – o inventor do homem moderno. Jesus Cristo, digamos, era Walt Whitman ou, quem sabe, Hart Crane — a grande paixão do autor de “O Cânone Ocidental” (Objetiva, 752 páginas, tradução de Marcos Santarrita). Acusa-se, com frequência, o crítico que escreveu “A Angústia da Influência — Uma Teoria da Poesia” (Imago, 208 páginas, tradução de Marcos Santarrita) de menosprezar a literatura não europeia e não americana. Ora, se tivesse escrito apenas sobre Shakespeare, Milton, Walt Whitman, Emily Dickinson e Hart Crane, dois britânicos e três estadunidenses, já merecia ser consagrado como um crítico da linhagem de Samuel Johnson. Mas escreveu também — e muito bem — sobre Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, europeus de Língua Portuguesa, Machado de Assis, Jorge Luis Borges (cita a “frase crucial” de seu ensaio “Kafka e Seus Precursores”: “O fato é que cada escritor cria os seus precursores”), Alejo Carpentier e Octavio Paz. Menciona também o português José Saramago.
No livro “Gênio – Os 100 Autores Mais Criativos da História da Literatura” (Objetiva, 828 páginas, tradução de José Roberto O’Shea), Harold Bloom só escreve a respeito de autores mortos, mas não deixa de mencionar, aqui e ali, José Saramago, sempre elogiosamente. Ao escrever sobre Camões, assinala: “O critério que estabeleci, de não considerar gênios ainda vivos, obriga-me a excluir o maravilhoso ficcionista José Saramago, um dos últimos titãs de um gênero literário agonizante” (o escritor português morreu em 2010, aos 87 anos; o livro de Bloom é de 2002). Noutra página, acrescenta: “O poeta mexicano Octavio Paz foi o maior homem de letras, talvez insuperável, do seu país, e foi um dos poucos ganhadores recentes do Prêmio Nobel de Literatura (1990) que emprestou dignidade ao Prêmio (José Saramago foi outro)”. Na análise da poesia de Fernando Pessoa, faz outra referência ao autor de “Memorial do Convento”: “José Saramago, que, a meu ver, atualmente, é o romancista mais talentoso do mundo, sepulta o sebastianismo na excepcional fantasia sobre temas pessoanos — ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’ —, que demonstra os estertores do fervor cruzado ibérico, na transição do fascismo português de Salazar ao fascismo espanhol de Franco”.

José Maria Machado de Assis (1839-1908), o autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, ganha oito páginas em “Gênio”. O leitor brasileiro, com acesso à crítica literária dos últimos anos, certamente não encontrará uma leitura tão aguda da prosa do Bruxo do Cosme Velho. Nós temos interpretações de, entre outros, Alfredo Bosi, Roberto Schwarz, John Gledson, Wilson Martins, Jean Michel Massa (seu grande biógrafo), Dau Bastos (autor de ótima biografia), Ivan Junqueira, Hélio Seixas, Helen Caldwell, Sérgio Paulo Rouanet, John Updike, Susan Sontag, Carlos Fuentes. O grande Bloom fica menor perto da plêiade. Mas não tão menor.
Harold Bloom começa apontando que Machado de Assis é “o maior discípulo de Laurence Sterne no Novo Mundo”. “Machado, ironista genial, jamais ataca a sociedade diretamente, mas através de uma comédia astuta e um niilismo intimidante. A alienação de Brás Cubas é esplêndida, sua amabilidade, maravilhosa: ele jamais sofre e, por conseguinte, jamais sofremos com ele. Todavia, uma frieza misteriosa emana das suas ‘Memórias Póstumas’, obra que contém atmosfera tão original que não permite comparação com qualquer outro texto ficcional, a despeito do débito inicial com Sterne”. Há uma reinvenção de Sterne? Talvez seja menos inapropriado sugerir que o brasileiro usa o irlandês para criar uma nova “tradição”… machadiana.
Para Harold Bloom, “o verdadeiro tema de Machado de Assis é a nossa mortalidade, o que não constitui assunto para descaso e gracejo; no caso de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, o tema enseja uma perspectiva, ao mesmo tempo, distanciada e hilária. O gênio da ironia propiciou-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis, a meu ver, o maior literato negro surgido até o presente. Machado teria desprezado a minha observação, como mais uma piada digna de Tristram Shandy”. Será que Machado de Assis imaginava que, um dia, estaria sendo criticado, positivamente, por um dos mais importantes críticos literários de seu tempo (não o do brasileiro)? Consciência de seu imenso talento, obviamente, o autor de “Quincas Borbas” tinha. Mas ninguém, nem os gênios, sabe como o tempo o tratará. Frise-se que Machado de Assis nasceu há 180 anos e morreu há 111 anos. No ano em que morreu, em 1908, nasceu outro gênio literário brasileiro, João Guimarães Rosa, autor do romance “Grande Sertão: Veredas”, não examinado por Harold Bloom.

Os tradutores Gregory Rabassa, que pôs “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba” de pé em inglês, e John Gledson (excelente crítico do brasileiro), que verteu “Dom Casmurro” para a língua de Shakespeare, são elogiados por Harold Bloom.
Machado de Assis, que reinventou o Brasil por meio da literatura, “aproxima-se mais de Sterne do que qualquer outro escritor, inclusive do Dickens de ‘As Aventuras do Sr. Pickwick”. O “espectro” do escritor europeu “possuiu Machado”, sugere Harold Bloom. “Não quero negar originalidade e energia criativa ao mestre brasileiro, mas apenas registrar que o espírito de Sterne libertou Machado de quaisquer exigências meramente nacionalistas que o Brasil porventura pretendesse lhe impor”.
O milagre brasileiro
O prosador patropi, no dizer de Harold Bloom, “é uma espécie de milagre, mais uma demonstração da autonomia do gênio literário, quanto a fatores como tempo e lugar, política e religião, e todo o tipo de contextualização que supostamente produz a determinação dos talentos humanos”.
O crítico frisa que havia se “apaixonado” pela obra de Machado de Assis, notadamente “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, antes de saber que se tratava de um indivíduo “mulato e neto de escravos” (curiosamente, Harold Bloom diz que, se pensou que Machado de Assis era branco, achou que o cubano Alejo Carpentier era negro).

O romance “Indignação”, de Philip Roth, é calcado em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, pois trata-se de um morto contando sua história — e o americano admitiu a influência. Harold Bloom anota: “Yorick, alter ego, de Sterne, morre mas retorna algumas vezes, depois de morto, ressurreições que inspiraram Machado de Assis a permitir a Brás Cubas a escritura de suas memórias póstumas”.
“Toda a narrativa” de “Memórias Póstumas”, postula Harold Bloom, “é escrita a partir da perspectiva da eternidade, sobre a qual Machado nada nos diz, sugerindo, por conseguinte, nada haver a relatar. Ironista cético que brinca com a viabilidade da loucura — assim como o fazem Cervantes, Swift e Sterne —, Machado permanece além das crenças, mas não além da crença na tradição literária europeia”.
De repente, Harold Bloom corta e comenta, en passant, “Dom Casmurro”. “Obra tão bela e sutil quanto ‘Brás Cubas”, mas à qual falta “a mesma alegria shandiana”. Entretanto, ressalva, “escolher entre ‘Brás Cubas’ e ‘Dom Casmurro’ é escolher entre duas grandezas”.
Machado de Assis, múltiplo e sutil, é o autor ideal para os críticos. Por isso, por oferecer tantas leituras e vieses, é tão analisado pela crítica brasileira e estrangeira, que parece surpresa pelo fato de que, embora o autor seja marcadamente brasileiro, às vezes parece europeu — ora britânico, ora francês. Trata-se de um autor que, de tão universal, escapou ao nacionalismo e ao regionalismo. Ao mesmo tempo, não deixa de falar de sua aldeia — possivelmente com um sorriso irônico mas, quiçá, compreensivo nos lábios.
O leitor de Machado de Assis sempre pensa que está sendo “enganado” ao ser conduzido pelos labirintos de sua prosa que, ao mesmo que é clara e precisa, é oblíqua, cobrando de quem a lê uma participação ativa e atenta. Fica-se com a impressão de que Machado de Assis deixa o “julgamento” — a moral — para o leitor. Mas será que deixa mesmo ou só brinca com seu companheiro de jornada? Nós manipulamos “Dom Casmurro” ou o romance — o autor ou o narrador — nos manipula? O que o autor parece querer mesmo é deixar uma zona cinzenta, nebulosa — um pode ser, um pode não ser.
Harold Bloom postula que “a ironia” de “Brás Cubas” “é bastante leve, à moda de Sterne, e não de Swift, a não ser pelo fato de Machado não apresentar qualquer resíduo de fé cristã. O ceticismo de Brás Cubas, na prática, configura um niilismo em que toda a realidade, inclusive eros, resulta em nada”.
A relação adúltera entre Brás Cubas e Virgília chama a atenção de Harold Bloom (o nome talvez seja uma referência a Virgílio, o escritor que contou, na “Eneida”, a paixão de Dido pelo troiano Enéas; não correspondida, a cartaginesa matou-se). Bentinho suspeita que Capitu, nossa Mona Lisa, o trai com Escobar. Trai? É possível, mas as evidências, se evidências, são dúbias — talvez até para o narrador, suspeitíssimo Bentinho. Pois Virgília avisa Brás Cubas de que o marido suspeita de que são amantes (e, no caso de paixão, suspeita é sinônimo de certeza, mesmo quando se trata de fantasia). Ao ser informado, Brás Cubas observa, de maneira “extraordinária”, frisa Harold Bloom: “Eis aí o drama, eis a ponta da orelha trágica de Shakespeare” — autor de “Otelo”.
O romance de Machado de Assis “é”, pontua Harold Bloom, “cômico, inteligente, evasivo, uma leitura prazerosa, oração após oração. O gênio de Machado nega qualquer páthos, ao mesmo tempo em que subverte todos os supostos valores e princípios, bem como a suposta moral”.
Para o crítico, “é notável que, do princípio ao fim do romance, Machado module o tom extraordinariamente lúcido e plácido da narrativa, sem jamais violar-lhe a consistência. O niilismo singular do livro não é shandiano, e demonstra postura e perspectiva absolutamente originais. Quando leio romance, sinto-me, ao mesmo tempo, profundamente entretido e, de certo modo, perturbado”.
Apesar de ser um crítico notável, que convida à leitura prazerosa e apaixonada, Harold Bloom admite, no ensaio sobre Machado de Assis, que será esquecido. Será? Talvez sim. Ele diz que se diverte com a constatação de que, um dia, não será mais lembrado. Machado de Assis, quanto mais descoberto, mais “vivo” se torna. Ao contrário de (ou como) Brás Cubas?
“A genialidade de Machado de Assis é manter o leitor preso à narrativa, dirigir-se a ele frequente e diretamente, ao mesmo tempo em que evita o mero ‘realismo’ (que jamais é realista). ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, escritas do túmulo, tornam o esquecimento singularmente divertido”, escreve Harold Bloom.
O ensaio do crítico sugere que o leitor está diante, quando se posta para ler o romance de Machado de Assis, de uma obra atemporal, eternamente moderna e que não morrerá. Muitos passam, mas o Shakespeare dos trópicos, teima em não passar.
Harold Bloom frisa que Machado de Assis é negro. Num país em que os negros foram escravos, admitir que seu maior escritor é negro não deixa de ser um alento.