Hannah Arendt: filósofa judia provocou a ira de judeus ao apresentar o nazista Eichmann como “banal”

19 abril 2022 às 10h53

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Críticos admitem que Eichmann não era genial, mas lia Kant e era um organizador eficiente. Críticas à “colaboração” dos conselhos judaicos têm sido relativizadas
O filme “Hannah Arendt”, da diretora alemã Margarethe von Trotta, apresenta ao distinto público a filósofa judia alemã Hannah Arendt (1906-1975). Mulher de uma inteligência extraordinária, dada a insights tão finos quanto os produzidos pela melhor publicidade, às vezes é apresentada mais como ensaísta do que como pensadora, não raro é sugerida como vulgarizadora das ideias alheias. Ela é mais conhecida pelo debate, quase irracional, provocado pelo livro “Eichmann em Jerusalém — Um Relato Sobre a Banalidade do Mal” (Companhia das Letras, 344 páginas, tradução de José Rubens Siqueira) do que por suas obras mais consistentes e relevantes. Ao contrário do que ela própria sugeriu, não se trata de uma reportagem, pois há um grau de elaboração e reflexão que escapa mesmo ao jornalismo mais refinado. Talvez seja mais apropriado chamá-lo de um longo e brilhante ensaio — publicado na revista “New Yorker” e, revisado, como livro. Apesar das falhas, apontadas por vários estudiosos, inclusive por alguns de seus aliados, o livro ampliou o nível do debate, indo além do julgamento de Adolf Eichmann. Com suas sacadas, retirou o julgamento e os homens comuns do nazismo do ramerrão e sofisticou a discussão, pela qual seus adversários intelectuais deveriam agradecê-la.

Eichmann era o nazista encarregado do transporte de judeus, ciganos e outros grupos para os campos de concentração e extermínio. Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), escapou para a Argentina, com o apoio de religiosos da Igreja Católica. O governo de Israel, por intermédio do Mossad, descobriu o nazista em Buenos Aires, sequestrou-o e levou-o para julgá-lo em Jerusalém (o nazista foi enforcado na prisão de Ramlet em 31 de maio de 1962). Hannah Arendt convenceu o editor da “New Yorker”, William Shawn, a enviá-la como correspondente. Lá, acompanhou parte do julgamento, ao lado de cerca de 600 jornalistas de todo o mundo. Depois, examinou toda a papelada do julgamento, publicou o que chamava de “reportagem” e, em seguida, o livro que provocou um debate acirrado, eventualmente de baixo nível, não de sua parte.
Filósofa aguda, atenta ao que diziam — tanto que o conceito de banalidade do mal não é seu, e sim de seu marido, Heinrich Blücher —, Hannah Arendt não apreciava defensores que percebiam seu pensamento como religião. “A verdade inteira é que eu mesma não conhecia as respostas quando escrevi o livro”, admitiu. Ela recebeu mal a maioria das críticas, sobretudo as feitas por amigos que respeitava, mas leu-as atentamente e refutou algumas.

No livro “O Século XX Esquecido — Lugares e Memórias” (Edições 70, 462 páginas, tradução de Marcelo Felix), Tony Judt publica o ensaio-resenha “Hannah Arendt e o Mal”. O historiador inglês nota que o filósofo Karl Jaspers, amigo e defensor da filósofa, já havia notado um “problema” no seu pensamento. A autora de “As Origens do Totalitarismo” sugeriu que o mal era “algo totalmente radical”. “Mas Karl Jaspers e outros haviam notado o risco aí implicado de fazer com que o nazismo, em particular, parecesse de certa forma único e, assim, de uma forma terrível, ‘grande’”, escreve Tony Judt. Depois, Hannah Arendt refinou a ideia e frisou que “o mal provém simplesmente de não pensar” (a frase entre aspas é do estudioso britânico, sintetizando o pensamento da alemã). “Se isto implica que o mal é uma função da estupidez, então Arendt está apenas a satisfazer uma tautologia que inventou.” A escritora Mary McCarthy, outra grande amiga da pensadora, escreveu, numa carta de 1971, que, se Eichmann “‘não pode’ mesmo ‘pensar’, então é apenas um monstro. Mas se tem um ‘coração maldoso’, então está a exercer alguma liberdade de escolha, logo é passível de condenação moral segundo o hábito. Aqui, como outros pontos, faremos bem em não tomar Arendt como uma pensadora de excessiva coerência”.

Como devem ser vistos os assassinos nazistas, diretos ou indiretos (Eichmann)? Tony Judt diz que Hannah Arendt percebe aqueles que matavam e enterravam os judeus como uma espécie de trabalhadores administrativos e, portanto, cumpridores da lei de um Estado — “eram apenas assalariados comuns e bons chefes de família. Os seus atos podem ser monstruosos, provas da ‘falência do senso comum’, segundo Arendt, mas os oficiais em si são muito simplesmente pessoas estúpidas, vulgares, do dia a dia — em suma, banais. Há algo de frustrante e terrivelmente plausível nesta observação”.
Na biografia “Hannah Arendt — Por Amor ao Mundo” (Relume Dumará, 492 páginas, tradução de Antônio Trânsito), Elizabeth Young-Bruehl diz que a filósofa “sabia que o centro de seu questionamento era o subtítulo do livro: ‘A Banalidade do Mal’. Eichmann ‘em carne e osso’ ensinara-lhe que havia superestimado ‘o impacto da ideologia sobre o indivíduo’. E concluiu que para Eichmann ‘o extermínio per se [era] mais importante que o antissemitismo ou o racismo’. Notando que o conteúdo e a lógica mortal do nazismo eram menos importantes para esse homem do que o movimento no qual ele encontra um lar, Arendt rejeitou o conceito que havia usado em ‘As Origens do Totalitarismo’ para a natureza incompreensível dos nazistas — ‘mal radical’”. Por isso, frisou que “o mal nunca é ‘radical’, é apenas extremo e não possui profundidade nem qualquer dimensão demoníaca. (…) Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical”.

A noção de “banalidade do mal”, na avaliação de Tony Judt, deixa a impressão de que os próprios judeus foram “responsáveis” pelo Shoah e “os alemães” foram “meramente ‘banais’”. Elizabeth Young-Bruehl, num livro amplamente favorável a Hannah Arendt, também admite que ela tinha poucas informações sobre determinados assuntos: “Deve ser dito que o conhecimento de Arendt sobre as condições nos guetos da Europa Oriental — e, assim, sua capacidade de sugerir quando uma linha seria ultrapassada — nem sempre extensa o suficiente para apoiar suas generalizações”. Portanto, o que ela disse sobre a colaboração dos líderes dos judeus não dá “uma imagem precisa, seja da atividade dos Judenräte, seja da resistência judaica”. A filósofa escreveu: “Onde quer que vivessem judeus havia líderes judaicos reconhecidos e essa liderança, quase em exceção, cooperou de uma maneira ou de outra, por uma razão ou outra, com os nazistas”. Siegfried Moses, porta-voz do Conselho de Judeus da Alemanha, disse que a filósofa apresenta uma “informação”, mas não as “provas” do que afirma com convicção.

O rabino Leo Baeck, líder dos judeus de Berlim, foi criticado por Hannah Arendt, que, porém, o respeitava. A filósofa, segundo Elizabeth Young-Bruehl, “ignorava a sua recusa corajosa a abandonar seu povo quando teve, por várias vezes, oportunidade de escapar”. A pensadora chegou a chamá-lo de “Führer judeu”. Depois, percebendo a injustiça, retirou isto do livro. Adolf Leschnitzer defendeu Baeck por silenciar-se sobre Auschwitz. “Após notar que Baeck havia pensado que ‘a morte não era para todos’, Leschnitzer argumentou que Baeck colocava-se como um médico que decide não informar a um paciente a verdadeira natureza de sua doença.” Paul Tillich apresentou outra argumentação: “Ninguém pode julgar plenamente os acontecimentos nos campos de concentração. Mas, de certa forma, eu criticaria Baeck por não dar o mínimo de informação que possuía. Se sabia que Auschwitz significava morte certa, ele deveria ter declarado. A verdade existencial plena deve estar sempre disponível, exatamente como o paciente incurável deveria sempre saber toda a verdade”. O historiador Saul Friedländer, um dos maiores estudiosos do Holocausto, não endossa a crítica de Hannah Arendt: “Objetivamente, o Judenrät foi provavelmente um instrumento de destruição dos judeus na Europa, entretanto, subjetivamente, os atores não tiveram consciência dessa função, e mesmo que tivessem tido consciência, alguns dentre eles — talvez a maior parte — tentaram fazer o melhor de si no âmbito de suas possibilidades estratégicas extremamente limitadas a fim de retardar a destruição”.
Na resenha “A perversidade do brilho”, publicada na “Commentary”, Norman Podhoretz escreveu: “No lugar do nazista monstruoso, ela nos dá o nazista ‘banal’; no lugar do judeu como mártir virtuoso, ela nos dá o judeu como um cúmplice do mal; e no lugar do confronto entre culpa e inocência, ela nos dá a ‘colaboração’ entre criminoso e vítima”. A vítima, no caso o judeu, não tinha escolha. Quando resistia, era assassinado. Raul Hilberg, que permanece como o maior historiador do Holocausto e autor do clássico “A Destruição dos Judeus Europeus” (o Brasil publica livros menores, mas não a “bíblia” sobre o assunto)¹, antecipou Hannah Arendt, aliás influenciou-a: “Os judeus europeus haviam-se recusado a encarar a realidade de sua destruição iminente” e, por isso, “não haviam respondido ativamente como poderiam ter feito”. (Detalhe curioso: a filósofa, consultada por uma editora, havia “vetado” a publicação do livro do historiador.)
Na biografia “Nos Passos de Hannah Arendt” (Record, 643 páginas, tradução de Tatiana Salem Levy e Marcelo Jacques), Laure Adler segue a interpretação de Tony Judt: o orgulho da filósofa “a impedirá de fazer uma retratação pública em relação aos pontos contestáveis” de seu livro, “como o da responsabilidade dos conselhos judaicos”. Mas, ao contrário do que assinalam alguns de seus críticos, Hannah Arendt não minimizou o Holocausto, defende Laure Adler. A biógrafa conta que, ao traduzir o livro para o francês, em 2002, Martine Leibovici trocou a palavra “colaboração” dos conselhos judaicos por “cooperação”. A pesquisadora contesta outra ideia frequente dos críticos judeus da filósofa: “É falso dizer que Hannah Arendt focalizou o processo na colaboração dos judeus para seu próprio extermínio e em sua pretensa passividade. Foi exatamente o contrário. Ela censura o procurador [Gideon] Hausner por tê-lo feito”.
Entretanto, ao fazer a defesa da autora de “Eichmann em Jerusalém”, Laure Adler apresenta uma ressalva: o julgamento de Eichmann foi “uma câmara de eco, pela primeira vez, para os relatos das vítimas, uma lição de história, um deslocamento na percepção do que quer dizer ser judeu, um reconhecimento, enfim, da dignidade de ter sido judeu, e, portanto, a ser exterminado porque judeu segundo os nazistas. Hannah não se deu conta disso”.
Eichmann era um “idiota”, um “mero funcionário”, um homem “sem consciência”, o trabalhador que, respeitando as leis de seu país (na verdade, era austríaco), mandava os judeus para a morte certa, mas não tinha responsabilidade por aquilo que era determinado pelo Estado? No livro “Nos Passos de Hannah Arendt”, Laure Adler apresenta nuances. “Para [o historiador] Léon Poliakov, Eichmann aparece como um homem de inteligência muito acima da média, mas que carece singularmente de envergadura e de brilho”, escreve Laure Adler.
Ao depor, Eichmann disse: “Minha culpa é grande, sei disso. Mas nada tenho a ver com o assassinato dos judeus. Nunca matei um judeu e nunca matei um não-judeu; nunca matei ninguém. Nunca dei ordem para que assassinassem um judeu. Talvez seja isso que me proporciona uma paz interior. Sou culpado, sei disso, porque cooperei com as deportações. Sei disso e estou pronto para expiá-lo”.
“Heinrich Himmler — Uma Biografia” (Objetiva, 864 páginas, tradução de Angelika Elizabeth Kohnke, Christine Rohrig, Gabrielle Ella Elizabeth Lipkau e Margit Sandra Bugs), do historiador alemão Peter Longerich, livro mais recente e portanto atualizado, mostra um Eichmann extremamente afinado com Himmler e Reinhard Heydrich, os principais operadores da máquina de matar gente criada pelo governo de Adolf Hitler. A obra o apresenta como um organizador acima da média e extremamente afinado com a ideia de solução final para destruir os judeus.
Ao notar que Eichmann era um funcionário da máquina assassina, um homem comum e não necessariamente monstruoso, Hannah Arendt o estaria eximindo de responsabilidade? Ao contrário dos críticos mais radicais da filósofa, Laure Adler avalia que não: “Hannah não contesta de modo algum a responsabilidade de Eichmann, mas explica sua falta de consciência de culpa pelo mecanismo do nazismo que havia posto o comando do Führer no centro absoluto de toda a ordem jurídica. Eichmann era, portanto, um cidadão obediente à lei durante Hitler, e o que ele fez só constitui um crime aos seus olhos retrospectivamente. Eichmann, relata ela, não queria ser um daqueles que fingiam que ‘tinham sempre sido contra’”. Laure Adler diz que “um carrasco que cita Kant não é um carrasco como os outros”. Portanto, “Eichmann é responsável”. “Hannah Arendt repete que ele sempre fez o máximo que pôde para tornar definitiva a Solução Final. Mas seu caso não é único. Como tantos alemães, ele obedeceu à lei que os transformou todos em criminosos.”

Segundo Laure Adler, para Hannah Arendt, “o verdadeiro desafio do processo deveria ter sido este: como julgar um indivíduo normal, uma pessoa média, que cometeu todos esses crimes [milhões de mortes de judeus, ciganos, homossexuais], mas que não tem consciência da natureza criminosa de seus atos? Todo mundo, nesse processo, ignorou esse assunto, talvez o único que realmente importava. Pois Eichmann era ‘normal’ na medida em que era apenas um no meio de milhares de outros”.
Por que, mesmo sabendo que entraria num vespeiro, Hannah Arendt decidiu enfrentar o establishment judaico, sobretudo o americano (forte na imprensa) e o israelense? “Os fatos, não importa se aterrorizantes, devem ser preservados não ‘para que não os esqueçamos’, mas de modo que possamos julgar. (…) Se você diz a si mesmo ‘quem sou eu para julgar?’”, em assuntos como o totalitarismo nazista e o Shoah, “você está perdido”, disse, com propriedade, a filósofa.
Elizabeth Young-Bruehl nota que Eichmann era, para a pensadora alemã, “simplesmente incapaz de pensar”. Ela o avaliou como “incapaz de separar o certo do errado”. “A consciência do homem ‘cessara de funcionar’.” Ela insistia que “o crime de Eichmann, em sua enormidade, foi antes contra a humanidade e a consciência da humanidade, e não apenas contra os judeus”.

Vários outros críticos atacaram Hannah Arendt de maneira extremamente agressiva. Entre seus críticos mais contundentes estão Jacob Robinson — apontou “o mal da banalidade” no livro da filósofa —, Lionel Abel (Eichmann “se sai muito melhor no livro de Arendt do que as suas vítimas”), Walter Laqueur (“o dano causado pelas meias-verdades de ‘Eichmann em Jerusalém’ é incalculável), Barbara Tuchman (que acusou Hannah Arendt de ter “um desejo inconsciente de apoiar a defesa de Eichmann”), Daniel Bell, Irving Howe e Hans Jonas. As críticas de Gershom Scholem — tão leitor de Walter Benjamin quanto a filósofa — incomodaram profundamente Hannah Arendt. Eles eram amigos. O que Scholem “critica”, aponta Laure Adler, “além do tom [“sarcástico e malevolente”], é a leviandade da demonstração, que não o convence e que descamba para o exagero, para a tese mais do que para a explicação. O que ele não pode suportar, mais profundamente, é a pretensão dela de querer julgar. Quem somos nós, afinal, para poder julgar. Onde estávamos naquele momento?”
Depois da crítica de Scholem, Hannah Arendt, segundo Laure Adler, “começa a reconhecer certas fraquezas em seu texto, especialmente em relação ao que chamou de banalidade do mal. (…) a Gershom Scholem, ela confessa que se enganou. Não falará mais de mal radical”. E desiste do jornalismo.

Tony Judt diz que a filosofa “teve bastantes enganos menores, que os seus muitos críticos jamais lhe perdoarão. Mas tinha razão nas coisas importantes, e merece ser recordada por isso”. Um de seus acertos foi destoar do coro dos contentes e transformar a questão judaica e o nazismo em “problema” não resolvido. Ela “abriu” o debate. Intelectuais judeus, no afã de provar que estava “errada”, o “fecharam” e, devido a certa virulência, certamente “intimidaram” outras vozes.
Hannah Arendt gostava de uma citação de Cícero: “Prefiro diante do céu perder-me com Platão do que manter visões verdadeiras com seus oponentes”. Ela não seguia a maioria. Seguia sua própria voz, aquilo que avaliava como “verdade”.
Nota
¹ Quando publiquei o texto, o livro não havia sido editado no Brasil. Mas, em 2016, o livro foi publicado, em dois volumes, com 1664 páginas, pela Editora Amarilys, com tradução de Carolina Barcellos, Laura Folgueira, Luís Protásio, Maurício Tamboni e Sonia Augusto.