Folha de S. Paulo faz 100 anos como um jornal respeitável. Mas estaria cedendo ao populismo?

21 fevereiro 2021 às 00h01

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Não dá para deixar de ler, mas o jornal parece “conformado” que a única crítica “correta” é a dirigida a Jair Bolsonaro
Durante anos, o objetivo da imprensa, talvez de parte dela, era ser o sorriso do poder e a cárie da sociedade. Em 1964, quando os militares retiraram os civis do poder, poucos jornais importantes não se postaram ao lado dos generais, como aporte da intelligentsia ao golpismo. “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “Jornal do Brasil” e o “Globo” atuaram como “capitães do mato” dos novos senhores do poder.

O apoio dos jornais à ditadura nem foi pedido. Foi oferecido. O livro “Até a Última Página — Uma História do Jornal do Brasil” (Objetiva, 564 páginas), de Cezar Motta, relata entre as páginas 135 e 136: “Como todos os grandes jornais brasileiros, à exceção do ‘Última Hora’, o ‘JB’ apoiou o golpe desde que começou a ser preparado. Mas o apoio não era restrito à direção da empresa, a Nascimento Brito e à condessa Pereira Carneiro. Toda a cúpula da redação, os jornalistas com responsabilidade pelo produto final, eram favoráveis: o editor-chefe, Alberto Dines, o chefe de redação Carlos Lemos, o editorialista Wilson Figueiredo e o recém-promovido chefe de reportagem, Luiz Orlando Carneiro”.
O apoio era entusiástico. A ditadura era o novo éden. O primeiro presidente militar, general Castello Branco, era uma espécie de deus verde (dada a farda, que logo trocou por ternos mal ajambrados). “O Globo”, de Roberto Marinho, era uma espécie de centroavante do time golpista — tal o apoio animadíssimo. Só faltou colocar a cor verde no logotipo. A “Folha de S. Paulo” mantinha ligação umbilical com os governos ditatoriais, notadamente nos períodos considerados mais de “chumbo” — quando a dita era mais dura. Curiosamente, os dois jornais, notadamente a “Folha”, foram se afastando quando os governos dos generais foram amainando, com a distensão e a Abertura, a partir do presidente Ernesto Geisel, até chegar no presidente João Figueiredo.

Houve um momento em que, para agradar o governo militar, Octavio Frias Oliveira, pai de Otavinho Frias Filho e Luís Frias (o empresário da família), afastou Claudio Abramo da direção de redação da “Folha” (Boris Casoy, afinado com a direita, assumiu a direção de redação). Manteve o jornalista nos seus quadros, até como agradecimento por ter reformado e dado credibilidade ao jornal, mas não em posto de chefia.
Na revista “Veja” ocorreu algo parecido. Mino Carta, amigo de Claudio Abramo, foi afastado por Victor Civita e Roberto Civita, pai e filho. Há três versões. Uma, do meio governista, sustenta que os Civita ofereceram a cabeça de Mino Carta — sem que tenha sido pedida. A segunda postula que os Civita afastaram o diretor de redação para conseguir um empréstimo de 50 milhões de dólares (a família nega). O profissional contrapõe que, de fato, houve um “contubérnio” entre o ministro da Justiça, Armando Falcão, e os Civita para esvaziá-lo. Ele diz que se demitiu; portanto, não foi demitido.
O “Estadão”, jornal de orientação liberal, desencantou-se cedo com o governo ditatorial. Assim como Carlos Lacerda, um dos ídolos da família Mesquita. Lacerda queria disputar a Presidência da República em 1965 e apoiou o golpe civil-militar de 1964 com certa volúpia. Por acreditar, certamente, que os militares devolveriam o poder aos civis — a ele, claro. Talvez não tenha entendido que os militares não eram todos iguais: havia a linha da Sorbonne, mais moderada e capitaneada por Castello Branco — que chegou a pensar num sucessor civil, mas não necessariamente em Lacerda —, e havia a linha dura, liderada pelo general Arthur da Costa Silva. Ao atacar Castello Branco, que o apreciava, o ex-governador da Guanabara pôs fogo, inadvertidamente, no próprio prestígio que tinha entre os militares, e, ficando isolado, acabou cassado. Lacerda era o que se pode chamar de burro-inteligente, quer dizer, era de fato inteligente, mas parecia avaliar que os demais, como o turrão Costa e Silva, eram burros. Mas até os burros, se pragmáticos, acabam dotados de alguma inteligência para a vida política.

Hora de refazer a própria história
A “Folha”, que está completando 100 anos, aproveitou-se da campanha das Diretas Já, em 1984, para “refazer” sua história. De jornal “da” ditadura passou a se recontar como jornal “contra” a ditadura. As duas “interpretações” são complementares e verdadeiras.
De fato, a “Folha” foi o primeiro grande jornal do país a cobrir, de maneira ampla e irrestrita, a campanha das Diretas Já. Quase todos os dias, eu ia à banca do João, na porta dos Correios da Praça Cívica (era, ao lado da banca do Marcão, na Avenida Anhanguera, a melhor da cidade), com o objetivo de comprar a “Folha”. Naquele momento, o veículo dos Frias havia se tornado não “um” jornal, e sim “o” jornal dos que queriam a redemocratização integral do país. Líamos Rubem Azevedo Lima, Galeno de Freitas, Janio de Freitas, Claudio Abramo (escrevia na página 2), Paulo Francis (era o jornalista preferido de muitos) e tantos outros — todos defendendo a retomada da democracia.

Naquele momento, com as ruas na frente da imprensa — a TV Globo se omitia olimpicamente —, a leitura da “Folha”, com suas fotografias mostrando multidões nas avenidas e nos comícios, era um bálsamo. O país reencontrava-se, aos poucos, com a democracia e a imprensa, com a sociedade civil, passando a ser o seu sorriso.
Collor, FHC e Lula da Silva
Em 1985, com a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, o país voltou a ser democrático. O “aristocrata” de São João Del-Rei, ao morrer, deixou os brasileiros órfãos. Mas o presidente José Sarney, ainda que despreparado para gerir o país, comportou-se de maneira democrática e realista. Fez a transição de maneira pacífica e competente. Merece reconhecimento.
Em 1989, exasperada com o governo tíbio de Sarney, parte da imprensa apoiou a candidatura de Fernando Collor de Mello, que a “Veja” transformou no “caçador de marajás”, porque era contrária à postulação de Lula da Silva, que, então um líder operário, não era confiável. Acreditava-se que, dados seus rompantes, fosse “quase-comunista”, o que o petista jamais foi. O rebento de Garanhuns é de uma esquerda socialdemocrata, não mais do que isto.

Rapidamente, a imprensa, com a “Folha” na comissão de frente, desencantou-se com o governo modernizador, populista e autoritário de Fernando Collor — que, como Sarney, não estava preparado para gerir uma economia gigante como a brasileira. Os políticos parecem, no geral, confundir o Brasil com Brasília — que são muitos diferentes.
Fernando Collor, investigado pela Imprensa e pelo Ministério Público, se tornou impopular e sofreu o impeachment, em 1992. A Imprensa exultou, pois se tornara uma “derrubadora” de presidente — o que lhe deu, desde então, um ar de onipotência, como se fosse o povo, que, quando quer, “põe” e “tira”, por meio do voto.
Nos oito anos do governo de Fernando Henrique Cardoso, político que pertence à elite intelectual de São Paulo, viveu-se uma espécie de lua de mel entre a Imprensa e o poder público. Numa gravação, FHC, sempre irônico, “reclama” do “excesso” de apoio dos jornais às privatizações. Ficava-se com a impressão de que, às vezes, a Imprensa era mais governista do que o governo.
Mas instâncias críticas foram preservadas. Apesar da relativa adesão, o governo do sociólogo-doutor, professor da USP e da Sorbonne, recebeu críticas duras da imprensa. A “Folha” às vezes na comissão de frente. A Imprensa não deixou de revelar que gente do governo “comprou” a reeleição para Fernando Henrique Cardoso.
Nos governos do PT, com Lula da Silva, por oito anos, e Dilma Rousseff, por seis anos, houve adesão, mas não total. Dado o caráter desconfiado do petismo, que tratava os jornais como “grande imprensa” — que, neste linguajar, é pejorativo —, aos poucos Imprensa e o lulopetismo começaram a se comportar como “adversários” e, até, “inimigos”.
Quando se descobriu que, para manter o poder em nível federal, os governos do PT subornaram as elites políticas do país — poucos escaparam da lama-cola —, contaminando-se durante o processo (afinal, os meios costumam corromper os fins), a Imprensa, às vezes ancorada em material investigado pelo Ministério Público Federal, passou a descrever o processo, que, se percebeu, era mafioso. Lula da Silva passou por maus momentos, mas, articulador hábil, sobreviveu, conseguindo inclusive se reeleger e contribuir, de maneira decisiva, para as duas vitórias de Dilma Rousseff.
Sem as habilidades de Lula da Silva (espécie de Centrão da esquerda), e o defeito de ser arrogante, Dilma Rousseff sofreu impeachment, em 2016, abrindo espaço para seu vice, Michel Temer, assumir a Presidência.
No processo, a Imprensa se mostrou crítica. Os eventuais tropeços não podem desmerecer o trabalho da “Folha”, do “Estadão”, do “Globo” e da “Veja” — que fizeram jornalismo de primeira linha, no geral.
O mantra da “Folha” — excelente jornal (frise-se que sua cobertura cultural caiu) — de que faz jornalismo “independente” e “livre” é belíssimo e agrada muitos ouvidos. A rigor, porém, não há jornalismo inteiramente “livre”, “independente” e “imparcial”. Mas, sim, é possível fazer jornalismo “crítico”, mesmo quando não se pode ser inteiramente “independente”. Luís Frias sugere que a liberdade de um jornal se origina de sua independência econômica. O argumento é bom, mas quantos jornais são independentes em termos econômicos no país? (falta ao empresário um exame da questão moral, para além do economicismo). Poderes, e a Imprensa é um poder — ainda que não o quarto, pois o Ministério Público talvez tenha tomado seu lugar —, são interdependentes. A “Folha” sempre teve mais simpatia pelo tucanato paulista do que pelo PT. Não deixou de ser crítica, mas quase sempre tratou o tucanato com luvas de pelica e o petismo, com luvas de boxe. As “pedradas” contra José Serra, para mencionar um tucano que se envolveu em corrupção, sempre foram mais leves do que as dirigidas a Lula da Silva (de quem Otavinho Frias não gostava e vice-versa).
No momento, até por ser atacada com frequência, a “Folha” posta-se, de certa maneira, como anti-bolsonarista (e, aliás, é muito difícil não ser crítico contundente do governo de Jair Bolsonaro). Falta equilíbrio? Sim. Porém, como ter equilíbrio ante um político que, a rigor, não tem equilíbrio algum? Mas a “Folha” não deve correr o risco de se tornar a Bolsonaro da Imprensa. O “Estadão” é crítico, duramente crítico, ao governo do presidente, sobretudo nos editoriais, mas abre espaço para um jornalista brilhante, José Roberto Guzzo, defendê-lo e desancar seus críticos. Instâncias críticas, que não comungam com a linha editorial, longe de enfraquecer, fortalecem os jornais. Por que, digamos, não convidar Augusto Nunes, que apoia Bolsonaro (mas sabe escrever e pensar), para escrever um artigo semanal na “Folha”? O que o jornal receia?
Aos 100 anos, a “Folha” resiste bem — é um jornal respeitável, sério e confiável. Um jornal, como um político, deve ser avaliado pela média, porque, se analisado pelos extremos, certamente não será compreendido em seu caráter multifacetado. Mas uma coisa é certa: desde a morte de Otavio Frias Filho, a “Folha” parece ter perdido a “pegada” e está mais engajada e, até, populista (parece que pretende caminhar com todos os adeptos do politicamente correto). A instância crítica ao jornal é a ombudsman. Mas é preciso abrir espaço diário aos que pensam diferentemente do jornal sobre temas como política, economia e comportamento. O jornal, como a GloboNews (a overdose de notícias sobre não-vacinação por certo está cansando os telespectadores), está muito igual, muito, digamos, “conformado”. Fica-se com a impressão de que o não-conformismo é tão-somente contra a barbárie representada por Bolsonaro e epígonos.
A reportagem da “Folha” precisa também ser mais brasileira, e menos paulista. Parece que o Brasil, o não-paulista, quando é descoberto o é apenas como motivo de denúncia e, quiçá, chacota ou folclore. Mais: o jornal não pode abdicar da grande reportagem. E grande reportagem não significa apenas denúncias. Opinião é importante, decisiva, mas não é a alma de jornais diários.