Filósofo britânico sugere que corrupção dinamiza a Itália e burocracia honesta trava a Inglaterra

05 junho 2015 às 15h08

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O psiquiatra e filósofo Theodore Dalrymple afirma que o Estado italiano é corrupto, mas não impede o crescimento individual e da economia. Já o inglês, Estado das benesses, é honesto mas reduz a dignidade das pessoas

A corrupção é universal e nem todos os corruptos são penalizados em quaisquer países. Mas é fato que alguns países são mais rigorosos — veja-se como os Estados Unidos estão lidando com a quadrilha da Fifa — do que outros. Há quem acredite que a corrupção, uma das características humanas, jamais vai acabar e até aposte que as eras mais prósperas da Humanidade foram e são as mais corruptas. O filósofo britânico Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), de 66 anos, no livro “Nossa Cultura… Ou o Que Restou dela” (É Realizações, 397 páginas), escreveu um ensaio, “As conveniências da corrupção”, no qual sugere, de maneira heterodoxa, que a corrupção não impede a Itália de funcionar e a burocracia honesta às vezes trava a Inglaterra.
Ressalve-se que o artigo de Dalrymple é de 2001. Por isso é possível que algumas de suas opiniões tenham perdido atualidade. “Não apenas a Itália é visivelmente mais rica do que a Grã-Bretanha, mas é consideravelmente mais limpa”, afirma o filósofo. Em termos de PIB, a Inglaterra, sexta maior economia do mundo — atrás apenas de Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, França —, supera a Itália e, inclusive, o Brasil. O PIB da Inglaterra é de 2,4 trilhões de dólares, enquanto o da Itália é de 2 trilhões (o do Brasil chega a 2,3 trilhões). “A Grã-Bretanha e a Itália se equiparam em sua renda per capita”, frisa o ensaísta, que não se fia tão-somente nos números. “Tanto quanto as estatísticas, observações com base no senso comum também são necessárias para se avaliar o sucesso de uma economia.”
Baseando-se no que menciona como “senso comum”, Dalrymple sustenta que, em comparação com a economia inglesa, “a economia italiana é visivelmente bem-sucedida”. O filósofo e psiquiatra frisa que “não se vê na Itália os quilômetros de desolação urbana e de imundície que hoje tanto caracterizaram a Grã-Bretanha”.
Para Dalrymple, “a população italiana não parece nem de longe tão deprimida e esmagada pelas circunstâncias como acontece com a população britânica. As lojas em cada uma das pequenas cidades provinciais na Itália, mesmo na Sicília, oferecem artigos de qualidade numa quantidade e variedade que não se encontram mesmo nas maiores cidades britânicas, a não ser Londres. (…) Em 1950, a frota britânica de veículos era doze vezes maior do que a italiana, atualmente a frota italiana é maior” (o autor menciona dados de 2001).
O governo inglês é mais estável do que o italiano. Um ponto a favor do país do primeiro-ministro David Cameron. Mas as crises políticas italianas não produzem crises institucionais graves — apesar da contaminação, em certo período, de condestáveis históricos da política pela Máfia (ou, mais apropriadamente, máfias). A estabilidade econômica dos dois países não difere. “A distribuição de renda na Grã-Bretanha e na Itália é bastante semelhante, com os dois extremos da escala a receber a mesma proporção da renda nacional. Nem uma maior igualdade econômica e tampouco uma maior desigualdade explicam a diferença.”
O Estado italiano, afirma Dalrymple, “absorve, há muitos anos, uma quantidade muito maior do produto econômico do que o Estado britânico. Com uma renda per capita oficialmente equivalente em 1992, o Estado italiano gastou 25% mais do que o britânico”. A informação significa que haveria um dirigismo econômico na Itália? O filósofo afirma que não. “O único propósito da burocracia italiana é aparentemente produzir obstáculos insuperáveis sobre a atividade produtiva, em quantidade ainda maior do que o seu equivalente na burocracia britânica.” Se é assim, por que a economia italiana é pujante?
Exibindo sua heterodoxia, Dalrymple assinala que a “administração pública italiana tem tradicionalmente um mérito especial comparando-se com sua contrapartida britânica: sua corrupção”. Você não leu errado: é isto mesmo. “A corrupção seria um tipo estranho de virtude, mas o mesmo acontece com a honestidade, quando busca fins nocivos e desnecessários. Em geral, a corrupção é vista como um vício e, em termos abstratos, é realmente um vício. Mas, às vezes, um mau comportamento é capaz de produzir bons efeitos, como também um bom comportamento pode gerar, por vezes, efeitos danosos.”
Para Dalrymple, “sempre que exista uma administração leve e uma burocracia enxuta, a honestidade burocrática torna-se uma virtude incomparável; mas ao se fazer pesada e tentacular, como acontece a todas as nações europeias de nossos tempos, incluindo-se Itália e Grã Bretanha, essa honestidade pode obstruir o espírito inventivo e o dinamismo”.
Quando a burocracia é gigante e trata os indivíduos, empresários ou trabalhadores, com “desprezo e indiferença”, o que se pode fazer? “Em circunstâncias como essa, o uso de influência pessoal e de suborno por um solicitante, no balcão da burocracia, pode de fato representar um aumento da eficiência”, anota Dalrymple. “O homem que tem a opção do suborno ou pode se valer da influência ilícita de um ‘padrinho’ não se vê obrigado a esperar, passivamente, pelo decreto do Olimpo burocrático, uma vez que consegue reter para si uma dose de controle sobre a situação.”
Espécie de novo xamã da direita brasileira, mais do que da inglesa, Dalrymple é um pensador liberal? Há quem o associe aos liberais conservadores ou apenas entre os conservadores. Sua crítica ao Estado aproxima-o dos liberais. “Quando o Estado se sobrepõe à vida das pessoas, certo grau de corrupção exerce um efeito benéfico sobre o caráter das pessoas. Mas apenas até determinado ponto, é claro.” Mas na Itália é diferente, ao menos na avaliação de Dalrymple. “Os burocratas italianos sempre foram espertos o suficiente para não matar a galinha dos ovos de ouro. Quanto mais a sociedade ao seu redor enriquece, mais se pode extrair dela. Nesse sentido, o que é bom para os negócios é bom para eles”, escreve o filósofo. Os burocratas chineses estariam “copiando” o mesmo modelo.
Como a corrupção é deslavada na Itália, os italianos de todas as classes sociais desconfiam do Estado e, por isso, “sonegam impostos, sem sofrer qualquer opróbio moral. Na Itália, considerar revelar toda renda às autoridades e pagar os devidos impostos sobre ela seria visto como algo cômico por sua ingenuidade. As pessoas ocultam suas fontes de renda das garras do Estado o mais que puderem, dando origem à notória economia informal italiana, uma espécie de mercado paralelo, que é, segundo os próprios italianos, maior e mais sofisticado do que em qualquer outra nação europeia”.
Na avaliação de Dalrymple, “o tamanho dessa economia informal provavelmente explica por que a Itália, com uma renda per capita oficialmente semelhante à britânica, parece ser muito mais próspera do que a Grã-Bretanha”.
Os italianos, ante um Estado caro e predador, resolveram “cuidar de si próprios”, sugere Dalrymple. “Nenhum italiano é louco o suficiente para pensar que os políticos ou o Estado detêm a chave para a prosperidade do povo. No caso da Itália, foi menos a necessidade e mais a flexibilidade econômica, oportunismo (no melhor sentido do termo) e solidariedade familiar os responsáveis pelo dinamismo econômico.”
Na Grã-Bretanha, a probidade financeira da administração pública é uma regra. Por isso, segundo Dalrymple, os britânicos acreditam mais na “infalibilidade” do Estado e dos homens que estão no poder do que os italianos. Os homens do Estado são “bons” porque são “honestos”. O resultado, na prática, é um Estado altamente burocratizado, com dificuldade de atender as aspirações dos indivíduos. As pessoas esperam pela ação do Estado, de fato “honesto”, mas o Estado não age, ou age lentamente, quase sempre chegando “tarde”. O resultado são indivíduos que, apesar de esperar por muito tempo, se tornam ressentidos, acomodados e dependentes.
“Nem a dependência nem o ressentimento são construtivos. Uma extensa e honesta, embora indiferente e incompetente, burocracia estatal cria expectativas que dão origem a essa dialética de dependência e ressentimento, a qual não existe na Itália, onde ninguém suporia a honestidade e, portanto, a benevolência da administração pública, em primeiro lugar”, postula Dalrymple.
Na trilha de outro filósofo, Roger Scruton (autor do livro “Pensadores da Nova Esquerda”, com ensaios refinados e corrosivos), Dalrymple afiança que “o vasto e aparentemente benevolente Estado erodiu por completo a orgulhosa e vigorosa independência da população britânica. Quarenta por cento dos britânicos dependem, hoje em dia, do subsídio governamental, e recebem pagamento direto dos cofres públicos como parte, ou mesmo a totalidade, de sua renda. O Estado britânico retirou, de várias áreas importantes da vida humana, a responsabilidade que tem o indivíduo sobre si mesmo e sua família: saúde, educação, previdência, pensões e (ao menos para um quarto da população) habitação. A renda que lhes resta, deduzidos os impostos, ou recebida o seguro-desemprego, é, portanto, uma espécie de mesada, e os aspectos mais sérios do orçamento pessoal de um sujeito, justamente os mais chatos e incômodos, passam então à responsabilidade do governo”.
Na interpretação de Dalrymple, o “fenômeno de massa” descrito acima é uma “armadilha”. “Ele desconecta o cérebro e paralisa a ação. Ajuda a explicar a degradação e a falta de respeito próprio que se tornaram tão óbvias nas ruas de Londres, mas que estão visivelmente ausentes das ruas italianas.” A dignidade dos homens pode ser devastada pela “cultura da dependência”. “Depender do Estado destruiu as bases do respeito próprio.”
Os ingleses perdem dos italianos também na preservação de sua arquitetura. Na Inglaterra, os empreendedores imobiliários destroem a história, os imóveis antigos, e constroem outros edifícios, às vezes de mau gosto. Os italianos cuidam de maneira mais adequada de seu patrimônio urbano. “Os italianos resolveram, ao contrário dos britânicos, o problema de se viver de uma forma moderna em ambiente antigo, o que, em termos econômicos, constitui uma riqueza herdada.”
No final do ensaio, Dalrymple insiste que “os italianos se conhecem bem o suficiente para não acreditarem piamente na possibilidade de um governo honesto em seu país, e esse é o motivo pelo qual as alegações de desonestidade despejadas contra o [ex] primeiro-ministro [Silvio] Berlusconi antes de sua eleição nunca se tornaram um verdadeiro problema. Mesmo que tais acusações sejam verdadeiras, o primeiro-ministro [ex] terá apenas feito em grande escala aquilo que boa parte dos italianos faz em pequena. O eleitorado provavelmente entendeu a nocividade do Estado leviatã por ser um leviatã, não por ser corrupto. Na verdade, um Estado leviatã incorruptível é mais temível do que um Estado meramente corrupto. De fato, se o Estado italiano se tornasse honesto sem uma simultânea redução em seu tamanho, o resultado seria uma enorme catástrofe econômica e cultural para a Itália”.
Já os ingleses, critica Dalrymple, “ainda estão ligados em seu Estado como o bezerro à teta”. Modelo que nós, brasileiros, estamos copiando — com bolsas-pra-tudo.