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É consensual que o maior goleiro da história do futebol brasileiro é Gilmar dos Santos Neves. Com Pelé fazendo os gols e Gilmar impedindo os gols dos adversários, o Santos ganhou títulos nacionais e internacionais, tornando-se um dos primeiros times galácticos. Na seleção era a mesma coisa: o Brasil tornou-se bicampeão com Gilmar e Pelé. Ele foi “eleito pela revista francesa ‘Paris Match’ o melhor goleiro da história do futebol mundial”, diz o jornalista Paulo Guilherme, autor do excelente livro “Goleiros — Heróis e Anti-Heróis da Camisa 1” (Alameda, 285 páginas).

Sim, superou o soviético Liev Yashin, o Aranha Negra. Como era um gênio das traves, autor de pontes admiradas em todo o mundo, Gilmar era apontado como quase insubstituível. Porém, como estava velho e quase sempre machucado, a seleção de 1970 precisava de um “grande” goleiro. Havia Félix, que se consagrara no Fluminense, mas tinha 32 anos e “apenas” 1,76m (a Wikipédia menciona 1,78m). “Velho” e, para os padrões mesmo nacionais, “baixo”. Félix morreu há 10 anos, aos 74 anos.

A melhor seleção da história do futebol brasileiro | Foto: Reprodução

Ao assumir como técnico da seleção, João Saldanha bancou Félix. Nas eliminatórias, em seis jogos, o goleiro sofreu apenas dois gols. Mas o mesmo Saldanha o afastou quando a seleção perdeu para o Atlético Mineiro por 2 a 1, alegando que não era robusto o suficiente para enfrentar os fortes atacantes europeus. Ado, alto e com pinta de galã, “ganhou” a vaga. Entretanto, com Zagallo no comando técnico, como substituto de Saldanha, Félix foi reintegrado à equipe e se tornou titular. Zagallo ficou com sua experiência. Ado tinha 24 anos e Leão, quase 21.

Embora “baixo”, Félix tinha elasticidade, senso de colocação e rapidez. Na Copa de 70, no México, não envergonhou. No jogo contra a poderosa Inglaterra, atuou sob forte pressão, pois o técnico britânico havia espalhado que “não sabia sair do gol” e jornais brasileiros “compraram” a versão. O goleiro foi uma das estrelas do jogo e o Brasil ganhou.

No entanto, como o time havia sofrido cinco gols em quatro partidas, Félix (embora não tenha cometido nenhuma falha clamorosa) era visto com desconfiança. A revista “Veja”, na edição de 17 de junho de 1970, publicou: “O técnico Zagallo prefere mesmo correr riscos com a menor habilidade de Félix do que com a inexperiência internacional de seus reservas”.

O semifinal, o Brasil derrotou o Uruguai por 3 a 1. O gol dos uruguaios resultou de uma falha do goleiro, mas Félix jogou bem e fez defesas espetaculares.

Com autorização de Zagallo, Félix não usava luvas, o que incomodava a imprensa, mas não o goleiro. Na partida final, contra a Itália, o “guarda-metas” — “só o arqueiro tem que ser infalível”, escreveu Nelson Rodrigues —, atendendo os temerosos jornalistas, decidiu utilizá-las. Quando percebeu, o jogador Paulo César agarrou suas mãos, tentou arrancar as luvas e disse: “Você está louco? Isso vai dar azar! Tira logo isso aí!” Félix não se intimidou: “Vou entrar lá e vou ser campeão do mundo assim para provar para todo mundo que eu sei jogar de luvas!”

Félix Miélli Venerando morreu em 2012, aos 74 anos: um dos melhores goleiros da história do Brasil | Foto: Reprodução

A Itália fez um gol, mais por culpa de Brito do que de Félix, mas o Brasil sagrou-se tricampeão e o goleiro jogou muito bem. Em nenhum jogo, apesar da estatura e da idade — compensava as “deficiências” com elasticidade, habilidade e disciplina —, comprometeu. Pelo contrário, embora goleiros raramente sejam homenageados, foi uma das estrelas da copa mexicana. Sem Félix, o Brasil possivelmente ganharia a copa de qualquer maneira, mas a segurança proporcionava pelo goleiro tranquilizou os craques Pelé, Tostão, Gerson, Rivellino, Jairzinho e Clodoaldo. “Nos 38 jogos oficiais de Félix na seleção, o Brasil perdeu apenas três vezes, um jogo contra a Tchecoslováquia e dois contra o México, todos em 1968”, registra Paulo Guilherme.

A emoção do rádio e o realismo da televisão

Um registro pessoal: aos 9 anos, assisti todos os jogos da copa de 70 num televisor preto e branco. Os chuviscos às vezes impediam que os telespectadores enxergassem os jogadores e, sobretudo, a bola. Mesmo assim, o nosso rádio, gigante, havia sido esquecido.

Mas a força do rádio era tanta, com narradores poderosos como Jorge Cury e Valdir Amaral, que não raro as pessoas abaixavam o som da televisão e ligavam o rádio. De fato, as partidas transmitidas pela Rádio Globo, então a preferida no interior de Goiás, eram mais emocionantes. Entretanto, ao assistir os jogos na tevê e ouvir a voz dos narradores, começamos a perceber que a “emoção” do rádio era exagerada, artificial. Às vezes, a bola ainda estava longe da grande área e, mesmo assim, os locutores exageravam na paixão e, se não estivéssemos vendo o jogo pela TV, ficaríamos com a impressão de que havia mesmo possibilidade de se fazer gol. Noutras vezes, diziam: “A bola passou raspando a trave”. Na verdade, a bola havia passado razoavelmente longe da trave.

Quanto aos jogadores, dávamos mais importância aos atacantes, como Pelé, Tostão, Jairzinho e Rivellino. Tínhamos a impressão de que eles decidiam tudo. Mas tínhamos um enorme respeito pela categoria de Gérson, o “Canhotinha de Ouro”, e de Clodoaldo e pela energia de Carlos Alberto.

O respeito por Félix, que eu considerava um grande goleiro, não se traduzia em aplauso público. No fundo, era solenemente ignorado. Lembro-me que meu pai, Raul Belém, comentava, apenas em nossa casa, que a vitória da seleção ajudaria a “ditadura militar”, mas, diferentemente de outros esquerdistas, torceu pela seleção e comprou todas as revistas (“Manchete”, “Fatos e Fotos”, “Veja”) que saíram em homenagem à conquista.

Dois ou três anos depois, de repente e sem que a maioria das pessoas entendessem a razão, o Exército instalou um quartel ao lado de nossa residência. Os soldados treinavam muito e, salvo engano, alguns eram paraquedistas. Meu pai me disse que falavam no combate à Guerrilha do Araguaia, que não era citada com este nome. Na verdade, de acordo com os cartazes que foram colados nas paredes da Prefeitura de Porangatu, onde meu pai trabalhava, os militares estavam caçando “terroristas”. Um dia, possivelmente entre 1972 e 1973, eu disse que os “terroristas” eram “perigosos”, certamente ecoando o que havia ouvido dos militares vizinhos, e fui corrigido por meu pai: “Não são. Perigosa é a ditadura militar”. Meu pai era e morreu comunista.