Leitores que querem entender o Brasil contemporâneo — para além das fantasias pré-intelectuais sobre “pobre de direita” — já têm o que ler: o livro “O Brasil no Espelho — Um Guia Para Entender o Brasil e os Brasileiros” (Globolivros, 220 páginas), do PhD em ciência política e mestre em estatística pela Universidade da Califórnia Felipe Nunes, que é mais conhecido como um dos donos da Quaest, instituto especializado em pesquisas quantitativas e qualitativas.

“O Brasil no Espelho” resulta de uma pesquisa que ouviu quase 10 mil pessoas, em 340 municípios de 26 Estados e do Distrito Federal.

Felipe Nunes sublinha que “o Brasil é um país conservador nos costumes e estatista na proteção social; desconfiado no cotidiano e exigente com o Estado; punitivista, mas não armamentista; cada vez mais autoconsciente de rótulos ideológicos, porém pouco ligado a doutrinas; religioso e apegado à família; progressista em certas pautas no universo privado e resistente ao que afronta as normas tradicionais em público”. Esta é uma síntese do Brasil “redescoberto” pelo pesquisador.

No final do livro, Felipe Nunes lista “doze revelações do espelho para discutir o Brasil”.

1

O pesquisador ressalta que “fé e apego familiar compõem um núcleo de longa duração, agora plural em formas e denso em função social”.

A pesquisa revela que “96%” dos entrevistados “dizem crer que Deus está por trás do que acontece em suas vidas” e “86% sustentam que ‘a fé vale mais que a ciência’”.

Os católicos caíram de 74%, em 2000, para 56,7% em 2022, segundo o Censo. Os evangélicos saltaram de 15,1% para 26,9%.

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Felipe Nunes: um dos mais qualificados pesquisadores do país | Foto: Divulgação

Os evangélicos fazem mais “barulho” do que os católicos, pois parecem mais “presentes” ou “ativos” na vida do país. Porém, “o Censo de 2022 detectou uma desaceleração do crescimento evangélico”.

Frise-se que, em termos de estrutura, a expansão evangélica é trepidante: “Entre 1970 e 1990, o número de tempos evangélicos saltou de 1.049 para 17.033; em 2019, abriram-se 6.356 templos, uma média de 17 por dia”.

O segundo gênero musical mais ouvido no país é o gospel, tomando o lugar do samba.

2

Felipe Nunes assinala que “a pluralização evangélica produz sociabilidade de substituição estatal e influencia agendas morais: ignorá-la inviabiliza políticas”.

Assembleia de Deus (a mais frequentada: 34%), igrejas batistas e metodistas, Congregação Cristã do Brasil, Igreja Quadrangular, Igreja Universal do Reino de Deus e Igrejas Adventistas dão o tom no Brasil. “A igreja funciona como refúgio ao ambiente secular: é uma escola moral, que proporciona rede de apoio, espaço de lazer e plataforma política difusa”, anota Felipe Nunes.

“Esse ‘cinturão evangélico’ das periferias supre ausências e deficiências do Estado e produz votos por afinidade moral, em especial quando o tema é família, escolas, drogas e segurança”, escreve o pesquisador. “Valores de família ganham primazia retórica na competição eleitoral.”

O presidente Lula da Silva, do PT, está se aproximando dos evangélicos — e está tentando colocar um ministro evangélico no Supremo Tribunal Federal, Jorge Messias —, porque são incontornáveis. Candidatos a cargos majoritários, sobretudo, têm de articular com tais religiosos.

3

“A família segue como âncora afetiva e moral, porém reconhecida em arranjos diversos.”

Felipe Nunes ressalta que, “ao lado da fé, a família permanece como devoção terrena principal: 96% dizem que é ‘a coisa mais importante da vida’”.

Felipe Nunes capa de Brasil no Espelho

Na questão da diversidade, ao menos na prática, os brasileiros são menos reacionários do que parecem. A pesquisa constatou: “90% concordam que família é amor, independentemente do tipo de arranjo; 64% afirmam que os homossexuais podem ser pais tão bons quanto os heterossexuais; 50% apoiam o casamento homoafetivo”.

O que Felipe Nunes chama de Geração.com, composta de jovens (“nascidos entre 2000 e 2009”), “aceita mais estruturas não tradicionais”.

4

“O punitivismo é amplo e não se traduz em armamentismo: a ordem desejada é estatal, não doméstica.”

Os brasileiros apoiam “penas mais duras, como redução da maioridade penal, a punição a crimes hediondos”, mas não avaliam que armar os cidadãos, como ocorre nos Estados Unidos, é a solução. Trata-se, de acordo com Felipe Nunes, de um arranjo incomum.

“Aponta para uma ordem desejada centrada no Estado (política profissional e Justiça eficaz), não na autodefesa. Brasileiros querem que o Estado seja mais duro e punitivista, e não querem fazer justiça com as próprias mãos”, verifica a pesquisa. (Veja-se o caso de Goiás: a popularidade do governador Ronaldo Caiado chega a 88%. Porque sua política de segurança pública é altamente aprovada. É o Estado funcionando — e é isto que goianos-brasileiros querem. É a entrega positiva.)

Felipe Nunes observa que “o punitivismo, no Brasil, é menos por ideologia e mais uma expressão de medo e descrença na eficácia da Justiça”. Noutras palavras, não tem a ver com ser de direita ou ser de esquerda. A defesa do punitivismo é generalizada, acima das distinções de classe social.

5

“Falta confiança interpessoal e sobra medo, o que representa gargalos para o desenvolvimento e a corrosão do espaço público.”

Os brasileiros, em todos os Estados, buscam, quando podem, morar em condomínios fechados — cercados por muros altos e protegidos por segurança privada.

Policiais cumprem mandados contra ex-faccionados | Foto: divulgação/PC /DF

“O medo da violência, do crime organizado e das facções aumenta o punitivismo, reduz a tolerância pública a diferenças, aproxima campos religiosos conservadores e empurra o debate público para ‘ordem e proteção’ como pré-condição de todo o resto. A consequência é uma sociabilidade urbana retraída e um declínio da coletividade”, destaca Felipe Nunes. A cidade se tornou um ambiente hostil.

O resultado, postula a pesquisa, é que “o brasileiro” se tornou “desconfiado”.

6

“O ‘jeitinho brasileiro’ só é aceito como criatividade quando não fere a justiça.”

O brasileiro é um mestre do jeitinho? A pesquisa indica que a maioria percebe o “jeitinho” como “negativo”. Mas também o identifica “como inteligência prática ou estratégia de sobrevivência”.

A pesquisa da Quaest mostra que “a rejeição à corrupção cresce no Brasil”.

O brasileiro é intolerante com a malandragem.

7

“Identidades ideológicas funcionam como rótulos operacionais de alta saliência e baixa doutrina: a maioria se move por desempenho.”

Os brasileiros são um povo ideologizado? A pesquisa da Quaest avalia que sim.

Programas sociais

“O salto da autoidentificação ideológica dos brasileiros é concreto: em 2022, 85% se identificaram como de direita, esquerda ou centro, enquanto 96% fizeram o mesmo na nossa pesquisa. Isso, no entanto, sinaliza mais uma visão política ‘com emoção’ do que ligada a programas ideológicos. O eleitor combina conservadorismo moral com estatismo e avalia os governos pelo que eles entregam. Esse pragmatismo cria uma espécie de centro expandido, no qual o eleitorado se move mais à direita ou mais à esquerda, de acordo com o desempenho dos governos e com uma percepção de justiça, mais do que por ideias ou plataformas.”

Os brasileiros “não defendem o Estado mínimo nem o assistencialismo incondicional”. Políticas de inclusão mais amplas possivelmente são mais aceitáveis.

A força dos valores morais tem galvanizado os brasileiros rumo à direita.

8

“A moral do merecimento emoldura o apoio a políticas sociais.”

A pesquisa da Quaest, registra Felipe Nunes, constata que “a maioria dos brasileiros apoia o Estado provedor — educação e saúde gratuitos e de boa qualidade são vistos como deveres —, mas impõe condicionalidades a benefícios para os mais pobres. Ao mesmo tempo, crescem a disposição para isentar a ‘classe média percebida’ e tributar os mais ricos”. Mas “desde que o resultado seja concreto”.

9

“Desigualdades raciais estruturam medos, confianças e experiências de discriminação: políticas universais precisam de desenho antidiscriminatório.”

A desigualdade racial é vista como um fato para os brasileiros. “A maioria dos brasileiros concorda com a frase ‘o Brasil é um país racista’.”

Ao mesmo tempo, aponta Felipe Nunes, “as políticas públicas de combate à desigualdade racial e de compensação pelo passado escravagista ainda são rejeitadas pela maioria dos brasileiros”.

Por que isto ocorre? Felipe Nunes sugere que há a “tendência dos brasileiros a subestimar o racismo no dia a dia. (…) Não acham que seja tão frequente quando pensam em situações cotidianas. (…) As gerações mais jovens são mais propensas a reconhecerem o racismo e a aceitarem as políticas de ações afirmativas”.

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“As juventudes são mais plurais e abertas, mas vivem sob ansiedade e precariedade: transição escola-trabalho e proteção urbana são decisivas.”

Felipe Nunes diz que a Geração.Com é mais plural do que as outras: “Maior presença LGBTQIAPN+ e menor adesão a normas de masculinidade e feminilidade tradicionais.”

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Ronaldo Caiado, governador de Goiás, resolveu o problema da segurança pública e ganhou o apoio dos goianos: 88% de aprovação | Foto: Guilherme Alves/Jornal Opção

A Geração.com “é mais ‘de centro’ na escala ideológica e menos adepta do familismo normativo”.

Porém, percebe a pesquisa, tal geração de jovens “vive sob ansiedade e cansaço, com múltiplos trabalhos e sofrendo com a insegurança urbana e com uma renda instável. Esse quadro produz ambivalências: maior tolerância privada e demanda pública por ordem; repertório identitário mais aberto e voto de acordo com o desempenho dos governos”.

O pesquisador e cientista político propõe que, “para políticas geracionais, a chave está na transição escola-trabalho, na proteção contra a violência e no cuidado com a saúde mental, que são condições para que a tolerância da Geração.Com possa ser exercida nas ruas, não apenas em casa, no ambiente digital. O cuidado que o Brasil deve ter é o de não permitir que a ética da vida digital individual, nos games e nas interações cotidianas de redes, se sobreponha à ética da responsabilidade ou à ética da convivência coletiva”.

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“Coalizões vencedoras combinam proteção social universal, foco em vulneráveis e narrativas de desempenho e respeito.”

Felipe Nunes diz que, no seu livro, o objetivo é “compreender o país não a partir de blocos homogêneos, mas de combinações singulares de crenças, valores e experiências que se cruzam em direções por vezes contraditórias. Há conservadores com pautas progressistas, liberais que defendem a intervenção estatal e militantes de esquerda que acreditam em punições severas”.

Por isso, enfatiza o pesquisador, não se pode explicar o comportamento político e moral dos brasileiros por uma variante isolada — renda, religião ou escolaridade.

“Cada grupo carrega ‘camadas’ internas que revelam tensões, ambiguidades e contradições profundas. (…) A sociedade brasileira é menos binária e mais paradoxal do que supõem as narrativas de polarização.” O Brasil é, enfim, mais complexo do que imaginam as vãs ideologias de esquerda e de direita.

Como o Estado pode e deve agir? “Políticas vencedoras combinam universalismo claro, focalização de acordo com a vulnerabilidade e narrativas de justiça e desempenho.”

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“O Brasil digital adicionou um palco de reputação que disciplina atores públicos e privados: a comunicação baseada em evidências é um ativo político.”

Em termos de questões públicas, do interesse da sociedade, a pesquisa de Felipe Nunes revela que “os brasileiros se informam mal, apesar de terem à disposição meios de comunicação profissional de qualidade. (…) Os brasileiros superestimam o próprio conhecimento”.

Os que se superestimam “são os mais propensos a acreditar em notícias falsas”. No geral, “os brasileiros anseiam por informações, buscam aprender, mas são levados a enganos em ambientes digitais confusos e instrumentalizados por uma polarização impulsionada. Esse processo prejudica a qualidade do debate público e torna difícil a comunicação efetiva por atores públicos e privados”.

O que fazer? “É preciso que o país firme um compromisso com o diálogo aberto e com a comunicação baseada em evidências e no jornalismo profissional”, postula Felipe Nunes.

O livro, pontua Felipe Nunes, “sugere um caminho: alinhar ordem com justiça, mérito com proteção, família com escola, fé com responsabilidade e dados com decisões”.

“A travessia pede um Estado competente, comunidades vivas e um mercado político que recompense quem entrega políticas públicas eficientes e melhorias cotidianas concretas, não quem promete atalhos”, orienta Felipe Nunes.

Quem for candidato a presidente, governador, senador e deputado, daqui a nove meses, precisa, urgente, consultar o livro de Felipe Nunes.

Livro é bom mas não atualiza clássicos sobre o Brasil

Sérgio Buarque de Holanda capa de Raízes do Brasil
O livro do historiador Sérgio Buarque de Holanda é um clássico — incontornável — sobre o Brasil e os brasileiros | Foto: Jornal Opção

A obra de Felipe Nunes é valiosa, tanto pelos dados quanto pela interpretação.

Ainda assim, fica aquém das canônicas interpretações do país propostas por Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Darcy Ribeiro, entre outros.

Noutras palavras, apesar dos avanços e da qualidade da pesquisa, o livro não “atualiza” os clássicos.

Falta ao estudo do cientista político, quem sabe, mais amplitude intelectual. Fica-se com a impressão, aqui e ali, de que se trata de um guia político-eleitoral, com sacadas — boas, por sinal — muito rápidas (prêt-à-porter) e interpretações pouco detidas.

Uma interpretação do Brasil e dos brasileiros precisa ir muito além do que expõe Felipe Nunes (a partir de uma pesquisa que durou dois meses — novembro e dezembro de 2023). Deve ser mais densa e não “parar” na ciência política. É crucial unir a sociologia à antropologia, sem esquecer a filosofia, a história, a psicologia e, quiçá, a literatura (Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa são grandes intérpretes do país).