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O belo livro “Antologia de Spoon River” (Ex Machina, 200 páginas), do poeta americano Edgar Lee Masters (1868-1950), acaba de ser traduzido, muito bem, por Giuliana Ragusa e Bruno Costa, com a colaboração de Alexandre Barbosa de Souza.

“Antologia de Spoon River” não apenas foi traduzido. Ganhou um aparato crítico de valor, com textos de Giuliana Ragusa, professora da USP, John E. Hallwas, professor da Western Illinois University, e Alcebíades Diniz Miguel, professor, tradutor e escritor.

Giuliana Ragusa escreveu um ensaio luminoso, “Nunca silentes, a nós (em nós) os mortos falam: a tradição poética grega do epigrama-epitáfio”, no qual relata que Lee Masters escreveu “Antologia de Spoon River” sob influência da “poética grega do epigrama tumular ou epigrama-epitáfio”.

Acatando sugestão do amigo William Marion Reedy, Lee Masters leu a “Antologia Palatina”, que se tornou a principal inspiração para seu célebre livro.

Alcebiades Diniz registra o entusiasmo de Ezra Pound com a “voz poética singular” de Lee Masters e seus mortos” e de Jorge Luis Borges, que enfatizou a “poesia direta e pungente de Spoon River”. O bardo argentino escreveu sobre o livro: “Uma das obras mais autênticas da literatura na América”.

Edgar Lee Masters poeta americano, autor de”Antologia de Spoon River” | Foto: Reprodução

De acordo com Alcebiades Diniz, “a poesia de Masters realiza a dinâmica imaginada por Adorno em uma escala muito maior, abarcando os mortos e o bem mais precioso que deixaram aos vivos: sua história, as narrativas preciosas e fragmentárias de suas vidas, por mais aparentemente insignificantes que tenham sido”. Os personagens dos poemas são pessoas do povão, artistas, poetas, banqueiro, médico, padre, juiz, gravador (de epitáfios).

John Hallwas observa na poética de Lee Masters o que às vezes nos escapa: o ato de não “prestar atenção aos que estão à nossa volta”. O silêncio, dos vivos e dos mortos, pode simbolizar “gritos” e “clamores”. O poeta capta a voz dos mortos, de maneira imaginativa. Os mortos “falam” e, portanto, estão “vivos”. Como o passado, estão presentes. Por meio de suas memórias.

A poesia de Lee Masters faz os mortos, de dois cemitérios das cidades de Petersburg e Lewistown (Cemitério de Oak Hill), no Estado americano de Illinois, falarem sobre os prazeres e dores da vida. Os poemas não são reportagens, portanto não há precisão factual. A narrativa do bardo deriva de sua imaginação poderosa. Quer dizer, é arte, criação.

O prosador, poeta e tradutor italiano Cesare Pavese advertiu, em 1941, contra a “redução do livro de Masters ‘a um documento étnico ou a um espelho jornalístico de uma civilização’. (…) A verdadeira comoção que provoca no leitor é de uma natureza mais profunda e universal; na realidade, é uma radiografia da condição humana”, escrevem os tradutores argentinos Enrique Butti e Silvio Cornú.

Lee Masters, evidentemente, não conheceu os mortos — talvez tenha conhecido alguns —, mas visitou os cemitérios, em companhia de sua mãe (fala-se também numa avó). Deve ter observado as lápides com interesse e lido os epitáfios. Sobretudo, ouviu com atenção as “fofocas” — que, muitas vezes, são apenas verdades picantes — e “segredos” revelados por sua mãe. Por sinal, ela não apreciou o livro. O pai, pelo contrário, adorou.

O que Lee Masters mostra é que a morte pode não ser um “fim”. Talvez seja um “recomeço”, se as memórias forem ativadas. O poeta pode ser o porta-voz dos que às vezes não têm uma história pública relevante. “Antologia de Spoon River” é, de alguma maneira, um romance da morte em forma de poesia, com versos livres.

Poema sobre a namorada de Abraham Lincoln

Quando publicado, muita gente não gostou do livro, que chegou a ser proibido de circular nas escolas e bibliotecas de Lewistown (até 1974), com a aprovação da mãe de Lee Masters (conselheira de uma biblioteca). Hoje, o livro “serve” de roteiro turístico no cemitério de uma das cidades (um poema “ilustra” o túmulo de Anne Rutledge). As cidades e seus cemitérios se tornaram referências turísticas, devido ao livro do escritor.

Anne Rutledge: a primeira namorada de Abraham Lincoln | Imagem criada por George S. Stuart

Curiosamente, Lee Masters está enterrado no cemitério Oakland, em Petersburg, não muito distante da tumba de Anne Rutledge, a primeira namorada e paixão do presidente americano Abraham Lincoln. Os dois de fato namoraram. Ela morreu aos 22 anos, de tifo. O escritor morreu pobre e solitário, em 1950, aos 81 anos.

O poema “Anne Rutledge” é um dos mais belos. Confira a tradução: “De mim indigna e ignota/ As vibrações da música imortal;/ “A ninguém com maldade, a todos com caridade.”/ De mim, o perdão de milhões para milhões,/ E o rosto benevolente de uma nação/ Luzindo com justiça e verdade./ Eu sou Anne Rutledge que dorme sob essas ervas,/ Amada em vida por Abraham Lincoln,/ Com ele casada, não pela união,/ Mas pela separação./ Para sempre florescei, ó República,/Desde o pó do meu seio!”

É o poema que mais me comove, pela beleza dos versos “Amada em vida por Abraham Lincoln,/ Com ele casada, não pela união,/ Mas pela separação”. É um grande momento poético.

Abe Lincoln, um dos mais importantes presidentes dos Estados Unidos, não precisa de louvores do poeta, porque já é grande o suficiente (aboliu a escravatura e uniu à força o Sul ao Norte, possibilitando o desenvolvimento pleno do capitalismo no país). O crítico Edmund Wilson, no livro “11 Ensaios — Literatura, Política, História” (Companhia das Letras, 333 páginas, tradução de José Paulo Paes e seleção e prefácio de Paulo Francis), assinala que o político — leitor siderado de Shakespeare (como Faulkner), escrevia os próprios discursos — pode ter inventado a prosa enxuta que, mais tarde, desaguou em Mark Twain e, em seguida, em Ernest Hemingway.

Já Anne Rutledge seria desconhecida, ou mereceria um rodapé num calhamaço de algum erudito, não fosse o poema de Lee Masters.

Eugene Carman pragueja contra sua alienação

No seu curto, mas ótimo ensaio “Memória, Autocompreensão e comunidade na ‘Antologia de Spoon River’”, John E. Hallwas sublinha que “alguns dos melhores poemas (…) resumem toda uma concepção da vida, ou dramatizam a autoavaliação muitas vezes amarga ou desiludida de alguém”.

Um dos poemas mais poderosos é, no dizer de John E. Hallwas — e o crítico tem razão —, “Eugene Carman”: “Escravo de Rhodes!/ Vendendo sapatos e guingão,/ Farinha e bacon, macacões, roupas, o dia todo,/ Por catorze horas por dia, por trezentos e trinta dias,/ Por mais de vinte anos,/ Dizendo ‘Sim, senhora’, ‘Sim, senhor’ e “Obrigado’,/ Mil vezes por dia, e tudo por cinquenta dólares por mês./ E vivendo neste quarto fedorento do ‘Comercial’, uma ratoeira./ E obrigado a frequentar a Escola Dominical, e a ouvir/ O Rev. Abner Peet cento e quatro vezes ao ano,/ Por mais de uma hora a cada vez,/ Porque Thomas Rhodes dirigia a igreja,/ Bem como a loja e o banco./ Então, quando atava minha gravata naquela amanhã,/ Eu de súbito me vi no espelho:/ Meu cabelo estava todo grisalho, meu rosto, qual torta empapada./ Então praguejei: Maldita velharia!/ Cão covarde! Pobre carcomido!/ Escravo de Rhodes! Até que Roger Baughman/ Pensou que eu estava brigando com alguém,/ E espiou pelo travessão bem em tempo/ De me ver cair ao chão como um fardo,/ Por uma veia estourada em minha cabeça.”

“Eugene Carman” é o retrato de uma sociedade, a americana, com alta concentração de riqueza e poder, até o religioso. Por assim dizer, é o “Capital”, o de Marx, em versos altamente enxutos e questionadores (até a mais valia absoluta aparece). Ao fim da vida, quando já era tarde, a alienação do trabalhador, quase escravo, cessou. Mas ele, mesmo morto, pelo menos “pôde” desabafar e gritar.

Giuliana Ragusa: uma das tradutoras da poesia de Edgar Lee Masters | Foto: Reprodução

John E. Hallwas nota que Eugene Carman, possivelmente negro, não amaldiçoa “o empregador opressivo, avarento e insensível, mas a si mesmo, por permitir que sua vida fosse o que era”. Ouso acrescentar que, ao seu modo, o trabalhador amaldiçoa o patrão, a igreja — os poderes perceptíveis — e a si mesmo.

A poeta Minerva Jones e Lucinda Matlock

Não há como não apreciar o doloroso — e magnífico — poema “Minerva Jones”. Não vou transcrevê-lo na íntegra, como fiz com outros os dois acima, para não tirar o prazer do leitor do livro. Seu início: “Eu sou Minerva Jones, a poetisa da vila/ Nas ruas vaiada e insultada pelos brutamontes/ Por ser manca, vesga e corpulenta”.

O pai de Minerva Jones fala no poema ‘“Indignado’ Jones e lamenta a desdita da filha. “Pobre Minerva, minha filha.” Antes, reclama: “Às vezes, a vida de um homem vira um câncer”. Noutro poema conectado aos dois anteriores, “Doutor Meyers”, o médico diz que tentou salvá-la, mas a poeta morreu.

No quarto poema sobre Minerva Jones, “Senhora Meyers”, a mulher do médico diz que ele “não fora culpado da desgraça de Minerva”. E admoesta os passantes: “Se caminhos de suavidade hão de ser vossos caminhos”. (Fica-se com a impressão de que Minerva Jones sofreu violência sexual e morreu na tentativa de fazer um aborto. Diz-se impressão porque não se fala diretamente a respeito.)

Ezra Pound, Cesare Pavese e Jorge Luis Borges: admiradores da obra de Lee Masters | Fotos: Reproduções

Giuliana Ragusa aprecia o poema “Lucinda Matlock”, “síntese da longa vida plenamente vivida”. Com a licença de Bruno Costa, o notável editor da Ex Machina e uma voz civilizatória neste país que mescla beleza e brutalidade, transcrevo o poema: “Fui aos bailes de Chandlerville,/ E joguei cartas em Winchester./ Certa vez trocamos de parceiros/ Voltando para casa sob o luar de junho./ Foi quando conheci Davis./ Casamos e vivemos por setenta anos juntos,/ Com alegria, labutando e criando doze filhos,/ Oito dos quais perdemos/ Antes que eu chegasse aos sessenta./ Fiei, teci, cuidei de casa e dos doentes,/ Fiz o jardim, e nos feriados/ Andei pelos campos onde canta a cotovia,/ E ao largo de Spoon River, colhi tantas conchinhas,/ E muito mais flores e ervas medicinais,/ Cantando para os vales, saudando as colinas verdejantes./ Aos noventa e seis, tinha vivido o bastante, simples assim,/ E passei a um doce descanso./ Que é isto que ouço, de mágoa e cansaço,/ Raiva, desgosto e esperanças perdidas?/ Degenerados filhos e filhas,/ A vida é forte demais para vocês —/ É preciso uma vida para amar a Vida.”

O poeta Petit e Amanda Barker

“Petit, o poeta” é imperdível para todos, notadamente para os bardos. “Pequeno”, como sugere o título, Petit não percebeu a riqueza das coisas à sua volta. Só no final, mortíssimo da silva, entendeu-se: “A tudo fui cego a vida toda”. Muitos moram numa rua e não sabem o nome de suas árvores e não conhecem os pássaros — como sabiá laranjeira, sabiá do campo, cambacica (que fura as jabuticabas de meu pequeno pomar e, mesmo assim, ganha minha simpatia), sanhaço, saíra amarela, saí azul, udu coroado, pica-pau de cabeça vermelha, bem-te-vi — que encantam, com plumagens e cantares, seus bairros.

“Pauline Barrett”, no poema que a homenageia, diz: “Tornei-me a sombra — quase! — da mulher que fui. (…)/ Eu apenas a sombra de mim mesma./ De que falamos? — do céu e das águas,/ De tudo, enfim, para ocultar nossos pensamentos”.

“Samuel Gardner” conclui: “E como poderia a alma de um homem/ Ser maior que a vida que ele viveu?”

Edgar Lee Masters faz os mortos falarem por meio de sua bela poesia | Foto: Reprodução

“Amanda Barker” é um dos poemas mais fortes e doloridos do livro. Merece transcrição integral: “Henry fez um filho em mim,/ Sabendo que eu não podia trazer à luz uma vida/ Sem perder a minha./ Ainda jovem assim atravessei os portais do pó./ Viajante, na vila onde vivi creem/ Que Henry me amou com o amor de um marido,/ Mas eu proclamo aqui deste pó/ Que ele me assassinou para satisfazer seu ódio.”

Trata-se de um poema feminista escrito e publicado por um homem, em 1915 — há 110 anos.

Lee Masters publicou os 244 poemas (com 212 personagens) na revista “Reedy’s Mirror”, do amigo William Marion Reedy (o que lhe emprestou a “Antologia Grega”), sob o pseudônimo de Webster Ford . Só colocou seu nome quando publicou o livro, que, de cara, vendeu 80 mil exemplares. O autor ficou tão famoso e ganhou tanto dinheiro que pôde se mudar para Nova York, trocando a “carreira” de advogado pela de escritor. Era poeta e biografou, entre outros, o filósofo Ralph Waldo Emerson.
O início de “Jeremy Carlisle” é uma lição, por assim dizer, de antropologia: “Passantes, pecado para além de todo pecado/ É o pecado da cegueira das almas perante outras almas”. O morto, mais vivo do que nunca, está “conversando”, por seu porta-voz, Lee Masters, com os visitantes do cemitério e, também, os leitores — todos “passantes”.

O livro de Lee Masters lembra os mortos do romance “Vernônia” (“Ironweed”; há uma bela tradução de Sergio Flaksman), de William Kennedy, um autor do primeiro time que precisa ser mais estimado pelos leitores. Ambos os escritores nos dizem, de diferentes modos: não esqueçam os mortos, a história deles não acaba com a morte física, com o “definhar” do corpo. A morte é um pedacinho da vida, não é o fim de tudo.

Duas traduções do livro de Lee Masters

Edgar Lee Masters e duas traduções: uma brasileira e uma argentina | Fotos: Jornal Opção e reprodução

Ivan Justen Santana traduziu “Antologia de Rio Spoon” (310 páginas) para a Kotter Editorial (258 páginas). A edição, de 2022, conta com tradução fluente e precisa. Confira como traduziu “Anne Rutledge”: “Fora de mim indignas e desconhecidas/ As vibrações da música imortal;/ ‘Com malícia a ninguém, com caridade a todos.’/ Fora de mim o perdão de milhões para milhões,/ E a face beneficente de uma nação/ Brilhando com justiça e verdade./ Eu sou Anne Rutledge que dorme sob essas ervas,/ Amada na vida de Abraham Lincoln,/ Casada com ele, não através de união,/ Mas através de separação./ Floresce para sempre, Ó República,/ Do pó de meu peito!”

O livro “Antología de Spoon River” foi traduzido na Argentina pelo jornalista e escritor Enrique Butti e pelo professor de Latim Silvio Cornú. Saiu pela Ediciones UNL, em 2023. Transcrevo “Anne Rutledge”: “De mí, indigna y desconocida,/ emanan las vibraciones de esa música inmortal:/ ‘Sin malicia hacia nadie, con caridad hacia todos’./ De mí, el perdón de millones hacia millones/ y el rostro generoso de una nación/ resplandeciente de justicia y verdad./ Quien duerme bajo estas malezas soy yo, Anne Rutledge,/ amada en vida por Abraham Lincoln,/ esposa de él no a través de la unión/ sino de la separación./ !Florece para siempre, oh República,/ desde el polvo de mi seno!”

(O livro pode ser adquirido no site da Editora Ex Machina: https://www.editoraexmachina.com.br/)

(Email: [email protected])