Editora 34 publica livro da notável poeta e prosadora uruguaia Cristina Peri Rossi

06 setembro 2025 às 21h00

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“Na obra de Cristina Peri Rossi, a linguagem é o trilho pelo qual se movimenta o trem da poesia, impulsionado pela locomotiva, o desejo.” — Ayelén Medail
A poesia da uruguaia Cristina Peri Rossi, de 83 anos, chega ao Brasil da melhor maneira possível. Primeiro, com uma tradução de primeira linha — empreendimento da argentina Ayelén Medail, que mora no Brasil, e de Cide Piquet. São 150 poemas escolhidos a dedo.
Segundo, com uma “nota dos tradutores”, um posfácio luminoso de Ayelén Medail, publicado sob o título “O trem do desejo”, a bibliografia completa de Cristina Peri Rossi (além de prosadora e poeta, traduziu Graciliano Ramos, Osman Lins, Fernando Gabeira, Clarice Lispector, Ignácio de Loyola Brandão; cito apenas brasileiros), uma pequena biografia e o discurso da escritora para o Prêmio Cervantes.
“Nossa Vingança é o Amor — Antologia Poética (1971-2024)”, edição bilíngue, prova a excelência da Editora 34. Chega a ser espantoso que uma escritora de tão alto nível esteja sendo publicada no Brasil somente agora. Pelo menos chega com alta qualidade.

A Bazar do Tempo publicou, também em 2025, o romance “A Insubmissa”, de Cristina Peri Rossi, com tradução de Anita Rivera Guerra. A versão e a edição são bem-feitas. Aqui e ali, assusto-me com a palavra “vigilar”, que a tradutora optou por não verter para “vigiar”, quiçá para abrir espaço para certo estranhamento.
“A Insubmissa” prova que a vida real, no caso a de Cristina Peri Rossi, pode render um grande romance. Claro, há a história da menina e da adolescente que vai se tornando adulta. Mas relevante mesmo é como a escritora “reinventa” sua história para os leitores… como escreve bem a diaba celeste. Sua relação com a mãe e com a natureza é de uma beleza rara.
Dirão de “A Insubmissa” que é um romance de formação lésbico. Sim, é. Porém, é mais do que isto, porque a vida é vária. Portanto, é um romance prenhe de humanidade. É, acima de tudo, grande literatura. Trata-se de um dos livros mais belos que li nos últimos anos. Pega-se e não se quer largar.
Cristina Peri Rossi era luminosa desde criança. Aos 9 anos, anunciou que seria escritora. Se tornou um pouco mais: prosadora, poeta, crítica literária, tradutora, professora. Trata-se de um gênio literário. Portanto, precisa ser mais publicada no Brasil.

Desde 1972, Cristina Peri Rossi mora em Barcelona, com rápida passagem por Paris. Escapou do Uruguai para não ser presa e, até, assassinada. Seus livros já estavam proibidos e havia sido demitida do Instituto Artigas, onde era professora.
Entre os muitos admiradores de Cristina Peri Rossi estavam Julio Cortázar (tentou namorá-la, e ela não quis; então, se tornaram amigos), Mario Benedetti e Mario Vargas Llosa.
No poema que transcrevo abaixo há dor, brutalidade, história e, sim, uma ironia fina contra o lugar-comum, digamos, do jornalismo, da vida.
Aos leitores de Goiânia, um aviso: os dois livros podem ser encontrados na Livraria Palavrear.
Poema de Cristina Peri Rossi
[Tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet]
E veio um jornalista de não sei onde
perguntando o que era para nós o exílio
Não sei de onde era o jornalista,
mas mesmo assim o deixei entrar
O quarto estava úmido estava frio
há dois dias não comíamos direito
só água e pão
as cartas traziam más notícias do Outro Lado
“O que é o exílio para você?”, me disse
oferecendo um cigarro
Não respondo às cartas para não comprometer os meus parentes
“Pedro teve os dois olhos arrebentados
antes de ser morto a golpes, antes,
só um pouco antes”
“Gostaria que me dissesse o que é o exílio para você”
“Alice foi estuprada cinco vezes
e depois a deixaram para os cães”
Bem treinados,
os cães dos militares,
animais fortes,
comem todos os dias,
fornicam todos os dias,
com belas garotas belas mulheres,
a culpa não é dos cães,
sabe como é,
cães fortes,
os cães dos militares,
comem todos os dias,
não lhes falta uma mulher para fornicar
“O que é o exílio para você?”
Provavelmente vão lhe dar dinheiro pelo artigo,
nós, há dias não comemos
“A moral é alta, companheiro, a moral está intacta”,
quebrados os dedos, a moral está alta, companheiro,
estuprada a mulher, a moral continua alta, companheiro,
desaparecida a irmã, a moral está alta, companheiro,
faz dois dias que só comemos moral,
da alta, companheiro
“Diga-me, o que é o exílio para você”
O exílio é comer moral, companheiro.