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“Na obra de Cristina Peri Rossi, a linguagem é o trilho pelo qual se movimenta o trem da poesia, impulsionado pela locomotiva, o desejo.” — Ayelén Medail

A poesia da uruguaia Cristina Peri Rossi, de 83 anos, chega ao Brasil da melhor maneira possível. Primeiro, com uma tradução de primeira linha — empreendimento da argentina Ayelén Medail, que mora no Brasil, e de Cide Piquet. São 150 poemas escolhidos a dedo.

Segundo, com uma “nota dos tradutores”, um posfácio luminoso de Ayelén Medail, publicado sob o título “O trem do desejo”, a bibliografia completa de Cristina Peri Rossi (além de prosadora e poeta, traduziu Graciliano Ramos, Osman Lins, Fernando Gabeira, Clarice Lispector, Ignácio de Loyola Brandão; cito apenas brasileiros), uma pequena biografia e o discurso da escritora para o Prêmio Cervantes.

“Nossa Vingança é o Amor — Antologia Poética (1971-2024)”, edição bilíngue, prova a excelência da Editora 34. Chega a ser espantoso que uma escritora de tão alto nível esteja sendo publicada no Brasil somente agora. Pelo menos chega com alta qualidade.

Cristina Peri Rossi capa de Nossa Vingança é o amor foto menor

A Bazar do Tempo publicou, também em 2025, o romance “A Insubmissa”, de Cristina Peri Rossi, com tradução de Anita Rivera Guerra. A versão e a edição são bem-feitas. Aqui e ali, assusto-me com a palavra “vigilar”, que a tradutora optou por não verter para “vigiar”, quiçá para abrir espaço para certo estranhamento.

“A Insubmissa” prova que a vida real, no caso a de Cristina Peri Rossi, pode render um grande romance. Claro, há a história da menina e da adolescente que vai se tornando adulta. Mas relevante mesmo é como a escritora “reinventa” sua história para os leitores… como escreve bem a diaba celeste. Sua relação com a mãe e com a natureza é de uma beleza rara.

Dirão de “A Insubmissa” que é um romance de formação lésbico. Sim, é. Porém, é mais do que isto, porque a vida é vária. Portanto, é um romance prenhe de humanidade. É, acima de tudo, grande literatura. Trata-se de um dos livros mais belos que li nos últimos anos. Pega-se e não se quer largar.

Cristina Peri Rossi era luminosa desde criança. Aos 9 anos, anunciou que seria escritora. Se tornou um pouco mais: prosadora, poeta, crítica literária, tradutora, professora. Trata-se de um gênio literário. Portanto, precisa ser mais publicada no Brasil.

Cristina Peri Rossi capa de A Insubmissa 1 300

Desde 1972, Cristina Peri Rossi mora em Barcelona, com rápida passagem por Paris. Escapou do Uruguai para não ser presa e, até, assassinada. Seus livros já estavam proibidos e havia sido demitida do Instituto Artigas, onde era professora.

Entre os muitos admiradores de Cristina Peri Rossi estavam Julio Cortázar (tentou namorá-la, e ela não quis; então, se tornaram amigos), Mario Benedetti e Mario Vargas Llosa.

No poema que transcrevo abaixo há dor, brutalidade, história e, sim, uma ironia fina contra o lugar-comum, digamos, do jornalismo, da vida.

Aos leitores de Goiânia, um aviso: os dois livros podem ser encontrados na Livraria Palavrear.

Poema de Cristina Peri Rossi

[Tradução de Ayelén Medail e Cide Piquet]

E veio um jornalista de não sei onde

perguntando o que era para nós o exílio

Não sei de onde era o jornalista,

mas mesmo assim o deixei entrar

O quarto estava úmido estava frio

há dois dias não comíamos direito

só água e pão

as cartas traziam más notícias do Outro Lado

“O que é o exílio para você?”, me disse

oferecendo um cigarro

Não respondo às cartas para não comprometer os meus parentes

“Pedro teve os dois olhos arrebentados

antes de ser morto a golpes, antes,

só um pouco antes”

“Gostaria que me dissesse o que é o exílio para você”

“Alice foi estuprada cinco vezes

e depois a deixaram para os cães”

Bem treinados,

os cães dos militares,

animais fortes,

comem todos os dias,

fornicam todos os dias,

com belas garotas belas mulheres,

a culpa não é dos cães,

sabe como é,

cães fortes,

os cães dos militares,

comem todos os dias,

não lhes falta uma mulher para fornicar

“O que é o exílio para você?”

Provavelmente vão lhe dar dinheiro pelo artigo,

nós, há dias não comemos

“A moral é alta, companheiro, a moral está intacta”,

quebrados os dedos, a moral está alta, companheiro,

estuprada a mulher, a moral continua alta, companheiro,

desaparecida a irmã, a moral está alta, companheiro,

faz dois dias que só comemos moral,

da alta, companheiro

“Diga-me, o que é o exílio para você”

O exílio é comer moral, companheiro.