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O jornal “El Mundo”, um dos mais importantes da Espanha, listou “os dez melhores ensaios” publicados no país em 2022. A rigor, alguns dos livros, como os de Orlando Figes e Antony Beevor, são mais do que ensaios — são análises históricas abrangentes, resultado de pesquisas meticulosas.

A maioria dos livros listados, inclusive os de Orlando Figes e Antony Beevor — historiadores com vários obras publicadas no Brasil —, não saiu no país das editoras Companhia das Letras, 34, Record, Intrínseca, Autêntica, Globo Livros e tantas outras. Fica, portanto, a dica.

Os textos a seguir são, no geral, traduções daquilo que “El Mundo” publicou, com alguns acréscimos de minha autoria.

À lista, o jornal acopla dois breves ensaios de Juan Claudio de Ramón, “Un género lleno de futuro”, e Daniel Capó, “Una dolce época de ensayos”.

Ramón diz que o ano de 2022 foi “eclético para a não ficção”. Os livros versaram sobre o problema da desigualdade social, o novo feminismo, a morte da democracia e as consequências da pandemia do novo coronavírus. “Saíram bons livros de história sobre a Ucrânia e a Rússia.” Alguns ensaios também discutem o futuro, o que, em alguns casos, aproximou-os da quiromancia. O passado foi amplamente discutido. “O passado fascina porque, como não podemos vivê-lo como tempo, o experimentamos como um lugar, e reclamamos guias que nos ajudem a explorá-lo.”

Na Espanha, de acordo com Ramón, as editoras (e, por certo, os leitores) têm a não-ficção em alta conta. Editoras tradicionais e selos jovens deram amplo destaque para obras que discutem história e filosofia. Ele elogia a Athenaica, de Sevilha, e a Arpa, de Barcelona. E cita o livro “O Infinito em um Junco — A Invenção dos Livros no Mundo Antigo” (Intrínseca, 496 páginas, tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht), da escritora e filóloga espanhola Irene Vallejo, como exemplo de narrativa bem construída. “É o tipo de livro que se lê como um romance e com o qual se aprende muito.”

Daniel Capó menciona a “realidade ondulante” (referência a Montaigne) ao expor a “permanência” da violência, por exemplo, na Ucrânia, que está sendo destruída pela Rússia de Vladimir Putin, misto de czar e comunista, mas não sendo nenhum dos dois — talvez seja uma versão modernizada do arcaico russo a respeito do qual tanto comentaram Tolstói, Turguêniev e Ivan Gontcharóv. O autor sugere que o ensaio é uma forma de explorar o retorno da Rússia como sujeito internacional, a presença cada vez mais hegemônica da China no circuito internacional, “a crise recorrente da democracia liberal, o poder da tecnologia e as mudanças que provoca na sociedade, o conhecimento científico, as modas”.

Na opinião de Daniel Capó, “o ensaio — ou melhor, a não ficção — vive uma era dourada. (…) O homem continua continua sendo um animal carente de sentido e, por isso, o ensaio desempenha um função crucial”. Como Ramón, cita o belo livro de Irene Vallejo. Nota que a Espanha está publicando com rapidez livros que saem em outros países, como Inglaterra e França. E conclui: “Nenhum país é melhor que seu músculo editorial e livreiro”.

Curiosamente, dos 10 livros listados apenas um foi publicado no Brasil.

1

La Historia de Rusia — Orlando Figes

O britânico (naturalizado alemão) Orlando Figes é um dos principais historiadores da história da Rússia e da União Soviética. Ele é autor da, talvez, melhor história da Revolução Russa, além de um livro extraordinário (uma verdadeira enciclopédia analítica) sobre a história cultural da Rússia. O livro lançado na Espanha, “A História da Rússia”, ainda não foi lançado no Brasil. “El Mundo” o apresenta como um dos destaques de 2022. O jornal frisa que o livro conta 1000 anos da história do país, com “inevitáveis e interessantes ecos de atualidade, dada a situação que se vive hoje”. A obra serve, portanto, para compreender tanto o passado como o presente. A guerra da Rússia contra a Ucrânia tem a ver com o passado (3,5 milhões de ucranianos morreram durante o Holodomor, a fome criada artificialmente por Stálin e por seus auxiliares, na primeira metade da década de 1930) e com o presente (a Rússia está lutando para destruir e submeter o país do presidente Volodymyr Zelensky). “O livro de que precisa para entender a Rússia moderna”, diz a historiadora Anne Applebaum (autora de um livro seminal sobre o Gulag). Estranhei que, para um período tão longo da história russa, Figes tenha lhe dedicado menos de 500 páginas. Seus livros costumam ter de 882 (“Uma História Cultural da Rússia) a 824 páginas (“Sussurros — A Vida Privada na Rússia de Stálin”). Há uma edição portuguesa pela Dom Quixote.

Editora Taurus, 480 páginas, tradução de María Serrano.

2

Rusia. Revolución y Guerra Civil — Antony Beevor

O britânico Antony Beevor é especialista em Segunda Guerra Mundial, mas vem incursionando no estudo da história da Rússia-União Soviética no século 20 (organizou o magnífico “Um escritor na Guerra: Vassili Grossman com o Exército Vermelho”, publicado no Brasil pela Objetiva). De acordo com “El Mundo, “Rússia — Revolução e Guerra Civil, 1917-1921” é “uma das pesquisas mais atualizadas e profícuas dos últimos tempos em arquivos sobre a época da Revolução de 1917 e da Guerra Civil na Rússia”. Frise-se que, nesse período, Vladimir Lênin — que era o stalinismo engatilhado (o stalinismo é o leninismo atirando) — ainda era o mandachuva (morreu em 1924). O totalitarismo pode ter começado mais cedo, e antes da hegemonia do poderoso chefão de bigode de barata (segundo a poesia de Óssip Mandelstam). A história narrada pelo scholar do país de Winston Churchill abarca não apenas os grandes líderes, como Lênin, Liev Trótski e Ióssif Stálin. Ele relata o comportamento do “trabalhador na rua, do oficial de cavalaria no campo de batalha e da mulher de um médico num hospital”. O livro oferece a “oportunidade de se entender por que a Rússia de hoje é como é”. Inédito no Brasil. Há uma edição portuguesa da Bertrand.

Crítica, 680 páginas, tradução de Gonzalo García.

3

Morir por las Ideas — Costica Bradatan

“El Mundo” assinala que, no livro “Morrer Pelas Ideias — A Perigosa Vida dos Filósofos”, Costica Bradatan, doutor pela Universidade de Durhan (na Inglaterra) e professor universitário no Texas, “recolhe a história dos grandes filósofos que se mantiveram imperturbáveis ante a adversidade e foram fiéis a suas ideias até o fim, ainda que o final fosse o verdadeiro final, quer dizer, a morte. Sócrates, Hipatia, Thomas More, Giordano Bruno e Jan Patocka morreram por defender suas ideias em um momento decisivo. Alguns foram julgados e condenados por não aceitarem as regras do poder estabelecido. Outros morreram nas mãos de multidões enfurecidas [a filósofa Hipatia foi assassinada por uma multidão de cristãos] ou sob interrogatório da polícia [Patocka, pressionado na Tchecoslováquia comunista, morreu, de ataque cardíaco, em 1977]”. Curiosamente, o livro “O Julgamento de Sócrates”, de I. F. Stone, postula a tese de que o filósofo grego foi obrigado a beber cicuta porque estava tentando corromper a juventude, numa ação, não a favor e sim contra a democracia. A obra de Costica Bradatan saiu no Brasil pela Editora Grua Livros, com tradução de Bruno Gambarotto, com o título de “Morrer por Ideias — Os Filósofos e Suas Vidas Perigosas”.

Anagrama, 336 páginas, tradução de Antonio-Prometeo Moya Valle.

4

Libertad. Una Historia de la Ideia — Josu de Miguel

Josu de Miguel, professor de Direito Constitucional, ao escrever um ensaio sobre os desafios contemporâneos, colocou a liberdade como questão central. A liberdade, frisa o mestre, tem a ver com “a identidade humana. Ao comentar o livro, o crítico Juan Claudio de Ramón escreveu: ‘Como toda embarcação a vela, o avanço do veleiro depende da força que o vento imprime sobre seu equipamento; assim também a liberdade, neste livro, depende, e muito, de onde sopram, em cada momento, os ventos da história”. Uma coisa curiosa é que, em nome da segurança e do medo, os indivíduos às vezes sacrificam a liberdade, conferindo amplos poderes para o Estado fiscalizar e, portanto, controlar suas vidas. Ao mesmo tempo, as grandes empresas de tecnologia, como Facebook e Google, para citar apenas duas, praticamente tomaram conta da vida dos cidadãos, fiscalizando suas vidas e, de alguma maneira, dando-lhe norte. Inédito no Brasil.

Editora Athenaica, 127 páginas.

5

Madrid 1945 — Andrés Trapiello

“Madri 1945 — A Noite dos Quatro Caminhos” é definido assim por “El Mundo”: “Pesquisa, ensaio sobre relações internacionais, livro de não-ficção. Este volume de Andrés Trapiello é, ao cabo, um estudo pormenorizado de uma época concreta e de vidas que também o são. Primeiro, sobre o franquismo e o comunismo. Segundo, citando indivíduos, como Rufina Murilla del Pueyeos, Hilario Pérez Rocha, Carmen Moreno Berzal, Santiago Carrillo Solares. Tudo começou assim: nos anos 1990, André Trapiello encontrou uns papéis na Costa de Moyano. Era o expediente policial de 11 processados por assalto a um quartel da Falange [franquista] na Rua Ávila, no bairro de Quatro Caminhos, em 25 de fevereiro de 1945”. No site da Casa Del Libro se obtém mais informações. Dois falangistas foram mortos pelos comunistas. Mas os esquerdistas foram presos e, alguns, executados. “Alguns conseguiram sobreviver: trabalhar para o serviço secreto da embaixada dos Estados Unidos os livrou da execução.” A história, considerada incrível, era vista meio como ficção. Mas o pesquisador mostra que é um fato histórico. Por isso, a editora frisa que se trata de “um relato veraz, estremecedor e trepidante de maquis nos anos mais tenebrosos do franquismo e do comunismo espanhol”. Inédito no Brasil.

Editora Destino, 512 páginas.

6

Las Personas Más Raras del Mundo — Joseph Henrich

“As Pessoas Mais Estranhas do Mundo — Como o Ocidente Chegou a Ser Psicologicamente Peculiar e Particularmente Próspero” é o título completo do livro de Joseph Henrich (diferentes ficaria melhor do que estranhas?). De acordo com o jornal espanhol, “as pessoas mais ‘estranhas’ do mundo são ‘weird’, em inglês ‘estranho’ e acrônimo do que, para o autor, significa ‘western, educated, industrialized, rich and democratic’. O pesquisador fala de pessoas consideradas extremamente estranhas “mas que são coerentes com sua época: obcecadas consigo mesmas, narcisistas, individualistas, controladoras, analíticas… Henrich aproveita para expor também as estruturas familiares, o casamento, a religião e as consequências que todos eles acabam acarretando para nosso estado emocional e psicológico. Sendo este último assunto, por certo, chave nos tempos atuais, nos quais muito se fala sobre a saúde mental”. Inédito no Brasil.

Editora Capitán Swing, 809 páginas, tradução de Jesús Negro.

7

Fake News — Daniel Gascón

O livro contém ensaios sobre política e cultura na Espanha atual. O subtítulo da obra é, por sinal, “Como acabar com a política espanhola”. Segundo “El Mundo”, “há também textos, vinhetas e muita ironia. A crítica Amelia Castilla escreveu: ‘Gascón imagina um país dividido entre partidários de Tchékhov e Dostoiévski para abordar o enfrentamento político que se vive na Espanha’”. A rigor, não é muito diferente do Brasil e de outros países. Na terra do presidente Lula da Silva, do PT, há uma guerra declarada, nas redes sociais e sites, entre petistas e bolsonaristas. Estes se tornaram especialistas em fake news, e não pararam nem mesmo depois da derrota de Jair Bolsonaro para presidente da República. Tanto que o Supremo Tribunal Federal promove uma “caçada” àqueles que, a serviço do bolsonarismo, criaram gabinetes do ódio para atacar, com extrema violência verbal e falsificações sem limites, adversários e inimigos. Inédito no Brasil.

Editora Debate, 272 páginas.

8

Delírio Americano — Carlos Granés

O livro, frisa “El Mundo”, trata das “muitas e complicadas relações entre a América Latina e a Europa ao longo do século 20. É uma história imensa, intrincada e exuberante. O ensaio de Carlos Granés revela conexões surpreendentes e interessantes entre numerosas figuras relevantes em distintos campos da arte”. O autor comenta sobre José Martí, César Vallejo, Nahui Olín, Juan Domingo Perón, García Márquez, Doris Salcedo e Caetano Veloso, entre outros. O jornal espanhol sublinha que o livro “também é o relato das reivindicações de uma América Latina que define sua identidade por intermédio de poetas e ensaístas”. O livro versa sobre o Boom literário latino-americano (que se deu na Europa), o comunismo, o fascismo e o populismo. Jorge Eduardo Benavides diz que o trabalho de Carlos Granés “é um ensaio monumental que requer um leitor ávido”. Inédito no Brasil.

Editora Taurus, 600 páginas.

9

Agua y Jabón — Marta D. Riezu

“El Mundo” assinala que o livro “pode ser um tratado sobre a elegância e, por conseguinte, também sobre a vulgaridade. Mas é, sobretudo, isto: alegria de viver, sensibilidade, algo de frivolidade. (…) O título alude a uma anedota real: ‘Perguntaram a Cecil Beaton: ‘O que é a elegância?’ Ele respondeu: ‘Água e sabão’. O livro é dividido em três partes: temperamentos, objetivos e lugares. E completa o texto um suplemento de afinidades em forma de dicionário. O livro às vezes é um passeio e outras um companheiro, que se pode abrir em qualquer página e deleitar-se. Há nos fragmentos e nomes, idas e vindas, um espaço e um tempo de palavras amáveis, sem grandes aspirações, e nenhuma delas petulantes”. Inédito no Brasil.

Editora Anagrama, 240 páginas.

10

La Agonía de Una Civilización y otros escritos de Marsella — Simone Weil

A maioria dos escritos da filósofa francesa — que combateu na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —, publicados neste livro, é póstuma. “Dona de uma moral inquebrantável, tem estes escritos certa forma inacabada que, na realidade, resulta coerente. Simone Weil estava sempre em evolução e movimento, como sua obra. ‘É como se, querendo ser, antes de tudo, filha de seu tempo, estivesse sempre adiante de todos os outros, e quase todo o tempo’, escreveu Alejandro del Río Herschmann, especialista na obra da escritora judia.” A filósofa e escritora viveu apenas 34 anos, entre 1909 e 1943. Morreu tuberculosa. Coerente, avaliando que teoria e prática devem irmanar-se, empregou-se na Renault para conhecer de perto — insider — o cotidiano dos operários da França. Inédito em português.

Editora Trotta, 168 páginas, tradução de Alejandro del Río, Emilia Bea e Carmen Revilla.