Uma das jornalistas mais queridas e experientes da GloboNews, Flávia Oliveira, de 53 anos, sabe do lugar que ocupa também na vida. E o desabafo que ela levou ao ar na terça-feira, 1º, ao participar do podcast Angu de Grilo, em que faz dupla com sua filha Isabela Reis, também jornalista, foi emocionante.

Ao comentar o resultado das eleições presidenciais no segundo turno, a veterana analista política não conteve a emoção e, com a voz bastante embargada, fez um desabafo que pode ser encarado como um libelo de todos os que foram anulados ou reprimidos durante um governo que desde o primeiro momento mostrou que contemplaria apenas uma parcela da população e não o conjunto diverso da sociedade.

Ainda no início do programa, com duração de quase duas horas, ela faz o relato que. Veja a transcrição (para ouvir, clique aqui):

O cara [Lula] foi preso, o cara foi justiçado a partir do reconhecimento de um juiz parcial, a partir do reconhecimento da violação ao princípio do juiz natural. Nunca resistiu – outro traço da democracia –, podia ter saído do País, podia ter buscado asilo. Não resistiu à prisão, não permitiu que seus apoiadores fizessem qualquer movimento no sentido de desestabilização da ordem democrática e voltará ao poder com esse capital político enorme e vocês, que são “Angu” sabem o tanto de vezes que eu disse “não discuto mais com meu povo”. Quando chegou o momento em que Lula tinha 38%, 39%, 40%, 41% das intenções espontâneas de voto, eu disse aqui neste “Angu” – vocês podem procurar – “não dá para brigar com o povo brasileiro, é Lula”, não tem terceira via, não tem outro caminho. O povo na rua, perguntado: “Vai votar em quem nas eleições?”: Lula!

Quatro em cada dez brasileiros – e depois isso aumentou para 42% dos brasileiros, 43%, enfim. Uma lealdade inabalável, sobretudo dos identitários medidos nas pesquisas: as mulheres nunca arredaram pé; os negros nunca arredaram pé; os pardos nunca arredaram pé; os pobres nunca arredaram pé; o Nordeste nunca arredou pé. Os religiosos de matriz africana, os indígenas, os LGBTQIA+ nunca arredaram pé.

Então, foi uma vitória também maiúscula de uma união das minorias, ou das maiorias minorizadas. Esculachadas nesses anos todos, muito esculachadas. Cada um de nós sabe o que passou de ataque, de risco, de luto, de empobrecimento, de fome. A gente se virou como pôde. Foi muito difícil atravessar. Eu falo como mulher negra, como mulher negra do candomblé, como mulher negra jornalista. Eu falo de todos esses lugares de fala.

Foi muito difícil se manter de pé, continuar caminhando de mãos dadas com muita gente que sofreu muito mais e não arredou pé do compromisso com a democracia. Não se corrompeu diante da eleição mais espúria em termos de abuso do poder econômico, do poder político, da violação das normas eleitorais e constitucionais.

Ninguém se vendeu, isso é muito importante, isso é muito bonito, isso é de uma beleza, de uma sabedoria e de uma força de caráter impressionantes. Então, eu também agradeço muito, em particular, às minhas irmãs mulheres negras, porque nós sabemos o que foi lidar com o racismo, com o extermínio. As favelas, as periferias, até a antevéspera sendo atacadas e criminalizadas num debate em rede nacional, em mais de um debate em rede nacional.

Não foi simples. Nós vimos na véspera da eleição uma mulher branca perseguindo um jovem negro de arma na mão, foi isso que nós vimos. Nós vimos a confirmação de que raça é tão determinante na desigualdade brasileira que ela anula a dimensão de gênero: uma mulher perseguindo um homem, uma mulher armada perseguindo um homem negro; uma mulher branca armada perseguindo um homem negro. Então, eu faço esse desabafo porque o povo brasileiro foi muito forte, o povo brasileiro progressista, comprometido com a escolha democrática pela construção da igualdade, pela permanência da Constituição Cidadã de 1988.

O desabafo de Flávia também faz compreender melhor a cena da redação da TV Globo quando do anúncio da vitória de Lula sobre Bolsonaro. O ofício do jornalismo, principalmente quando conduzido por mulheres, sempre foi oprimido neste governo exatamente desde seu início: basta relembrar as condições em que foram colocados os profissionais de imprensa que cobriram a cerimônia de posse, no dia 1º de janeiro. Depois, no Palácio da Alvorada, as equipes de reportagem foram colocadas em um “cercadinho” propositalmente instalado ao lado de outro, dos apoiadores mais fanáticos do presidente. Quando as ameaças deixaram de ser verbais para a iminência de se tornarem agressões físicas, os veículos decidiram abandonar o espaço de vez.

Patrícia Campos Mello, Miriam Leitão, Juliana Dal Piva, Vera Magalhães e Daniella Lima, só para citar as profissionais mais conhecidas, corroboram a fala de Flávia sobre os ataques incessantes que combinavam atividade profissional e gênero. Assim sendo, a fala expiatória da jornalista negra não é nada mais do que a explicação da festa na redação da Globo, não pela vitória de Lula, mas pela derrota de Bolsonaro.