Criador do WikiLeaks diz que não há evidência de que Michel Temer “é” espião pago pelos Estados Unidos

21 janeiro 2017 às 10h13

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Entrevistado por Fernando Morais, Julian Assange afirma que Hillary Clinton e Donald Trump pensam como políticos imperialistas e sugere que urnas eletrônicas podem ser fraudadas

Um dos mais talentosos biógrafos brasileiros, o jornalista e escritor Fernando Morais criou o site “Nocaute”. Há um cheiro de petismo-esquerdismo no ar. Mesmo assim, o autor do livro “Chatô — O Rei do Brasil”, biografia de Assis Chateaubriand e de parte da mídia brasileira, é um entrevistador de primeira linha. Recentemente, publicou uma longa entrevista de Julian Assange, o cyber ativista do WikiLeaks, que está exilado na Embaixada do Equador, em Londres. A Suécia pretende julgá-lo sob acusação de “estupro”. Na verdade, os governos americano e inglês querem “pegá-lo” porque tem revelado vários de seus segredos “inconfessáveis”.
Depois de marchas e contramarchas, Fernando Morais conseguiu entrevistar o mega-hacker, no final de dezembro. Aprove-se ou não o vezo ideológico do jornalista patropi, sempre insistindo para que Julian Assange fale mal do presidente Michel Temer, trata-se de uma grande entrevista e a imprensa brasileira deveria tê-la repercutido, sobretudo porque há referências ao Brasil. A mídia local repercute entrevistas muito mais fracas.
De cara, o entrevistado saca sua pistola cerebral para que Julian Assange detone o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Mas a resposta do hacker parece ter surpreendido Fernando Morais: “É muita ingenuidade acreditar que muda tudo tendo este ou aquele presidente no comando. Sim, o Trump foi eleito e nomeou Rex Tillerson secretário de Estado, e Rex é o CEO da Exxon. Mas quem foram os segundos maiores frequentadores da Casa Branca nos oito anos do governo Obama? Os lobistas da Exxon. O que a Hillary Clinton fazia quando era secretária de Estado? Uma das coisas principais era pressionar a favor dos interesses das empresas de petróleo. Acho que não podemos ser muito ingênuos a respeito. Os Estados Unidos vão continuar cometendo todos tipos de crimes contra seu próprio povo e também no exterior. Com Rex Tillerson como chefe do Departamento de Estado fica mais fácil saber o que eles querem fazer. Era mais difícil quando Hillary Clinton era secretária de Estado. Há bilionários no gabinete do Trump como havia no do Obama”. Uma informação que, por certo, não agrada jornalistas, especialmente os mais de esquerda.
[Há uma tendência no Brasil, inclusive ou talvez sobretudo na imprensa, a se pensar o Partido Democrata — com seus políticos, como Barack Obama e Hillary Clinton — como de esquerda. Não é, claro. O Republicano e o Democrata são partidos do establishment — defensores do Império. Diferem mais na questão de comportamento, área em que o Partido Democrata, ou ao menos políticos como Barack Obama e Hillary Clinton, é mais avançado. O leitor que tiver dúvidas sobre como agem republicanos e democratas no poder, para além da retórica mais suave dos segundos, deve ler “Guerra Secreta — A CIA, um Exército Invisível e o Combate nas Sombras” (Record, 391 páginas, tradução de Flávio Gordon), do jornalista Mark Mazzetti, “Blackwater — A Ascensão do Exército Mercenário Mais Poderoso do Mundo” (Companhia das Letras, 552 páginas, tradução de Claudio Carina e Ivan Weisz Kuck) e “Guerras Sujas — O Mundo É um Campo de Batalha” (Companhia das Letras, 840 páginas, tradução de Donald Garschagen), ambos do jornalista Jeremy Scahill. Os três livros mostram as semelhanças entre os governos de George W. Bush e Barack Obama. Pode-se falar, inclusive, em continuidade. “Guerra Secreta” sugere que a CIA e o Pentágono apreciam o democrata, visto como um “presidente duro”, para além de sua aura romântica e de suas palavras confortadoras. Ao entrevistar Julian Assange, Fernando Morais não pergunta nada disso, talvez porque tenha mais simpatia pelos democratas — como, aliás, eu tenho, nem que seja pela retórica mais afável e nas questões comportamentais. Mas não demonizo Donald Trump.]
Donald Trump possivelmente cometerá os crimes que os impérios cometem. Mas, como anota Julian Assange — menos boquirroto na entrevista a Fernando Morais —, “o processo será mais visível e as críticas internas serão muito mais intensas”. O presidente americano está desafiando a imprensa, que, por isso, tende a ser mais crítica e presente na avaliação de seu governo. Ressalte-se que, na primeira metade da década de 1970, os jornais americanos, como “Washington Post” e “New York Times”, arrancaram a pele do presidente Richard Nixon, levando-o a renunciar. “O ‘New York Times’ faz oposição a Trump, assim como a CNN e como quatro dos cinco grandes conglomerados de mídia dos Estados Unidos”, afirma o cyber ativista. Por isso, haverá mais “resistência doméstica” a um política agressiva do republicano no exterior. Em suma, haverá mais espaço para a crítica ao governo dos Estados Unidos, a partir do que dirá a própria imprensa do país, hoje meio mesmerizada por Barack Obama.
Dilma derrubada
Fernando Morais deixa Julian Assange falar à vontade, não o interrompendo. De repente, puxa o hacker para o Brasil: “Que evidências o WikiLeaks tem do envolvimento internacional na derrubada da presidente Dilma Rousseff no Brasil?” É o que, entre jornalistas, se chama de pergunta que contém a resposta, de caráter indutivo. O Supremo Tribunal Federal teria participando de uma “derrubada” da presidente Dilma Rousseff? É provável que, na intimidade, nem Fernando Morais acredite nisso. “Não publicamos nada diretamente a respeito”, assinala o australiano, certamente decepcionando o jornalista.
Como Julian Assange não lhe deu uma resposta conveniente, Fernando Morais puxa-o para sua visão dos problemas brasileiros: “Na sua opinião o que aconteceu no Brasil foi um processo de impeachment ou um golpe de Estado no estilo século 21?” O chefão do WikiLeaks replica, agora agradando — ma non troppo, dada sua falta de incisividade — o entrevistador: “Um golpe constitucional. Um golpe político”. Este não é o campo, evidentemente, no qual Julian Assange trafega bem. Se houve uma ação legalista, com a participação do Supremo Tribunal Federal, e se os poderes não foram abalados, seria possível acoplar a palavra constitucional a golpe? Talvez não. Mas, como disse, não é a praia do hacker.
Leia esta sugestão de Fernando Morais, sem interrogação e com reticências: “Há alguma evidência concreta do que a CIA…” Julian Assange logicamente respondeu de maneira vaga, mas admitindo que se usou um “truque constitucional”, que não explicita, eventualmente por não ter informação adequada sobre o que ocorreu no Brasil.
Ante a resposta, na qual não se cita especificamente a CIA, Fernando Morais faz uma pergunta pertinente: “À luz do que o WikiLeaks tornou público, é possível identificar exatamente o que a NSA (Agência de Segurança Nacional) buscava ao fazer espionagem e escutas telefônicas no Brasil?” Julian Assange diz que ministros, a Petrobrás e o presidente do Brasil foram espionados “por razões políticas ou econômicas. É uma mistura. (…) Por razões militares, espionam o Exército brasileiro. Na lista das espionáveis estão as importantes companhias energéticas”.
Michel Temer
Fernando Morais busca conectar o presidente Michel Temer com “os serviços de espionagem estrangeiros, particularmente os norte-americanos”. Julian Assange diz que documentos comprovam que, como vice-presidente, ele esteve na Embaixada dos EUA. “Ele está claramente dando informações internas à Embaixada dos Estados Unidos por alguma razão. Provavelmente para pedir algum favor aos Estados Unidos, talvez para receber informações deles em retorno”, responde, de maneira vaga e hipotética, o líder do WikiLeaks. “Gente do gabinete” de Michel Temer esteve na Embaixada, assim como “gente de dentro do PT”. “Acho que, dada a natureza da relação do Brasil com os Estados Unidos e considerando a intenção do Departamento de Estado americano em maximizar os interesses da Chevron e ExxonMobil, estão provendo aos EUA inteligência política interna sobre o que se passa politicamente no Brasil. Com essas informações, o Departamento de Estado pode fazer manobras em defesa dos interesses das grandes companhias americanas de petróleo. O que não necessariamente está alinhado com os interesses do Brasil”, afirma Julian Assange. Alerto o leitor para a palavra “acho”, que indica certa indecisão e sugere imprecisão. Dada a gravidade das insinuações, a entrevista deveria ser acompanhada de documentos comprobatórios do que se afirma ou, mesmo, insinua.
Dadas as respostas não conclusivas, Fernando Morais pressiona Julian Assange para retomar a história de Michel Temer como “informante” dos americanos. Mas o hacker, nem sempre cauteloso nas acusações, mostra alguma reserva: “Michel Temer teve reuniões privadas na Embaixada americana para passar a eles questões de inteligência política e discussões das dinâmicas políticas no Brasil. Isso não é pra dizer que ele é um espião pago pelo governo americano. Não existem evidências que ele seja espião pago em dinheiro. Estamos falando de algo mais, falando de construir uma boa relação de forma a ter trocas de informação de parte a parte. E apoio político”.
Os americanos estavam (e certamente estão) interessados em informações sobre as “jazidas do pré-sal na costa brasileira”, sublinha Julian Assange. “A Petrobrás teria 30% da receita do petróleo do pré-sal. Empresas interessadas nesse petróleo têm ido à Embaixada americana para reclamar dessas condições. E alguns partidos políticos no Brasil estavam dizendo que prefeririam que a Chevron e a ExxonMobil tivessem acesso mesmo sem a exclusividade dos 30% da Petrobrás.” As duas empresas e “outras grandes companhias americanas de petróleo”, assinala Julian Assange, “diriam: se a Petrobrás tem esses 30%, não compensa pra nós. Não vale a pena pra nós fazer a extração, nós poderíamos talvez nos envolver no financiamento. Mas a russa Gazprom e outras companhias chinesas de petróleo, como a China Oil, poderiam ser capazes de cobrir lances nas licitações, obrigando a Chevron e a Exxon a investir mais dinheiro, porque chineses e russos conseguem operar com menos lucro. Porque os chineses só querem o petróleo, eles não estão tão interessados no lucro”.
O Exército e a Petrobrás são as “instituições” nacionais mais forte, na interpretação de Julian Assange. “Creio que fragilizar a Petrobrás é uma forma de fortalecer os militares como centro de gravidade da organização do Estado.” Em tese, uma grande ideia; na prática, uma tolice. Os militares não são, ao menos no Brasil, o centro de gravidade do Estado e as instituições brasileiras são menos frágeis do que imagina o hacker. Na verdade, o Exército, as Forças Armadas, recolheu-se aos quartéis. Recentemente, quando sugeriram que os militares voltassem ao poder, o comandante do Exército deu declaração dizendo que não há interesse algum. Os militares saíram “escaldados” da experiência de 1964. O presidente Ernesto Geisel, que governou o país em parte da década de 1970, deu uma longa entrevista a pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, transformada em livro, na qual explicita os motivos de os militares, ao menos o grupo que comandava, terem planejado deixar o poder, daí terem investido na distensão e na Abertura. Mas tolices ditas por estrangeiros, ainda mais quando se trata do celebrado criador do WikiLeaks, tendem a render manchetes explosivas.
Ao afirmar que “a Petrobrás é uma aliada do PT” e que “a Petrobrás sente que seus interesses estão melhor servidos pelo PT”, Julian Assange prova que pouco ou nada sabe sobre o petrolão. E, mesmo não sabendo, não foi informado por Fernando Morais. Quem se servia da Petrobrás, segundo a Operação Lava Jato, eram o PT, o PMDB e o PP.
Urnas eletrônicas
Julian Assange diz que “o Brasil é o país latino-americano mais espionado”. Não são Venezuela e Cuba. “É que o Brasil tem uma economia maior.”
O Jornal Opção ouviu um professor da UnB, que revelou que as urnas eletrônicas do Brasil podem ser fraudadas (a reportagem de Marcos Nunes Carreiro pode ser lida no aqui). Fernando Morais afiança que a fraude é possível, “especialmente no caminho entre a urna e o sistema”. Julian Assange corrobora: “Urnas eletrônicas são perigosas. É verdade que é mais difícil fraudar uma urna eletrônica que uma urna normal, mas se fraudar uma urna normal, você afeta quantos votos? Talvez centenas. Agora, quando se tem acesso ao código responsável pela eleição, ou ao computador que faz os relatórios, pode-se mudar centenas de milhares ou até milhões de votos. E pode-se fazer isso de maneira quase indetectável! Esse é o ponto principal! Nunca se sabe de verdade o que faz uma máquina que seja complexa. Quase ninguém pode determinar se uma máquina complexa está de fato fazendo o que deveria fazer. E quando se trata de votos, da intensa busca pelo poder, com motivações muito fortes. Uma pessoa comum deveria ser capaz de entender que a máquina faz o que deveria fazer, mas uma pessoa comum nada pode entender dessa complexidade. Por isso as urnas eletrônicas são perigosas”.
Hillary Clinton

Hillary Clinton não é uma política de esquerda, aproxima-se mais do centro, mas, quando faz a defesa dos Estados Unidos, é tão imperialista quanto qualquer outro líder de proa do país. Mas há ilusões a respeito da democrata e Julian Assange oferece uma interpretação realista de suas ideias e ações. Ao falar com executivos do Goldman Sachs e de bancos brasileiros de investimento, longe da mídia, reaparece a representante do Império. “O que se vê é uma liberal imperialista em relação à expansão do império americano, com fome de cimentar acordos de aproximação e implantar mudanças ardilosas como o TTP [Tratado Transpacífico] e o TTIP [Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento]. Ela propõe realinhamentos estratégicos com o objetivo de fazer duas coisas: dar às multinacionais americanas o que elas querem e parar a China, fazer com que seja mais difícil os chineses crescerem.” Recentemente, o economista Paul Krugman escreveu um artigo (o meu comentário a respeito pode ser acessado no aqui, no “New York Times”, criticando suposta aliança de Donald Trump com a Rússia de Vladimir Putin. Na verdade, talvez por uma questão ideológica, o brilhante Nobel de Economia não quer perceber que a discussão é outra: a Rússia, mesmo sendo grande produtora de petróleo e gás, perdeu espaço na economia mundial. Assim, o grande competidor dos Estados Unidos, cada vez mais perigoso para a indústria americana — inclusive porque está requalificando seus produtos —, é a China. A interpretação de Hillary Clinton e Donald Trump, agentes do Império, não diferem em linhas gerais — exceto na retórica; mais radical quando se trata do republicano e mais moderada quando é exposta pela democrata.
Sintetizei e comentei alguns pontos da entrevista — deixando de enfatizar várias outros (a parte sobre os “fake demos”, o uso de robôs para intensificar propaganda política nas redes sociais e a censura ficaram de fora; “censurar pessoas está se tornando muito difícil”) — e por isso recomendo que os leitores leiam a entrevista completa. Vale a pena. Não resta a menor dúvida: é uma grande entrevista. Fernando Morais, de 70 anos, “furou” a imprensa consolidada. Não é nada fácil conversar com Julian Assange, e de maneira tão desabrida.