Como o sonho do Brasil alegre morreu e um projeto pessimista de país tomou seu lugar

13 setembro 2025 às 21h00

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‘A cabeça do brasileiro, vinte anos depois: o que mudou’ é um trabalho de fôlego do cientista político e sociólogo Alberto Carlos Almeida. O livro lançado em agosto de 2025 revisita a Pesquisa Social Brasileira (PESB), introduzida pela primeira edição de ‘Cabeça do brasileiro’ de 2002. A pesquisa é, na verdade, uma bateria de pesquisas que formam um perfil multifacetado da população.
Agora, com duas edições e a comparação das permanências e transformações no pensamento coletivo ao longo de duas décadas, a obra se torna deixa de ser retrato e se torna filme: um documentário sobre a essência do brasileiro sem paralelo. Os sete capítulos tratam das características e convicções da população sobre religiosidade, raça, cultura, gênero, política, economia e lei.
Ao longo dos últimos 20 anos, o Brasil mudou e permaneceu o mesmo em diversos aspectos, mas as 118 páginas que tratam do ethos brasileiro revelam como, de uma forma específica, o país atravessou um ponto de não-retorno. Lendo o capítulo “O brasileiro e a lei: como o jeitinho, a falta de confiança e o patrimonialismo nos condenam ao atraso”, escrito com Nelson Rojas de Carvalho, é impossível não ter a impressão de que, em algum momento nos últimos anos, um projeto de país morreu, e uma concepção diferente de nação tomou seu lugar.
A sociologia do jeitinho
Esse sonho clássico é aquele do “Brasil alegre”, defendido por sociólogos, economistas e artistas (Gilberto Freyre, Giannetti e Caetano Veloso são os citados), que foi popularizado a partir de 1970. É o Brasil moleque, criativo, que improvisa e integra o jeitinho ao dia-a-dia sem prejuízo a ninguém. “A inauguração de uma civilização dos trópicos capaz de combinar a lei germânica com o coração iorubá”, descrevem Alberto Carlos Almeida e Nelson Rojas de Carvalho.
A percepção “a lei é obra da elite e de legisladores que a instituíram para prejudicar a sociedade” originou a ideia de que não seguir a lei é um ato de resistência mais que legítimo, a depender da situação. Esse jeitinho brasileiro seria uma forma democrática, acessível a ricos e pobres, de se relacionar com o outro. É o reino do relativismo moral, sem ética objetiva, com o tratamento sempre dependendo da posição social (você sabe com quem está falando?), com prioridade para parentes e amigos. Os autores exemplificam:
- uma pessoa costuma dar boas gorjetas ao garçom do restaurante, para quando ela for de novo não precisar esperar na fila — 59% em 2002 e 55% em 2022-23 classificaram isso como jeitinho;
- uma pessoa que trabalha em um banco ajuda um conhecido que tem pressa a passar na frente da fila — 55% consideram isso jeitinho em 2002 e 51% depois de vinte anos;
- uma mãe que conhece um funcionário da escola passa na frente da fila quando vai matricular seu filho — 50% e 51% em 2002 e 2022-23, respectivamente;
- uma pessoa que conhece um médico passa na frente da fila do posto de saúde — 50% em ambas as pesquisas.
A PESB revelou que o número de pessoas que consideram certo “dar um jeitinho” tem caído — eram 50% em 2002 e 34% em 2022-2023. Os que consideram sempre errado foi de 18% para 29%.
Em 2002 que 77% dos brasileiros já tinha dado um jeitinho ou pedido para alguém beneficiá-los com o jeitinho brasileiro; em 2022-2023, foram 70%. A maior diferença está entre os mais jovens, que agora parecem encarar a prática com menos leniência. Dos 18 aos 24: em 2002, 85% afirmaram já ter praticado; em 2022-2023, eram 67%.
A redução revela que o jeitinho começou a ser enxergado como um aspecto negativo da brasilidade. É uma mudança gradual: a redução da proporção de brasileiros que utilizaram o expediente foi de 0,3% ao ano. Nesse ritmo, apenas em 2093 teremos menos da metade da população (49%) dando um jeitinho para resolver as dificuldades do cotidiano.
Inferno de desconfiança
Algo ocorreu para virar a atitude nacional, da postura do louvor à malandragem, para uma de desaprovação. Os autores não aludem a um momento ou acontecimento transformador — falam em mudança progressiva. A ideia de um Brasil otimista pode ter morrido, agonizando desde a década de 1970, porque não há jeitinho para escapar do atraso.
Os brasileiros percebem que cantar esse projeto feliz numa realidade dura soa como cinismo. O fruto daquele projeto de país não foi a compreensão entre os brasileiros na informalidade de suas relações, mas a desconfiança e o descrédito na coisa pública. O sonho acabou e o Brasil que emergiu foi aquele do déficit civilizatório, exposto pela violência, que nos aproxima da África central dos ditadores, e não dos países do norte.
A PESB mostra como a teoria do “Brasil otimista” não colou: partidos e governos sofrem 93% de desconfiança (em 2002 era 94%). A Justiça, imprensa e instituições também sofrem alta desconfiança em comparação com outros países. Os brasileiros desconfiam uns dos outros: com 87% de desconfiança entre as pessoas, o índice cresceu 9 pontos percentuais em 20 anos. Em todo o mundo, o Brasil está a frente apenas de oito países na escala de confiança, como Zimbábue, Indonésia e Albânia.
O que nos une é a desconfiança, e não a felicidade de nossa companhia. Com 3% da população global, o Brasil tem 20% dos homicídios. A ideia de que a coisa pública é uma ficção da elite para beneficiar a si própria provoca ainda certo niilismo egoísta. “Se eu não levar vantagem, outra pessoa vai levar no meu lugar”, “não posso mudar o sistema corrupto então também tenho de me corromper”, “se eu tentar agir corretamente, a maioria corrompida vai me expulsar”, etc.
Com a morte da teoria do Brasil otimista, começa a emergir uma visão profundamente pessimista, segundo a qual vivemos no inferno burocrático da desconfiança, onde só é possível conseguir serviços do Estado por meio da exceção e do compadrio. Na PESB, esse pensamento fica evidente pela intensificação do individualismo, do patrimonialismo, e da convicção de que cada um deve cuidar de si e não tem responsabilidade sobre o bem estar coletivo.
- Cada pessoa cuida do que é seu, e o governo cuida do que é público — 74% e 77% das pessoas concordavam com essa afirmação em 2002 e 2022;
- os eleito para cargos públicos devem usar o cargo em benefício próprio — 83% discordava em 2002 e 79% discordava vinte anos depois;
- se o governo não cuida do que é público, então não faz sentido que as pessoas cuidem — 81% de discordância em 2002 e 77% discorda em 2022;
- não se deve usar as ruas e calçadas para vender produtos — 60% e 64% de discordância em 2002 e 2022;
- quem recebe bolsa do governo para estudar no estrangeiro deve voltar para trabalhar no Brasil — 29% discordava em 2002, e 41% achavam que o recurso público pode ser utilizado para benefício particular em 2022.
Como concatenar a diminuição do apreço ao jeitinho com o aumento de outra solução informal (o patrimonialismo individualista)? Como o relativismo moral se tornou individualismo imoral? A citação de Hunter S. Thompson em Medo e Delírio em Las Vegas parece apropriada: “Numa sociedade onde todos são culpados, o único crime é ser pego. Num mundo de ladrões, o único pecado definitivo é a estupidez.”
Inveja setentrional?
Os dados revelam que o ideário liberal não foi diretamente importado ao Brasil nos moldes alemães ou ingleses. A ideia liberal de Estado é aquela segundo a qual os indivíduos têm deveres e direitos claramente definidos, e onde o Estado seria construção pública pela qual todos somos responsáveis. “Ainda que a lei seja malsã, o americano submete-se a ela sem dificuldade, não somente por ser obra da maioria mas ainda por ser obra sua; considera-a do ponto de vista de um contrato do qual é uma das partes” escreve Tocqueville, em Democracia na América.
O ideário brasileiro é acidental, provocado por anos de exposição à violência e às notícias de corrupção de nossos líderes, e não propriamente um projeto concebido por pensadores. Talvez este seja mais um sinal de nossos tempos: a visão de mundo daqueles que estudam — filósofos, autores e artistas — perdeu o poder de se tornar projeto político e estético. Há cinismo e desconfiança sobre suas atividades também. O que o Brasil pensa sobre o Brasil, o que ele almeja se tornar, isso agora é cantado e transformado em decisão pela pressão difusa nas redes sociais.
E o que exatamente o povo (agora imbuído dessa democrática ferramenta para se manifestar) tem exigido para um Brasil do futuro? Hoje, o povo pede mais lei e ordem — não segundo o ideário liberal, mas “lei e ordem tropical”, punitivista e informal. As pessoas passaram a apoiar menos protestos contra o governo, querem punições mais duras, dizem confiar mais na polícia, e a demandar punições ilegais.
Para autores de estupro:
- Em 2022-23, 27% das pessoas pedia pena de morte, 38% prisão perpétua, 18% até 30 anos de cadeia
- Em 2020, 20% pedia pena de morte, 29% prisão perpétua e 21% pedia até 30 anos de cadeia.
Para autores de homicídios:
- Em 2022-2023, 20% pedia pena de morte, 36% prisão perpétua, 29% até 30 anos de cadeia
- Em 2002: 17%, 30% e 27%, respectivamente.