Biógrafo do homem que venceu Hitler, o novo líder britânico admite que Churchill tinha solidariedade, uma solidariedade irrestrita pelas pessoas comuns de todo o mundo?

A Inglaterra, com o apoio da União Soviética e dos Estados Unidos — 25 mil pracinhas brasileiros batalharam na Itália, centenas perderam a vida —, foi decisiva para derrotar o nazismo alemão de Adolf Hitler. Entretanto, se ganhou a guerra, perdeu o mundo para… os Estados Unidos. Não à toa o historiador britânico A. J. P. Taylor escreveu que  a Segunda Guerra Mundial foi “a guerra da sucessão britânica”.

Por que a Europa não se submeteu ao poderio de Hitler e dos alemães? A palavra “não” deve ser retirada ou nuançada. Na verdade, ante o poder e a brutalidade do nazismo, a Europa “deitou-se”. Quem não se acomodou de verdade foram os ingleses. Por que, se havia britânicos que queriam seguir a Europa e também se “deitar”, a Inglaterra ficou em pé? Porque um homem, pela força das armas e sobretudo da linguagem, incentivou-a a fugir da cama do medo. Fala-se, é claro, de Winston Leonard Spencer-Churchill (1874-1965 — viveu 90 anos — fumando charutos e bebendo), o primeiro-ministro.

Há várias biografias de Churchill e, certamente, as melhores são a de Roy Jenkins e, pela amplitude, a de Martin Gilbert. Mas não há nenhuma tão deliciosa — e se trata, por assim dizer, de uma hagiografia, só que do balacobaco — quanto “O Fator Churchill — Como um Homem Fez História” (Planeta, 461 páginas, tradução de Renato Marques). De quem? Ora, do indefectível Boris Johnson (Alexander Boris de Pfeffel Johnson, nascido, nos Estados Unidos, como a mãe de Churchill), atual primeiro-ministro da Inglaterra e ex-aluno do prestigioso Eton College.

Boris Johnson, primeiro-ministro da Inglaterra

Depois de gastar páginas sugerindo que Deus era auxiliar de Churchill, para cometer um exagero — ao estilo do político louro esculhambado —, Boris Johnson sugere que alguém disse: “Os ingleses perdem todas as batalhas, exceto a última”. Pois, depois de ter vencido a guerra, Winston perdeu a eleição para o trabalhista Clement Attlee.

Boris Johnson tenta entender: “À medida que o país chegava a seis longos e debilitantes anos de guerra, o povo precisava de uma nova linguagem, uma nova visão para a Inglaterra do pós-guerra — e isso um exausto Churchill não foi capaz de encontrar”. Dito de outra forma, agora por mim: Winston talvez fosse visto como o homem da destruição, um demolidor, mas os ingleses queriam, depois de 1945, um político da construção.

Antes da eleição de 1945, Churchill falou para Lorde Moran, seu médico: “Tenho a forte sensação de que o meu trabalho está terminado. Não tenho mensagem nenhuma. Eu tinha uma mensagem. Agora digo apenas: ‘Combatam estes malditos socialistas. Não acredito neste admirável mundo novo’”. A “democracia pacífica”, no dizer de Boris Johnson, “era uma conquista” de Winston. E, também, de soviéticos, americanos, poloneses, brasileiros e franceses.

O perspicaz John Peck, secretário particular do primeiro-ministro, notou que, em Berlim, durante o desfile da vitória, ao passar próximo de soldados britânicos, Churchill “recebeu um aplauso marcadamente menos clamoroso do que o sr. Attlee”.

No fim de julho de 1945, enquanto Stálin e Harry Truman continuavam no poder, Winston estava no chão. “Os trabalhistas haviam vencido por uma colossal margem de 146 assentos a mais do que todos os partidos. Churchill e os conservadores tinham sido defenestrados.” O mundo “ficou perplexo” — menos, é claro, os ingleses.

Boris Johnson sustenta que, anos antes, bem antes, Churchill havia construído “os alicerces do Estado de bem-estar social”. “Mas foi Attlee quem conseguiu reivindicar essas ideias [as reformas sociais] e esse programa de ação.” O slogan dos trabalhistas havia funcionado: “Viva Churchill; vote nos trabalhistas”.

Inconformado, Boris Johnson sugere: “Há um sentido em que sua derrota foi um triunfo. Ele tinha lutado pela democracia britânica, e ali estava: a rejeição de um grande herói e líder de guerra não por meio da violência, mas por milhões de pequenos e discretos riscos de lápis”. A mulher de Churchill, Clementine, disse: “Talvez seja um mal que venha para bem, uma bênção disfarçada”. Winston não apreciou: “No momento, ela parece muito bem disfarçada”. Não se comemora derrota tanto na política quanto no esporte — sabia Churchill e talvez não queira saber Boris Johnson —, nem mesmo com palavras sábias, como as de Clementine e do atual primeiro-ministro.

Um fã de Churchill, da estirpe de Boris Johnson, disse que os eleitores ingleses eram uns “ingratos”. Winston discordou, quiçá a contragosto: “Eu não diria isso. Eles passaram por maus bocados”. Quem gosta mesmo de sangue, suor e lágrimas. É provável que nem as carpideiras tenham apreço por isso… As palavras do político revelam, de acordo com Boris Johnson, “grandeza de alma”. Era, no dizer do biógrafo, “um gigante moral”.

Winston Churchill experimenta uma submetralhadora “Tommy” (Thompson), no sul da Inglaterra, três meses antes do Dia D | Foto: Reprodução

Mais tarde, Churchill voltou a ser primeiro-ministro. Na sua última reunião como todo-poderoso aconselhou: “Jamais se afastem dos norte-americanos”. Há grandiloquência na frase? Talvez não. O mais provável é a percepção, aguda e lamentosa, de que a Inglaterra era agora uma potência subordinada, de segunda ordem — atrás do país de Abraham Lincoln e, sim, de Donald Trump (o “pato” que o Império americano inventou, em tempos difíceis, para enfrentar um país, digamos, “comuno-capitalista”, a China. Por que a China não cairá tão fácil quanto a União Soviética? Porque usa o capitalismo com instrumento para manter o comunismo).

Mesmo não tendo a grandeza de Churchill, Clement Attlee soube ser generoso: “Churchill tinha solidariedade, uma solidariedade irrestrita pelas pessoas comuns de todo o mundo”. Oxalá Boris Johnson tenha ao menos um pouco da grandeza de Attlee e de Churchill no trato das pessoas comuns da Inglaterra e de indivíduos de outros países. Sublinhe-se: a citação está no livro do louro conservador.

Não é preciso acatar o pensamento dos que divergem de nós, mas é preciso conviver, de maneira tolerante, com os que não concordam com o que nós pensamos. Portanto, tomara que, aceitando que grandeza não ocorre uma única vez, Boris Johnson, ao defender o espaço dos ingleses, não esqueça que o mundo é de todos. A Inglaterra é uma ilha, mas não está isolada e, portanto, precisa ser acolhedora, como a Alemanha da grande Angela Merkel.