Bob Woodward sugere que burocracia governa os EUA para além do que decide Donald Trump

08 setembro 2018 às 11h58

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“Medo — Trump na Casa Branca” revela que auxiliares mais preparados e autônomos criaram conspiração para segurar a Loucolândia do presidente

Se alguém disser que o verdadeiro nome de Bob Woodward é Sr. Washington, não duvide. Poucos repórteres conhecem tão bem a política da corte dos Estados Unidos quanto o jornalista do “Washington Post”. Na década de 1970, quando era quase foca, cobriu o Caso Watergate. Teve a sorte, derivada de sua percepção de que o trato com as fontes é um pacto com o demônio — julgar a moralidade das fontes é deixar de ser repórter? De certo modo, é —, de contar com um informante privilegiado, Mark Felt, vice-diretor do FBI. Revoltado por não ter sido promovido a diretor da Polícia Federal americana, decidiu aliar-se ao jornal da publisher Katharine Graham e do editor-chefe Ben Bradlee para derrubar o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon (que, sim, era muito superior, intelectualmente, ao presidente Donald Trump, mas, em termos de moralidade, são almas gêmeas). A rigor, Mark Felt “não” dava informações; atuava como uma espécie de “apontador” de caminhos e “corregedor” de investigações equivocadas. Noutras palavras, colocava o “amador” do “Post” no caminho certo — o rastro do dinheiro e do poder, que são irmãos siameses.
Pressionado pela imprensa, que seguiu os passos do “Post” — hoje controlado por Jeff Bezos, o criador da Amazon —, Richard Nixon renunciou e assumiu o vice, Gerald Ford. Por incrível que pareça, o que a história de Watergate e outras falcatruas escondem, Richard Nixon era um presidente de amplos méritos. Entendia como poucos de política internacional. Mas avaliou errado que o poder, o do Executivo, não tem limites. A imprensa agiu como uma espécie de dique aos excessos do presidente e as reportagens do “Post” e do “New York Times”, para citar apenas dois jornais, levaram-no à renúncia, em 1974. Se não o fizesse, teria sofrido impeachment, possivelmente. Bob Woodward e seu principal parceiro, Carl Bernstein, saíram consagrados, escreveram livros — um deles, “Todos os Homens do Presidente — O Caso Watergate e a Investigação Jornalística Mais Famosa da História” (Três Estrelas, 424 páginas, tradução de Denise Bottmann), foi levado ao cinema com Robert Redford e Dustin Hoffman.

Bob Woodward conseguiu guardar o nome de sua fonte basilar por vários anos, até o próprio Mark Felt se revelar. Aí o repórter publicou um livro contando a história por trás da história.
Aos 75 anos, quando as pessoas começam a sossegar o facho, aposentando-se, Bob Woodward não para de publicar reportagens no “Post” — sua casa há mais de 40 anos — e livros de qualidade. Repórter rigoroso, ouve suas fontes cuidadosamente, checa o que dizem e publica as informações de maneira criteriosa. Conecta e burila o material e disto resulta que a condensação de dados de variadas fontes não pertence a nenhuma delas — o que, por vezes, gera conflito. Perde-se, por assim dizer, a sensação de “pertencimento”. Mas, em geral, os desmentidos não desmentem o que publica.
Autor de densos livros de oportunidade, mas sem os oportunismos típicos de tais publicações, Bob Woodward debruça-se agora sobre as ações do republicano de cabelo de pica-pau no livro “Medo — Trump na Casa Branca” (Simon & Schuster, 448 páginas), que será lançado, nos Estados Unidos, na terça-feira, 11 (no Brasil sairá, em novembro, pela Editora Todavia). O retrato que se tem de Donald Trump é assustador, sobretudo porque revela que se trata de um presidente incompetente para a coisa pública — que é diversa da coisa privada — e que seus principais auxiliares trabalham para controlá-lo. Os Estados Unidos têm uma tecnoburocracia altamente preparada, formada em Harvard, Columbia, Yale, Stanford, Princeton, MIT, que governa o país quase que independentemente das veleidades do presidente — seja democrata ou republicano. Ronald Reagan teve em Richard Pipes, professor de Harvard e especialista na história da União Soviética, um de seus principais conselheiros.

O repórter Philip Rucker, do “Post”, obteve uma cópia do livro de Bob Woodward e publicou a resenha “Trump é enganado por aliados para não deixar EUA em risco, relata livro de Woodward” (Luiz Roberto Mendes Gonçalves traduziu o texto para a “Folha de S. Paulo”).
Sabendo o quão atoleimado Trump é, se falasse ao procurador especial Robert Mueller, possivelmente cometeria perjúrio. Para prepará-lo, John Dowd iniciou uma sessão de treinamento, de maneira provocativa, o que deixou o presidente irritado: “Isto é uma farsa maldita. Eu realmente não quero depor”. O inquérito sobre a participação da Rússia na eleição americana incomoda o republicano e chega a, por vezes, travar o governo. A paranoia é cada vez mais frequente. “Todo mundo está querendo me pegar”, vocifera, em tom lamentoso, o político boquirroto. Auxiliares estão assustados com seu comportamento idiossincrático e errático.
Inicialmente, Trump não quis falar com Bob Woodward, depois, quando o manuscrito estava concluído, ligou para expor sua versão dos fatos. Agora, está propondo mudar a legislação americana, uma das mais abertas do mundo a respeito da liberdade de expressão, com o objetivo de censurar o livro do repórter e os que virão pela frente — a respeito, por exemplo, de seus escândalos sexuais.
Autonomia da burocracia
Uma das descobertas de Bob Woodward diz respeito à relativa autonomia dos auxiliares de Trump. Eles trabalham, às vezes de maneira sorrateira, para evitar prejuízos comerciais, morais e militares aos Estados Unidos e ao próprio Trump. O repórter menciona “um golpe de Estado administrativo” e um “colapso nervoso” do Executivo. Assessores graduados esmeram-se, numa conspiração justa — diria Norberto Bobbio —, em “retirar documentos oficiais da mesa do presidente para que ele” não os veja e não os assine.

“A equipe de segurança nacional de Trump foi abalada por sua falta de curiosidade e conhecimento sobre assuntos mundiais e seu desprezo pelas perspectivas de líderes militares da inteligência”, relata Philip Rucker. “Em uma reunião do Conselho de Segurança Nacional em 19 de janeiro, Trump desconsiderou a importância da enorme presença militar dos EUA na península coreana, incluindo uma operação de inteligência especial que permite que os Estados Unidos detectem um lançamento de míssil norte-coreano em sete segundos (contra 15 minutos do Alasca).” O presidente questionou os gastos, e o secretário da Defesa, Jim Mattis, exasperado, explicou-lhe: “Estamos fazendo isso para impedir a Terceira Guerra Mundial”. Em termos de entendimento de política internacional, Jim Mattis avalia que Trump tem a percepção de “um aluno da quinta ou sexta série”. Não chega a ser um “Débil”, mas aproxima-se de um “Lóide” — aquela dupla do filme.
O chefe de gabinete da Casa Branca, John Kelly, não esconde que Trump é um presidente “confuso”. “Ele é um idiota. É inútil tentar convencê-lo de qualquer coisa. Ele está descarrilado. Estamos em Loucolândia. Não sei por que alguns de nós estão aqui. É o pior emprego que já tive”, acrescentou Kelly, numa reunião com um grupo.
Nos momentos em que fica só, em seu quarto — uma “oficina do diabo”, segundo Reince Priebus, ex-chefe de gabinete —, sem o controle de auxiliares mais bem preparados, Trump divulga os tuítes mais malucos da paróquia.

O secretário da Justiça, Jeff Sessions, é chamado de “traidor” por Trump. Porque ele se recusa “a supervisionar a investigação” do caso Rússia. “Esse cara é um retardado. É um sulista burro. Não podia nem ser um advogado pessoal no interior do Alabama”, afirma o presidente sobre o auxiliar.
Os auxiliares, como Mattis, têm de corrigir Trump sobre várias questões, como os ataques falsos ao recém-falecido senador republicano John McCain. O presidente disse que “o ex-piloto da Marinha foi um covarde ao sair de um campo de prisioneiros de guerra no Vietnã mais cedo, porque seu pai era um militar graduado, e deixar os outros para trás”. Mattis cortou-o: “Não, presidente, acho que o senhor entendeu ao contrário”. “McCain havia na verdade recusado a libertação prematura e foi brutalmente torturado durante cinco anos na ‘Hanoi Hilton’, o centro de tortura usado pelos vietnamitas.” Trump, sem ficar corado, recuou: “Ah, ok”.
Em abril de 2017, quando o presidente da Síria, Bashar al Assad, “lançou um ataque químico contra civis, Trump chamou Mattis e disse que queria assassinar o ditador. ‘Vamos matá-lo, porra! Vamos lá. Vamos matar toda essa gente de merda’, disse Trump”. Para não contrariá-lo, Mattis disse que sua ordem seria cumprida. A um assessor, disse: “Não vamos fazer nada disso. Vamos ser mais comedidos”. “A equipe de segurança nacional desenvolveu opções para o ataque aéreo mais convencional que Trump afinal ordenou.”
Gary Cohn, relata Bob Woodward, “roubou uma carta da mesa de Trump’ que o presidente pretendia assinar para retirar formalmente os EUA de um acordo comercial com a Coreia do Sul. Cohn disse a um interlocutor que tinha retirado a carta para proteger a segurança nacional e que Trump não percebeu sua falta. Cohn fez um jogo parecido para impedir que Trump retirasse os EUA do Tratado de Livre Comércio das Américas do Norte (Nafta), algo que o presidente ameaçava havia tempo”.