Anthony Powel e Anthony Burgess perceberam seu talento. Patrick French recolhe também as principais críticas literárias feitas pelo escritor numa revista da Inglaterra

V. S. Naipaul, escritor nascido em Trinidad, no Caribe, mas que se formou como escritor na Inglaterra, publicou sua obra-prima, “Uma Casa Para o Sr. Biswas”, com menos de 30 anos

Prêmio Nobel de Literatura de 2001, V. S. Naipaul (1932-2018) sabia que seria escritor desde a adolescência. Mas, antes de se consolidar como mestre literário, chegou a passar fome em Londres (“estou literalmente morrendo de fome”, escreveu numa carta para Patrícia Ann Hale, mais tarde, sua mulher), teve depressão, esteve à porta do suicídio e era um amante de sexo com prostitutas (uma chegou a reconhecê-lo como “o homem da televisão”). Tentou ser publicitário, mas não conseguiu. O que o salvou foi o trabalho que Henry Swanzy arranjou-lhe na BBC, na qual apresentou o programa “Vozes do Caribe”. “[O emprego] Me salvou a vida, pois estava desesperado.” Enquanto escrevia prosa e relatos (a rigor, também prosa literária), como “Miguel Street” (Companhia das Letras, 224 páginas, tradução de Rubens Fi­guei­redo) e “O Mas­sagista Místico” (Com­panhia das Letras, 224 páginas, tradução de Alexandre Hubner), resenhava livros para publicações britânicas. Sua obra, desde o início, foi muito bem recebida pela crítica. A notável editora Diana Athill percebeu, de cara, que se tratava de um autor de múltiplos talentos.

“El Mundo Es Así — La Bio­grafía Autorizada Del Premio Nobel V. S. Naipaul” (Duomo Ediciones, 796 páginas, tradução de Ramón de España), de Patrick French, sumariza as primeiras críticas à obra inicial do escritor que, nascido em Trinidad e Tobago, era de ascendência indiana e escreveu num inglês tão esmerado quanto o de Ian McEwan, Julian Barnes e Martin Amis.

Miguel Street, um dos primeiros livros de V. S. Naipaul

“O Massagista Místico”, escrito a pedido de Diana Athill (que trabalhava para André Deutsch), é uma história sobre camponeses indianos radicados em Trinidad. Numa carta para sua mãe, Droapatie Naipaul, em 1957, anunciou: “As resenhas têm sido francamente positivas por se tratar do primeiro romance de um escritor totalmente desconhecido”. E prometeu enviar dinheiro. Copiava as resenhas, ou parte delas, e enviava para a mãe.

O crítico do “Sunday Ex­press” escreveu: “O Massagista Místico” é “a sátira mais aguda e divertida que li em anos”. O resenhista do “Sunday Times” não economizou aplausos: Viddia era “um jovem romancista de Trinidad, sofisticado e inventivo, que se coloca, de imediato, na primeira fila da crescente escola literária das Índias Ocidentais”. O escritor transcreveu o texto na íntegra e enviou o comentário do “Daily Tele­graph” para sua mãe. O analista disse: “V. S. Naipaul é um escritor que consegue mesclar a criatividade de Oxford com a desordem de sua terra sem malograr em nenhuma das duas. É uma espécie de Gwyn Thomas [escritor galês] das Índias Ocidentais: mordaz, rabelaisiano, capaz de abordar as experiências humanas como se fossem ouro puro”. A mãe de Naipaul informou que 200 exemplares haviam sido vendidos em Trinidad.

Patrick French pontua que, apesar do entusiasmo, houve certo paternalismo nas críticas. Os britânicos estavam interessados na literatura de autores das colônias, “em especial a das Índias Oci­dentais”, admitiu Diana Athill. Na década de 1950, afirmou a editora, “era mais fácil que resenhasse a o­bra de um escritor negro, ou que consideravam negro, que a de um branco jovem. Nessa época, a crítica influenciava muito os leitores”.

Na revista “New Sta­tes­man”, An­thony Quinton analisou “O Massagista Místico” como “uma nova mostra da ficção das Índias Ocidentais, intuitiva e divertida, que resulta tão agradável, confusa e inconsequente como os indianos de Trinidad” descritos pelo livro. “O estilo era tão ácido quanto uma manga.” Notava-se que Naipaul usava a audácia da literatura britânica, que o havia “formado”, para “colorir” a história a respeito dos indianos caribenhos. Mais tarde, Naipaul disse que Quinton não entendeu “a originalidade de sua prosa, sua clareza e seu humor”.

Nas Índias Ocidentais, a reação foi mais sutil, sugere Patrick French. Frank Collymore, da revista “Bim”, percebeu que, ao satirizar sua própria comunidade, mantém um “distanciamento irônico”. O “Trinidad Chronicle”, “mais entusiasmado”, definiu o livro como “a sátira mais aguda escrita até agora sobre a vida em Trinidad”.

John Bayley, no “The Spectator”, sugeriu que o livro era “uma pequena delícia”. Peter Green, no “Te­le­graph”, escreveu que Naipaul olhava seu povo “por cima dos ombros”. “Essa é a atitude típica da esquerda: o indiano não pode escrever com humor; o humor é para as culturas mais importantes e mais seguras de si mesmas”, ironizou Naipaul.

“Uma Casa Para o Sr. Biswas” é considerado pelo crítico literário James Wood, professor de Harvard, como um dos romances mais importantes da literatura universal

Indivíduos sem poder

“Suffage of Elvira” (“O Sufrágio de Elvira”), publicado em 1958, também obteve críticas positivas. A jornalista e escritora inglesa Penelope Mortimer, no “Sunday Ttimes”, recomendou-o como “um livro magnífico e de uma beleza contida. Extrema­mente divertido e acertadamente cruel”. Os diálogos são “ricos, brilhantes e curiosos”. A resenhista o aponta como o “novo Damon Runyon”.

Na revista “Punch”, o escritor britânico Anthony Powell — às vezes chamado de “o Proust da Inglaterra” — co­mentou que Naipaul mostrava “uma elegância e um sentido de estilo dos mais inusuais, ainda que seus personagens precisem de um pouco mais de profundidade”.

Patrick French diz que a declaração “mais astuta” foi da lavra do escritor Kingsley Amis. O pai de Martin Amis “apontou que a narrativa de Naipaul ‘se centrava” em conflitos sem importância entre “vizinhos, cunhados ou rivais.

Este tipo de humor, levado adiante com a mais conspícua tranquilidade estilística, é complemente original”.

Em “Vozes do Caribe”, Arthur Calder-Marshall avaliava a obra como “uma sátira das mais eficazes”.

A editora André Deutsch Li­mi­ted publicou “Miguel Street” em 1959. O “Times” observou que Nai­paul era um escritor “original”. Anthony Burgess, autor do romance “Laranja Mecânica”, sublinhou, no “Sunday Time”, que o livro era “suficientemente bom ao deixar como ridícula a maioria dos profissionais caribenhos”. “News Chronicle” anteviu que Naipaul ainda escreveria literatura de melhor qualidade.

“Miguel Street”, frisa Patrick French, tem a influência de “Lazarillo de Tormes”, que Naipaul estudou e traduziu para o inglês. “O tema que elegeu foram os indivíduos sem poder”, registra o biógrafo.

Arthur Dayton, na “West Indian Gazette”, frisou que os diálogos eram de primeira linha e elogiou a mesclagem entre tragédia e farsa. Mas ressaltou a “falta de confiança” ao tratar “as implicações sociológicas do material escolhido”. Patrick French assinala que aí pode ter se iniciado as críticas ideológicas que seriam repetidas doravante, notadamente no Caribe. A ironia e o humor corrosivo de Naipaul começam a ser vistos como desapreço pelos povos, sobretudo os do Caribe e mais tarde da África e da Ásia — quando escreveu que indianos defecavam até nas ruas, foi criticadíssimo (“até parece que inventei o termo defecar e o ato de defecar”).

“Observer” concedeu-lhe uma resenha entusiástica. O sucesso chegara, mas ele queria que fosse ainda mais rápido. “Pareço estar destinado a percorrer meu caminho muito lentamente.” Nem tão lento assim, na verdade. Em 1959, Naipaul tinha apenas 27 anos. “Recebeu o prêmio John Llewellyn Rhys por ‘O Massagista Místico’ e o Somerset Maugham por ‘Miguel Street’”, informa Patrick French. Mas quase não ganhava dinheiro, na quantidade que queria. Diana Athill lamentava que a editora não pudesse “pagar mais” a um escritor que admirava e a impressionava.

Ao contar as histórias dos indianos do Caribe, com suas virtudes e vicissitudes — explorando de maneira nova um mundo que havia sido explorado em geral de maneira populista e condescendente —, Naipaul começa a se firmar no “centro”, na Europa, notadamente na Inglaterra. Mas começa a provocar irritação na “periferia”, que sentia ser apresentada de maneira “ridícula”, “sem nuances” (na verdade, o ridículo advinha da apresentação das nuances, das ambiguidades). Era o realismo cru do escritor, que não dourava a pílula, que chocava. Os (supostamente) descritos por Naipaul viam seus livros como uma espécie de espelho e não gostavam, às vezes, do que viam. “Defeitos” ou características ampliados são, não raro, chocantes.

Ao contrário do que comumente se diz, o distanciamento com o qual Naipaul narra as histórias não resulta em falta de empatia pelos indivíduos. Há empatia, daí a descrição precisa, até apaixonada (o que não quer dizer lacrimosa). Mas empatia não significa falsificação a favor. O escritor era um dos adversários da contrafação ideológica ou populista. Literatura é para mostrar o que é — a feiura ou o belo; não é para embelezar ou lisonjear. Literatura não é o retrato exato da realidade. É (a) realidade imaginada e, até, inventada. De­ta­lhista, era crítico de Anthony Trol­lo­pe e Patrick Leigh Fer­mor, que, na sua o­pinião, co­me­tiam erros ao es­creverem sobre o Caribe.

O sucesso na Inglaterra não resulta em vitórias nos Es­ta­dos Unidos. Lá era editado inicialmente pela Ballan­tine. Para a edição americana de “O Massagista Místico”, lord David Cecil, crítico de Ox­for­d, escreveu uma introdução: “Estamos ante um livro delicioso que brilha e borbulha de vida e bom humor. O sr. Naipaul é um humorista ao qual lhe agrada esse animal chamado ho­mem. Ainda que isto não signifique que tenha opinião elevada sobre ele”.

Francis Wyndham, espécie de “padrinho” social e literário, dizia que o jovem Naipaul era “atraente, muito divertido, dinâmico, maravilhosamente sutil, absolutamente vivo. Mais tarde, ganhou força a reputação de irascível, mas nos anos 50 o era muito menos”.

Pós-colonial

“Uma Casa Para o Sr. Biswas” (Companhia das Letras, 528 páginas, tradução de Paulo Henriques Britto) é a obra-prima de Naipaul. Iniciada em 1958, demorou três anos para terminá-la (os dedos ficaram doloridos, teve de colocar esparadrapo quando foi datilografá-lo). O escritor tinha 29 anos, quando o livro foi publicado, em 1961. O romance é uma “versão imaginada da vida de seu pai, o escritor e jornalista Seepersad Naipaul. “Fixo cada momento com uma imagem”, disse sobre a composição da história. Patrick French afirma que o escritor “permitiu que” o romance “se apoderasse das personagens”. Do “estupor literário” — expressão criada pelo crítico V. S. Pritchett — surge os grandes livros, como os de Naipaul. “O escritor é devorado pela escritura”, postula o biógrafo. “Quando acabei, senti como se tivesse crescido: notava que havia me convertido em escritor”, revelou Naipaul. Secular e nada religioso, Naipaul tinha suas superstições. “Evitava”, por exemplo, “comentar em voz alta os títulos de seus livros”.

“O sr. Biswas é um fracassado, mas também é um herói picaresco”, pontua Patrick French. “O livro não pede desculpas por ser como é. (…) Consegue mostrar um mundo por completo. O humor é mais amável do que o dos três livros anteriores, e também há mais compaixão pelas personagens, ainda que não se aplique a todas. Há uma mescla de ira e comicidade na obra.”
A crítica da época (e a posterior) aplaudiu “Uma Casa Para o Sr. Biswas”. “O crítico Harish Trivedi, que tinha a vantagem de saber hindi e inglês, opinou que ‘seria difícil encontrar em toda a literatura hindi uma descrição mais autêntica e detalhada de uma extensa família indiana’”, recolhe Patrick French.

Incentivada por um editor de Nova York, Diana Athill quis “editar” o romance, o mais caudaloso de Naipaul. O autor não aceitou e escreveu-lhe: “Trabalhei muito neste livro, e de maneira judiciosa. Se o livro tem algum valor, seguirá adiante. Tem de me apoiar nisto”. A editora recuou e o livro foi publicado sem cortes. “Seis meses depois de seu lançamento, o livro havia vendido a pouco destacável cifra de 3200 exemplares da edição de capa dura.”

O agente de Nai­paul sugeriu que en­tre­gasse o livro para Blanche Knopf, mulher de Alfred Knopf — ambos editores de prestígio nos Estados Uni­dos. Blanche não se interessou pelo romance. “A literatura pós-colonial ainda estava por inventar-se como gênero ou como negócio proveitoso, portanto o trabalho de” Nai­paul “seguia sendo uma anomalia”, assinala Patrick French, que considera “Uma Ca­sa Para o Sr. Bis­was” como “um texto pós-colonial fundamental”.

Parte da fa­mília de Naipaul ficou furiosa com o li­vro, que teria me­nos­prezado os indianos de Tri­ni­dad. Um de seus integrantes chegou a ameaçar processar a editora se não retirasse o romance de circulação. O livro seria uma “traição” à família.

A imprensa inglesa elogiou o ro­mance de maneira fervorosa. O “Observer” publicou uma resenha, sob o título de “Obra mestra caribenha”, de Colin MacInnes: “‘Uma Casa Para o Sr. Biswas’ tem o ritmo natural de uma obra magistral: relaxado, mas alerta em cada página”.

O escritor Angus Wilson incluiu Naipaul no “pequeno grupo dos indiscutidos romancistas de primeira classe”. Dan Jacobson, da “New Statesman”, elogiou: “Uma Casa Para o Sr. Biswas” era “o romance mais interessante publicado em Londres em 1961”.

Francis Wyndham, no “London Magazine”, percebeu a força crítica do romance: “É uma das il
ustrações mais claras e sutis, jamais mostradas, sobre os efeitos do colonialismo. É extraordinariamente amplo, mas sem sacrificar a finura técnica do miniaturista”.

O excelente poeta Derek Walcott ficou conhecido como uma espécie de “inimigo” visceral de Naipaul. Mas saudou “Uma Casa Para o Sr. Biswas” como um romance poderoso. Sua resenha, de página inteira, saiu no “Guardian” de Trinidad, com o título “Um novo e grande ro­mance sobre as Índias Ocidentais”. Naipaul “havia se consagrado como ‘um dos mais maduros escritores das Índias Ocidentais”. O crítico notava a divisão entre o “autor compassivo” e o “homem arrogante”. “À primeira vista, Naipaul parece haver se distanciado de todos os problemas de nossa sociedade, em particular no que se refere à sua raça. Mas seus livros quase lhe contradizem”. Idiossincrasias à parte, o argumento é pertinente, aqui e ali. Porque a literatura de Naipaul é mesmo mais compreensiva dos povos que descreve, indianos ou negros, do que suas opiniões publicadas em jornais e, por vezes, até em ensaios. Mas o problema chave é que sua escrita sem concessões não agradava e continua não agradando o populismo político e literário — sempre na moda, poderoso e castrador.

Edward Brathwaite corroborou os demais críticos: “Os romances de Vidia Naipaul têm conseguido alterar toda a hierarquia de nossos valores literários e instaurar novas categorias de forma e ordem na prosa das Índias Ocidentais”.

James Wood, crítico literário da revista “New Yorker” e, agora, do “New York Times” e professor de crítica literária de Harvard, escreveu sobre Naipaul em dois livros publicados no Brasil: “Como Funciona a Ficção” (Editora Sesi, 228 páginas, tradução de Denise Bottmann), e “A Coisa Mais Próxima da Vida” (Editora Sesi, 125 páginas, tradução de Célia Euvaldo). Aos 55 anos, tem um olho clínico para a leitura da obra do escritor — que, se visto pelo viés puramente ideológico, raramente pode ser compreendido de maneira ampla.

Em “Como Funciona a Ficção”, James Wood anota: “Um mestre moderno do heroico-cômico é V. S. Naipaul, em ‘Uma Casa Para o Sr. Biswas’: ‘Quando ele chegou em casa, preparou uma dose de Pó Estomacal MacLean, bebeu-a, despiu-se, deitou-se e começou a ler Epicteto’. As maiúsculas cômico-patéticas da marca do antiácido e a presença de Epicteto — nem Pope teria feito melhor”. Adiante, ao ressaltar que Naipaul trata Biswas de “sr. Biswas” — a obra contém uma “súmula do estilo indireto livre — , James Wood sugere que “Biswas gosta de pensar que é ‘sr.’, mas é só isso o que ele vai ser na vida, junto com o resto do mundo”.

“Uma Casa Para o Sr. Biswas” é “excelente”, propõe James Wood, e inventivo. Naipaul, com uma “personagem mutável”, não começa o romance pelo começo, e sim pelo meio, então volta atrás e só então avança, para em seguida voltar atrás de novo. Joseph Conrad, Muriel Spark e Naipaul são mestres neste modo de contar histórias. “Usa-se a voz passiva justamente porque Biswas é um homem fraco, comicamente gentil, que pensa estar se afirmando, enquanto na verdade está sendo ludibriado”, frisa o crítico. Naipaul tem plena consciência e controle do que está narrando. Não há nada de “escrita automática”.

Anthony Powell e Anthony Burgess, dois importantes escritores ingleses, foram dos primeiros a reconhecerem a importância literária de V. S. Naipaul


O resenhista

Se a literatura não lhe dava dinheiro na quantidade suficiente, outras atividades começaram a encher os bolsos de Naipaul. Escreveu para “Vogue” e “Punch”. “Anotava escrupulosamente seus ganhos e gastos num livro-caixa.”

Anthony Powell leu “O Massagista Místico” sob “pressão” de Francis Wyndham. Autor de “Um Baile Para a Música do Tempo”, em 12 volumes, o escritor chamava Naipaul de “Viddy” e sugeriu que a “New Statesman” o experimentasse como crítico literário.

A primeira resenha teria sido “um desastre”, segundo Naipaul. Mes­mo assim, “New Statesman” o pagou, como resenhista, de 1957 a 1961. Seus colegas de crítica eram V. S. Pritchett, Paul Johnson, Charles Causley, Gavin Marwell e Leonard Woolf.

Como crítico, Naipaul era agudo e, por vezes, implacável. “Seu estilo favorito consistia em dizer maldades de maneira amena”, pontua Patrick French. “Durante quatro anos, consagrou uma semana de cada mês a resenhar livros para ‘New Statesman’. Em 1964, escreveu que tanta resenha o havia levado a perder o apetite pela literatura”, aponta Patrick French. “Descobri que cada vez lia pior, que não tinha nem tempo nem a inclinação necessários para ler os livros que realmente desejava ler”, admitiu o escritor. No comentário de “Euphues”, romance elisabetano, começa assim: “Este livro pode ser facilmente incluído entre os que Graham Greene define como ‘rações de ferro’¹ [traduzo literalmente] para o homem ilustrado. Analisou as memórias náuticas de Harold Nicolson, “Viagem a Java”.

“‘O Último Encantamento’, de Neville Dawes, era ‘um livro sufocante e deprimente sobre a desgraça especialmente do negro na Jamaica’. Vidia considerava que a raça em si mesma não era tema suficiente para um romance”. “Nenhum escritor pode produzir nada de peso com este tema, já que o fato de ser negro, como o de ser branco, não basta. Mas não param de aparecer escritores negros que se centram em sua negritude porque não tem nada mais a dizer”, explicou Naipaul. O panfleto pode até ser arte, por vezes, mas não é, decerto, literatura, ao menos não “alta” literatura.

“A Hora do Coquetel”, apesar de “divertido, não era a melhor” prosa de P. G. Wodehouse. O livro “Cara a Cara”, do indiano Ved Mehta, agradou-lhe, pois era narrado com “paixão, modéstia e uma boa dose de humor”.

“Papá Se Ha Ido de Caza”, de Penelope Mortimer, mereceu uma avaliação irônica: “A sra. Mortimer é uma escritora tão feminina que me pergunto se seu romance pode ser recomendado às mulheres”.

Depois de elogiar George Lam­ming, como “um dos melhores pro­sa­dores de sua geração”, Naipaul revisou, mais tarde, sua opinião, tornando-a cáustica: “George fez um pouco de literatura negra e isso foi tudo. A literatura negra é algo que pode ser descrito da seguinte maneira: são livros que deveriam vir com um reclinatório, para lê-los piedosamente ajoelhado. Cada livro com reclinatório. Exercício espiritual de primeira ordem ao alcance de to­dos”. Lamming, no livro “Os Pra­ze­res do Exílio”, alfinetou que as o­bras de Naipaul são “sátiras castradas”.

Edna O’Brien escreveu uma obra cheia de frescor e lirismo, diz Naipaul

Naipaul é visto como “misógino”, mas, como crítico, tratava os homens com mais rigor. Apreciou o primeiro romance da escritora irlandesa Edna O’Brien (uma das paixões literárias de Philip Roth): “A srta. Edna O’Brien pode chegar a escrever livros mais profundos que este, mas duvido que escreva outro como ‘Las Campesinas’, obra cheia de frescor e lirismo”. Reconheceu a importância da escritora Attia Hosain, sobretudo do romance “El Sol Sobre uma Columna Rota”, que contava a história “de uma família muçulmana em Oudh antes da divisão da Índia”. Ele “situava a autora ‘entre os mais notáveis novelistas indianos que escrevem em inglês”.

Patrick French sugere que sua resenha mais entusiasmada é a respeito do romance “Memento Mori” (Companhia das Letras, 256 páginas, tradução de Beth Vieira), da escritora escocesa Muriel Spark (uma das paixões de Paulo Francis). O romance “é uma sucinta e cruel comédia sobre a velhice”, sintetiza o biógrafo. “Há, neste romance, o brilhantismo digno de [Evelyn] Waugh. Muriel Spark escreveu um livro notável, surpreendente e original”, enalteceu Naipaul.

Na crítica ao livro “Histórias da ‘New Yorker’: 1950-1960”, que contém relatos de J. D. Salinger, John Cheever e John Updike, reaparece o Naipaul que apreciava chocar pelo excesso. A obra seria “aterradora”. “Não porque a maioria destas histórias americanas são indistinguíveis umas das outras por seu estilo, sensibilidade ou tom, e sim porque, lidas em bloco, parecem haver surgido de uma civilização tão triste que deve ser julgada como um fracasso.” Incom­preensível? Provável. Excessivo, para não dizer burlesco.

Muriel Spark escreveu, em “Memento Mori”, “uma sucinta e cruel comédia sobre a velhice”

Em 1961, sugerindo que “os romances ruins ficaram piores”, deixou de escrever resenhas para “New Statesman”. Mesmo sem escrever críticas, continuou lendo literatura. “Gosto de Aksakoff quando fala do Volga enfurecido ou do Volga congelado. Aksakoff e Gógol me fazem experimentar a imensidão russa, igual os ‘Esboços do Desportista’, de Turguêniev. E o importante é o clima nas irmãs Brontë e em Dickens! Seria mais fácil falar do que não gosto: Jane Austen, Hardy, Henry James, Conrad, e quase todos os romancistas franceses contemporâneos”, escreveu, no “Times”, em 1961.

Leu e releu “Filhos e Amantes” (Portugália Editora, 534 páginas, tradução de Cabral do Nascimento), de D. H. Lawrence, mesmerizado: “É um livro magnífico: os maiores escritores só podem escrever um único livro de semelhante magnitude”. Uma injustiça com “Mulheres Apaixonadas” (Record, 557 páginas, tradução de Renato Aguiar) e “O Amante de Lady Chatterlley” (Companhia das Letras, 554 páginas, tradução de Sergio Flaksman e introdução, magnífica, de Doris Lessing). Pode-se dizer que Naipaul escreveu apenas um grande romance? Claro que não.

Rações de ferro

Esclarecimento da tradutora Fedra Rodríguez, de Santa Catarina: “Durante as grandes guerras na Europa, os soldados recebiam porções de comida para guardar na mochila quando partiam para as campanhas militares…era uma espécie de sopa grossa, um pedaço de carne salgada e biscoitos, isso era chamado de ‘ración de hierro’… Aliás, isso também foi usado na Espanha durante a Guerra Civil Espanhola… Lembro de ouvir essas histórias do meu avô, que serviu na guerra da Espanha”.

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