Diatribes de Guillermo Cabrera Infante, em “Mea Cuba”, contra o escritor Alejo Carpentier

09 novembro 2022 às 12h11

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Texto publicado em 28 de janeiro de 2010
Quem quiser entender a literatura de James Joyce deve ler a biografia “James Joyce”, de Richard Ellmann, e, talvez, “Homem Comum Enfim”, de Anthony Burgess. Para entender o romance “Três Tristes Tigres” (José Olympio, 517 páginas, tradução de Luís Carlos Cabral), de Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), pelo menos para rir com mais proveito de algumas histórias, deve-se ler os artigos e ensaios de “Mea Cuba” (Companhia das Letras, 518 páginas, tradução de Josely Vianna Baptista) — um guia não-guia de acesso aos “segredos” cubanos —, do mesmo autor.
“Três Tristes Tigres” (TTT) é um mergulho na cultura cubana, e não só. Além de remexer na música, no cinema, Cabrera Infante parodia escritores de quem gosta e de quem não gosta, como pessoa, mas aprecia a obra, apesar de ironizar o estilo às vezes pomposo de um e outro. Algumas de suas “vítimas” são Lezama Lima (que avalia como o maior poeta cubano), Alejo Carpentier (talentoso e embromador) e o contista Lino Novás Calvo (supostamente grande influência no estilo poroso de Cabrera Infante). Lendo “Mea Cuba”, inteligente e divertido, aprende-se mais sobre Cuba e seus autores, pelos quais, mesmo quando irônico, o autor era apaixonado. Cabrera Infante escreve a sério — divertindo-se e nos divertindo, à farta.

Lino Novás não gostou de ter seu estilo, seus nomes (dos personagens) e sua prosa parodiados em “Três Tristes Tigres”. Cabrera Infante diz que a paródia foi um elogio e, a julgar pelo que escreve em “Mea Cuba”, tem razão. “La Luna Nona”, volume de contos, “é uma obra-prima do gênero, e quando um dia for escrita a história definitiva do conto na América se verá que Lino Novás está entre seus mestres: Horacio Quiroga, Borges, Felisberto Hernández, Juan Rulfo, Virgilio Piñera, Adolfo Bioy Casares. (…) Lino Novás foi o primeiro a saber adaptar as técnicas narrativas americanas a uma escritura verdadeiramente cubana — e além do mais, habanera. Em seus contos ouve-se falar de Havana pela primeira vez em alta-fidelidade. Sobretudo a Havana dos subúrbios”. Cabrera Infante faz o mesmo em “TTT”, mas não exatamente sobre os subúrbios. “Lino Novás Calvo se transformou em meu escritor cubano favorito, e até a chegada de William Faulkner e de Borges, em meu escritor favorito entre todos.”
“Carpentier, um cubano de calibre” é um dos textos mais hilariantes de “Mea Cuba”. Cabrera Infante descobriu que, apesar de dizer-se cubano e de ter ascendência “quase nobre”, Alejo Carpentier nasceu em Lausanne, na Suíça, e seu prenome era “Alexis”. O poeta Heberto Padilla, numa curta biografia de Carpentier, citada fartamente pelo autor de “TTT”, diz que o pai do “nobre” fugiu quando ele era criança, deixando-o na pobreza, ao lado da mãe. Para sobreviver, Carpentier vendia leite em Alquízar. Portanto, nada de mãe e avó (“aluna” de César Franck) pianistas.
Por ter morado muitos anos na França, onde morreu, em 1980, Carpentier tinha o hábito, forçado, de pronunciar as palavras com dois “rr” — “Parris”. Um dia, numa emissora de televisão, “um caro ciclorama veio abaixo e se abriu em dois”. Assustado, Carpentier disse: “Caralho”. O diretor de cinema Rogelio París contou a Cabrera Infante: “O homenzinho não disse ‘carralho’. Perdeu seu ‘r’ francês ao perder a linha”.

Sempre vaidoso, Carpentier vendeu seu romance “Los Pasos Perdidos” para Tyrone Power e, para provar, mostrou uma fotografia ao lado do ator. Cabrera Infante sugere que, como os dois estavam do mesmo tamanho, a foto pode ter sido produto de montagem. Carpentier era bem mais alto do que Power.
Novidadeiro, Carpentier disse a Cabrera e outros amigos que havia lido “Zazie no Metrô”, de Raymond Queneau. O livro seria muito “divertido”. Depois, admitiu que havia lido fragmentos na “Nouvelle Revue Française”. Quando Cabrera Infante citou o romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov, o culto Carpentier disse: “Não conheço”.
Antes de servir a Fidel Castro, o tirano dos tiranos, Carpentier serviu a Pérez Jiménez, ditador da Venezuela, e no Haiti, também sob ditadura.
Escreveram que Carpentier criou o “realismo mágico”. “Não sabem (ou se esquecem) que esta etiqueta foi fabricada por um alemão chamado Franz Roh em 1924, quando Carpentier acabava de sair do secundário em Havana e queria ser arquiteto. (…) O que Carpentier criou (com um pouco de ajuda de seu amigo [Pierre] Mabile) foi outra etiqueta, ‘o real maravilhoso’. (…) Nem o realismo mágico nem o real maravilhoso pertencem a Carpentier. Não são invenção sua, mas de Roh e de Mabile. Carpentier sempre foi um bom adaptador.”

Ressentido, Carpentier não perdoava seus adversários literários. Quando José Alvarez Baragaño morreu, o escritor foi ao enterro e disse: “Um a menos!”. “Mas ao ver Padilla entrar na capela exclamou: ‘Ainda me resta outro!’”.
Padilla equivocou-se ao dizer que Fidel Castro ficaria irritado com o que chamava de romancezinho. “‘O Século das Luzes’ foi exaltado por Fidel Castro e Raúl Castro declarou-o leitura obrigatória da oficialidade do exército. ‘Nenhum dos dois o leu’, garantia [Carlos] Franqui. ‘Se tivessem lido teriam percebido que era profundamente contrarrevolucionário’. (…)… nunca li ‘O Século das Luzes’. Afastou-me a enumeração exaustiva que me levou a parodiá-lo. Mas sei que Alejo foi acossado por minha paródia.”
Ambicioso, Carpentier deu palestras na Suécia, em 1963, e, ao voltar para a França, contou que seria o próximo Nobel de Literatura. O editor Roger Caillois disse a Cabrera Infante: “Nunca o darão a ele. Nunca. A pior coisa que Alejo fez foi ir à Suécia. Em Estocolmo essas visitas de candidato são consideradas uma politicagem intolerável”. Estava certo: Carpentier tinha estofo para ganhar o Nobel, mas não o ganhou — talvez por ter contado vantagem antes da hora.

Cômico, no seu barroquismo, Carpentier, na versão do político e intelectual Carlos Rafael Rodríguez, chamava “os barbudos [os comunistas] de ‘barbados’”.
Ao dizer que “A Música em Cuba” é “um livro de fato notável”, por conta de seus méritos de pesquisador, ainda que com alguns erros, ao tratar da música popular, Cabrera Infante está, por certo, depreciando a obra em geral de Carpentier. Porque Carpentier obviamente queria ser reconhecido como romancista, como prosador, não como pesquisador de música.
Como homem, Carpentier era, aparentemente, um desastre, talvez um pulha. Tinha o hábito de “rastejar” à presença de Fidel, a quem serviu como um dócil “perro”. Quando Mario Vargas Llosa ganhou o prêmio venezuelano de romance Rómulo Gallegos, cerca de 25 mil dólares, Carpentier apareceu, com um recado de Fidel, sugerindo que o escritor peruano doasse o dinheiro à guerrilha. Depois, o governo cubano repassaria mil dólares por mês ao autor de “Travessuras da Menina Má” (que conta histórias da esquerda). Llosa não aceitou a proposta que, segundo Cabrera Infante, o transformaria “num agente cubano”. “Aí começaram suas dificuldades com o governo cubano.” Virou inimigo da esquerda. Até hoje é atacado, não por sua literatura em si, e sim por não ser de esquerda. Llosa converteu-se ao liberalismo, mas a um tipo de liberalismo bem seu, ou seja, pensa pela própria cabeça e, portanto, diz o que quer. Não integra nenhum movimento de direita. É um livre-atirador que, não sendo de esquerda, é atacado até por críticos literários fanáticos. Há exceções, é claro. Franco Moretti é de esquerda, mas, ao organizar um cartapácio de crítica literária, convocou Llosa para escrevero ensaio introdutório. Sinal de que considera Llosa um peso-pesado da crítica literária. A esquerda patropi certamente não vai perdoar Moretti.

Como garoto de recados de Fidel, Carpentier não era muito eficiente. “Uma vez ele trazia pessoalmente uma caixa de charutos para Sartre e o filósofo, que fumava, negou-se a recebê-lo: começava a cair em tanta desgraça quanto o regime que representava. Noutra ocasião, Sartre e sua carnal Simone [de Beauvoir] tropeçaram nele na rue Bonaparte, e Alejo teve que dar meia-volta, andar depressa e até correr, perseguido pelo duo que gritava em uníssono: ‘Voyou! Vieux con! Dégueulasse!’”
Uma das histórias mais hilariantes de Carpentier, no relato de Cabrera Infante: “Fausto Canel, o diretor de cinema cubano que na época [o autor não diz qual] morava em Paris e mantinha relações com os diplomatas castristas, conta que um dia caminhava pela rue de La Paix em direção à embaixada cubana quando viu Alejo Carpentier descer de um táxi. Em seguida, dirigiu-se à entrada do metrô e sumiu. Canel ia avisá-lo, como se ele não soubesse disso, de que ele não tinha que pegar o metrô, que a embaixada ficava ali, virando-se a esquina, quando o viu emergir, agitado, pela outra entrada, caminhar alguns poucos passos e dirigir-se decidido à embaixada! Era óbvio que Alejo tinha entrado no metrô e tinha saído Carpentier, o funcionário. Por que estas pequenas manobras? Estratégia de um diplomata socialista que não queria que seus colegas soubessem que vinha para a embaixada de táxi e que, castrista humilde, andava de metrô como eles. Simulações de um homem que em toda a sua vida foi um simulador”. No que não é muito diferente de outros escritores (e mesmo de pessoas comuns).
Ao conversar com o adido cultural cubano Juan David, em Paris, Carpentier deu mostra de que entendeu bem como funciona a máquina de propaganda da esquerda: “Comemierdas! Como se eu não soubesse há muito tempo que o ‘escrritor’ que tem rixas com a ‘esquerrda’ está ‘perrdido’”. Llosa, se não fosse seu imenso talento, estaria perdido. Gabriel García Márquez, apesar de excelente escritor, não tem coragem de criticar o regime da dinastia Castro. Porque sabe que brigar com a esquerda é o mesmo que ser enviado para o limbo. O mesmo ocorreu com Pablo Neruda, que ganhou o Nobel, e Jorge Amado, que chegou a ser cotado para o Nobel, pelo menos na propaganda comunista. Neruda e Amado foram stalinistas ferrenhos.

Ao analisar “El Acoso”, para o jornal inglês “The Independent”, Cabrera Infante notou suas qualidades: “… eu disse que o livro breve ‘era uma das ‘novellas’ mais perfeitas em espanhol, idioma em que tinham sido escritas ‘novellas’ perfeitas desde o Renascimento”.
“Los Pasos Perdidos” também ganhou elogios de Cabrera Infante, o que prova a liberdade de seu julgamento literário: “… obra-prima que transforma o tempo perdido em espaço recuperado e em que o tempo real é uma viagem às origens aborígenes”. No comentário, Cabrera Infante sugere que Carpentier plagiou “La Voie Royale”, de André Malraux. Mas “a cópia era muito melhor do que o original. (…) O cubano era mais artista; mas Carpentier era mesmo cubano?” Em nenhum momento, apesar das críticas ao homem, ao seu oportunismo político, e à eventual pomposidade de sua prosa, Cabrera Infante diz que a literatura de Carpentier é de segunda. Pelo contrário, sempre arrola Lezama Lima, Virgilio Piñera e Carpentier como os maiores escritores cubanos de todos os tempos — excluindo-se, modestamente. Elogia Lino Novás, mas certamente reconhece, sem o dizê-lo explicitamente, que não há como inclui-lo entre os mais importantes. Lino Novás é canônico, sim, mas para Cabrera Infante — assim como João de Minas foi lido com certo prazer por Guimarães Rosa, Bernardo Élis e Antônio José de Moura, mas não tem importância literária decisiva. Descobriu um caminho, mas não soube aprofundá-lo e perdeu espaço para Rosa e Élis.

Se Cabrera Infante, apesar das ironias e pequenas maldades, aprecia parte da obra de Carpentier, este não tinha nenhum respeito pelo colega. Por certo, sabia que o autor de “TTT” era um grande escritor, porque não era nenhum néscio, mas, para agradar Fidel e Raúl, que odiavam Cabrera Infante, decidiu atacá-lo, ou melhor, ignorá-lo. Uma das técnicas dos críticos comunistas é fingir que um determinado autor não tem importância, com o objetivo de deixá-lo num anonimato forjado. Os comunas são mestres na criação de “exílios culturais”. Alex Sizman, quando estudante de Cambridge, assistiu uma palestra de Carpentier, em 1971, e, para se contrapor ao ufanismo do cubano, perguntou “sobre as dificuldades do povo cubano para comer”. Carpentier falsificou: “É falso! Todo mundo come bem em Cuba”. A mulher do escritor, Lilia, acrescentou: “Comem tão bem quanto nós”. Cabrera Infante ironiza: “É preciso lembrar que os dois Carpentier, Lilia e Alejo, eram diplomatas e viviam em Paris?”
Sizman quis saber o que Carpentier achara do romance “Três Tristes Tigres”, de 1967. O escritor vociferou: “Não li esse ‘livrro’”. “Mas, continuou Alex, há nele uma paródia de seu estilo e até de seus títulos. A versão paródica se intitula ‘El ocaso’, que é uma paródia de ‘El Acoso’. Carpentier insistiu: ‘Repito-lhe que não li este ‘livrro’ de que você fala. (…) Esse ‘senhorr’ [Cabrera Infante] não é cubano!” Cabrera Infante, que era considerado inimigo de Fidel, quase o Trotski do Stálin cubano, não informa se Carpentier ganhou um aumento salarial depois do servicinho sujo.

Por falar em Stálin, ao visitar a embaixada cubana em Paris, Cabrera Infante descobriu que a recepcionista, certamente indicada por Fidel, era Caridad Mercader, a mãe de Ramón Mercader, o assassino de Trotski. “‘Cachita’, como [o embaixador cubano] Harold [Gramatges] a chamava, ‘é mais stalinista que Stálin’. Ambos os magnicidas [Caridad e Ramón] eram, com efeito, cubanos de nascimento. ‘Cachita’, como seu nome indica, era de Santiago de Cuba — de onde é também Harold Gramatges —, dessa província de Oriente onde nasceram [Fulgencio] Batista e Fidel Castro.” (Caridad quase sempre é apontada como espanhola.)
Uma biografia recente de Warren Beatty diz que o ator se deitou com 12.775 mulheres (entende-se, agora, porque conseguiu ser apenas simulacro de ator), superando a marca de mais de 10 mil mulheres de Georges Simenon, autor de romances policiais (não sei como teve tempo para escrever tanto e tão bem). Irônico, Guillermo Cabrera Infante diz que ninguém aplaude o escritor cubano Reinaldo Arenas, autor do extraordinário e espantoso livro de memórias “Antes Que Anoiteça”, quando admite que se deitou com mais de 5 mil homens.
Cabrera Infante escreve com extrema perspicácia sobre “Antes Que Anoiteça”. Início do texto: “Três paixões regeram a vida e a morte de Reinaldo Arenas: a literatura — não como jogo, mas como fogo que consome —, o sexo passivo e a política ativa. Das três, a paixão dominante era, evidentemente, o sexo. Não só em sua vida, mas também na obra. Foi o cronista de um país regido não por Fidel Castro, já impotente, mas pelo sexo”.
“Mea Cuba”, longe de apenas conter ataques a Fidel e seus acólitos, como Alejo Carpentier, é uma grande e amorosa celebração de Cuba.