Apolonio de Carvalho, o brasileiro que lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa¹

20 janeiro 2016 às 12h24

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O militante participou da Intentona Comunista, brigou na Espanha contra os fascistas de Franco e lutou na França contra os nazistas de Hitler
A história não é feita só de coerências. Com certeza, são as incoerências que levam a vida adiante. Optar pela coerência, na maioria das vezes, é escolher a derrota. O comunista (ou ex) Apolonio de Carvalho prefere “viver”, assinala o crítico literário Antonio Candido, “rigorosamente conforme as suas convicções”.
Apolonio não é tão conhecido quanto Luís Carlos Prestes. Não tem, digamos, o peso histórico do Cavaleiro da Esperança. Nem seu glamour. Mas tem algo melhor: a capacidade de autocrítica, o que quase sempre faltou ao marido da alemã Olga Benario. Prestes era uma espécie de toupeira da esquerda. Ainda que um homem admirável por sua fidelidade às ideias que julgava o caminho do futuro.
As memórias de Apolonio — “Vale a Pena Sonhar” (Editora Rocco, 257 páginas) — mostram um homem de esquerda que sabe reconhecer em que e como errou. Com uma virtude: ao contrário de tantos intelectuais que passaram pela esquerda, não se tornou cínico e avesso às causas coletivas. A rigor, Apolonio não deixou a esquerda. Abandonou, tão-somente, o seu discurso prato-quente que, ao interpretar tudo, pouco entende.
Miopia política
Não basta, porém, ter capacidade de autocrítica e coerência para se tornar, historicamente, um indivíduo relevante para os feitos coletivos. Qual, então, a importância do velho comunista que morreu em 2005, aos 93 anos? Primeiro, nos últimos anos pelo menos, Apolonio deu provas de que enxergou o século 20 de olhos bem abertos, sem a máscara da disciplina partidária dos comunistas. Depois, Apolonio lutou contra os fascistas de Franco, na Espanha republicana, e os nazistas de Hitler, na França. A análise que extrai desses acontecimentos é muito interessante, provando a sua liberdade de pensamento.
Honesto, Apolonio não nega seu stalinismo. Tampouco esconde sua miopia política. Quem já foi, ou é, comunista sabe que a disciplina partidária é férrea. Segue-se, a ferro e fogo, a linha justa. Só se enxerga aquilo que o partido diz que é a verdade, o caminho da fé.
As memórias de Apolonio avaliam mais fatos do que pessoas. Falta, por exemplo, um perfil de Luís Carlos Prestes, figura emblemática do movimento comunista. Não temos uma biografia decente — sem o vício dos hagiógrafos (como Jorge Amado) — do Cavaleiro da Esperança². Para o bem ou para o mal, ele permanece intocável (tanto que é homenageado até por Siqueira Campos, coronel político do Tocantins).
Distância da sociedade
Em 1930, Apolonio entra para a Escola Militar do Realengo. Seu projeto era estudar medicina. Como era pobre, sobrou-lhe a profissão de militar. Tornou-se leitor compulsivo. Seu mestre, então, não era Marx ou Lênin. E, sim, José Ingenieros, autor de “El Hombre Mediocre”.
Dessa época, ele conta uma história interessante do capitão (Henrique Teixeira) Lott, mais tarde adversário derrotado de Jânio Quadros. Em 1930, as forças emergentes derrubaram a República Velha, na qual mandavam São Paulo e Minas Gerais. Vargas chegou ao poder com o apoio de Minas, que havia rompido o acordo com São Paulo. Aliás, São Paulo rompera o pacto do café-com-leite ao lançar a candidatura de um “paulista”, Júlio Prestes, à Presidência da República — não cedendo a vez a Minas.
Legalista, Lott não aderiu à Revolução e ainda segurou os cadetes na escola. “Eu estou com a lei e a disciplina”, explicou, acreditando que podia “segurar” a história.
Em 1935, explodiu a Intentona Comunista, liderada pela Aliança Nacional Libertadora, uma coalizão social-democrática que incluía comunistas como Prestes e Astrogildo Pereira.
Em geral os comunistas atribuem o fracasso da ANL à brutal repressão do governo de Getúlio Vargas. Apolonio avalia de modo diverso: “O brusco abandono da participação popular direta e o consequente estímulo a ações insurrecionais imediatas estavam na origem da derrota”.
A ANL acabou por se tornar um movimento elitista e, por isso, foi desarticulada com facilidade. Em tese, defendia o povo — mas sem o apoio do povo. Um dado interessante: a ANL tinha mais de 100 mil filiados e, segundo Apolonio, meio milhão de simpatizantes “em apenas três meses de existência legal”. A grosso modo, pode-se dizer que faltou paciência histórica aos seus líderes, notadamente os comunistas.
A ANL poderia ter comandado um movimento democrático-burguês, contrapondo-se ao pensamento (e prática) autoritário de Vargas. A via armada talvez não fosse a alternativa mais inteligente.
Na cadeia, Apolonio se torna comunista de carteirinha. Lá ele conhece Hercolino Cascardo, Roberto Sisson, Francisco Mangabeira, Agildo Barata, Sócrates da Silva, Agliberto de Azevedo, Rodolfo Ghioldi (argentino), Olga Benario, o Barão de Itararé e Lourenço Moreira Lima (secretário da Coluna Prestes e autor de um clássico sobre o assunto).
Sobre Moreira Lima, o Bacharel, Apolonio conta uma história curiosa. Com uma carta dele a Prestes nas mãos, um delegado perguntou-lhe:
— Essa carta é sua?
— É toda minha.
O delegado disse ao escrivão:
— Anote aí: o Sr. Lourenço Moreira Lima confirma que a carta é toda sua.
Destemido, Lourenço exigiu do escrivão:
— E acrescente: ademais, continua inteiramente convicto de tudo o que disse na carta.
Em junho 1937, pouco antes do Estado Novo, Apolonio sai da cadeia.
Trabalhando numa revista, certo dia o Barão de Itararé (Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, conhecido também como Apporelly) avisa Apolonio: “Você tem um encontro com alguém do PC”. No encontro, Otávio Malta fala da guerra na Espanha: “Os espanhóis precisam urgentemente da ajuda de militares, da sua experiência profissional, e por isso o partido tem pensado nos muitos oficiais e praças-de-pré expulsos após o novembro de 35”.
Noutras palavras, o Partido Comunista escolhera Apolonio para lutar na Espanha, ao lado dos republicanos.
O Partido é tudo
Noivo de Corina, Apolonio (na foto acima, com Renèe) tentou visitá-la em Pelotas (RS), mas o partido não permitiu. As razões do partido estavam acima dos motivos sentimentais. “Começo a perceber quão desigual é o peso dos sentimentos nas relações entre militantes e partido.” Com sua visão algo messiânica, a Espanha precisava ser salva. Era a prioridade. O amor, bem, o amor pode esperar.
Como a grana do partido comunista era curta, o governador da Bahia, Juraci Magalhães, complementa o dinheiro para Apolonio viajar à Europa.
Em Paris, com a cara e a coragem, Apolonio procura o comunista brasileiro Tovar Bicudo.
“Querem que eu parta [para a Espanha] dentro de uma semana, mas estou demasiado ansioso para tanto. Tenho contra meus intentos, porém, os sapatos — nos pés o único e gasto par, não me resta dinheiro para outro. Os cicerones dão-me 100 francos. Corro à sapataria mais próxima, e adquiro um por 40. Agora estou inteiro para a travessia.
“Vou devolver ao grupo o troco. Uma dirigente do PC cubano, linda e envolvente, dá-me dois beijos e diz:
— Você tinha de estar numa vitrine.
— Só por isso? — pergunto.
— Não — responde com um galanteio: — você também é muito bonito.”
Ao chegar à Espanha, Apolonio percebeu que os pobres eram bem pobres. “Os primeiros governos republicanos”— assinala Apolonio —“quase nada fizeram para mudar o cenário de prostíbulos fétidos, tifo e malária”.
Essa é uma interpretação posterior do comunista brasileiro. Na época, ele achou tudo maravilhoso. “Trago uma explosiva carga de otimismo: para mim as forças populares já superaram a crise mais grave, e não tenho ciência de que é irreversível a cisão das esquerdas. (…) Já encontro um novo exército, aguerrido e nacionalmente estruturado; as diversas frentes de batalha estão guarnecidas; a República continua recebendo oficial e profusamente armas da URSS, oficiosa e parcamente da França, e simbolicamente do México.”
O que mais impressiona Apolonio “é a intensa participação civil, com destaque para as mulheres em todos os serviços de retaguarda”.
[Na foto: Clarice Lispector, Maury Gurgel Valente, Apolonio de Carvalho, Samuel Wainer e Daniel, cunhado do resistente, em Paris, em 1946]
Ao lado do brasileiro Davi Capistrano, Apolonio chora, em praça pública, ao ouvir o hino da Internacional.
Começa-se, também, a descortinar-se um lado mais sombrio. Apolonio percebe, logo, “as debilidades da defesa antiaérea republicana, impotente diante das bombas com que os abutres metálicos castigam a cidade, visando antes de tudo à população civil. Os vazios do aparelho de segurança deixam campo livre para que a quinta-coluna inimiga aja com desenvoltura”.
Se na retaguarda predominava o caos, nas frentes de batalha era um pouco pior. “Fissuras na unidade da tropa; a difícil coordenação das diversas armas; a intolerância política em todos os grupos e organizações; as discriminações ideológicas.”
Militar de formação, Apolonio integra-se rapidamente à bateria Euskádi. Enquanto ao exército do general Franco não faltavam armas eficientes, “à artilharia republicana constantemente faltava material. Dispúnhamos apenas de fuzis ordinários e pistolas — nunca tivemos metralhadoras”.
Apolonio conta uma história que prova as divergências inconciliáveis entre os vários grupos de esquerda. Durante um combate, um comandante decide saber por que as tropas anarquistas não lhe deram apoio. “Pega o fone de campanha para falar com o chefe da 28ª Divisão, um anarquista de escol, e o que ouve é constrangedor.
— O senhor não tinha — pergunta-lhe — ordens precisas de passar com seus homens ao assalto?
— Naturalmente.
— E por que não fez isso?
— Simplesmente — desfere a bofetada o anarquista — porque no me dio la gana…
Abandono socialista
Em setembro de 1938, com as tropas de Franco ganhando a guerra, o ministro das Relações Exteriores, Álvarez del Vayo, “anunciou na Liga das Nações a desmobilização dos 45 mil brigadistas internacionais e dos milhares de estrangeiros integrados ao exército popular — regressariam imediatamente a seus países. Frente ao exército franquista, fortalecido por tropas italianas e pela máquina de guerra alemã, o governo republicano pretendia mostrar ao mundo que doravante contaria apenas com os combatentes espanhóis”.
Resultado: em 1939, o generalíssimo Franco se tornava o senhor da Espanha.
Raro na esquerda brasileira, Apolonio não propõe uma interpretação triunfalista e condescendente da derrota espanhola.
“Em maio de 37, teve início a efetiva derrocada da República — além do avanço militar fascista, que agora ocupava a metade oeste do território nacional, a esquerda dividiu-se e lançou-se a um confronto antropofágico. Algumas de suas facções — os socialistas de centro e de direita, o PC e os partidos liberais — passaram a ter domínio exclusivo do poder central e do exército em formação. O novo governo — do socialista de centro Negri — reprimiu duramente o POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), isolou os socialistas de esquerda e pôs fora da lei a grande massa de anarquistas. Rompida a Frente Popular, desnorteados os trabalhadores, abrem-se de par em par as portas para a derrota”, sintetiza, de forma brilhante, as razões do fracasso dos republicanos espanhóis.
A rigor, a Espanha funcionou como uma espécie de laboratório para comunistas e fascistas. Os comunistas, apêndices de Stálin, acreditavam, na maioria das vezes, que os principais inimigos eram anarquistas e trotskistas. Então, Stálin e Trotski travavam uma luta de morte no cenário internacional. Com menos força, Trotski foi assassinado no México, em 1940, por Ramón Mercader, um agente de Stálin.
Em abril de 1938, a União Soviética parou de enviar armas e especialistas à República espanhola.
Os nazistas testaram na Espanha a capacidade de reação da Inglaterra e da França. Previsivelmente, esses países se omitiram. Com isso, o apetite de Hitler cresceu. Ele sabia que Inglaterra e França o temiam, e temiam, igualmente, Stálin. A ameaça vermelha talvez fosse pior, acreditava-se. “O negócio não é com a gente”, sugeriam franceses e ingleses, julgando-se protegidos.
Brasileiros na Espanha
Na guerra romântica da Espanha, participaram vários brasileiros. O primeiro a chegar à Espanha foi o tenente Alberto Bomílcar Besouchet, integrante do POUM de Andrés Nin (este morto pelos stalinistas). Foi assassinado por tropas franquistas em 1938.
Os outros brasileiros chegaram ao solo espanhol em 1937. “Metade de nosso contingente militar provinha da Aeronáutica, mas apenas Eneas Jorge de Andrade conseguiu lugar na aviação espanhola — de metralhador. Não admitindo voltar para o Brasil, José Gay da Cunha foi exercer as funções de tenente da infantaria montesa, nos Pireneus, e os outros se engajaram como soldados em brigadas e batalhões. O mesmo se daria com Nelson Alves, oficial da Polícia Militar do Espírito Santo, com Delcy Silveira e Homero de Castro Jobim, aspirantes a oficial, e com José Correa de Sá e Davi Capistrano, sargentos em formação. Exceção significativa, Hermenegildo de Assis Brasil, cabo no Brasil, foi desde o primeiro dia tenente do exército republicano nos Pirineus, ao lado de José Gay da Cunha e Nemo Canabarro Lucas”, historia Apolonio.³
O Brasil é longe daqui
Compreendendo mal o país, a esquerda adotou táticas precipitadas que levaram ao seu destroçamento
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), Apolonio de Carvalho volta ao Brasil. Com a morte de Stálin, em 1953, começa-se o degelo. O horror comunista vem à tona. Mas o PC brasileiro ainda tenta esconder os crimes do stalinismo. Reporta Apolonio: “A direção sonega qualquer informação sobre o Informe Secreto [do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética]. É pela imprensa tradicional que os militantes tomam conhecimento de seu conteúdo, cuja veracidade as direções se recusam a confirmar. A indignação tantos anos represada explode; jornalistas e intelectuais abrem, na marra, na ‘Voz Operária’, do PC, o debate sobre o stalinismo e suas repercussões na organização e na política do partido”.
Já casado, com a francesa Renée, e com dois filhos, Apolonio passa a atuar na doutrinação dos quadros do partido.
Em 1964, integrante do Partido Comunista Brasil, o reformista PCB, Apolonio foi surpreendido com o golpe civil-militar. Sua autocrítica: “O PCB não se preparara — e não mobilizara o movimento popular para fazer frente ao golpe conservador. Alimentava a ilusão de que o exército estaria conosco. Tudo dependia, assim, do governo [de João] Goulart e de seu dispositivo militar. As ilusões de classe pairavam sobre a esquerda que, até o último lance, acreditaria nas mentiras oficiais. Mesmo depois de desencadeado o golpe, o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, repetiria de 15 em 15 minutos comunicados confortadores: os rebeldes estão encurralados em suas áreas de origem e o governo é senhor da situação. Saberíamos depois que ele já estava longe do Rio. Dirigia-se ao povo por meio de gravações”.
A dura avaliação continua: “Na véspera [do golpe, ocorrido em 1º de abril de 1964] Prestes não conseguira encontrar o presidente João Goulart. Por isso nenhuma iniciativa fora tomada, exceto o apoio à greve geral que o CGT desencadearia à meia-noite — o que na prática paralisaria eventuais intentos de resistência. O caminho proposto, ao fim de rápida troca de informações, seguia o mesmo: esperar. Esperar pelo bem ou pelo mal, já que tudo dependia do governo”.
Comunistas obedecem cegamente, mesmo quando sabem que a orientação, a linha justa, está errada. Apolonio era disciplinado e acreditava no partido com escassas discordâncias. Mas mudou de opinião: “Eu perderia nesse 1º de abril o que me restava de ilusões quanto à infalibilidade do núcleo dirigente. E constataria quanto eu mesmo estava distante da imagem que me haviam aconselhado a admirar e assumir: a de militante de vanguarda”.
Na clandestinidade, Apolonio é promovido a secretário regional de organização do PCB. Como tal, ele se encontra com Carlos Marighella e outros integrantes do partido. (Marighella) “Vem trazer-nos proposta inesperada: o esboço de uma primeira resposta ao golpe militar. Tem de ser antes de 8 de abril (de 1964), quando o general Castello Branco assumirá a Presidência da República por voto indireto na Câmara Federal.”
O plano de ação de Marighella: “Na Vila Militar dois esquadrões de tanques esperam apenas a hora e a ordem de sublevar-se. Contingentes do PCB buscarão o apoio do povo”.
Nada deu certo. Os organizadores da rebelião são presos. Era hora de testar novos caminhos.
A luta armada
Enquanto parte da esquerda preconizava a luta armada no combate ao governo militar, o PCB definiu sua linha: “A oposição à ditadura deve dar-se exclusivamente dentro da lei, via parlamento”. O partido sugere, até, alianças com Carlos Lacerda, Adhemar de Barros e Magalhães Pinto, golpistas em desgraça junto aos militares.
Em fins da década de 60, não se pode mais falar em esquerda, mas em esquerdas. O francês Regis Debray — um intelectual confuso à beça — começa a influenciar parte da esquerda brasileira. Para ele, a alma da revolução estava no campo, não na cidade. A guerrilha rural armaria o exército popular e comandaria a tomada do poder. Tudo muito simples. Na teoria.
Em agosto de 1968, Marighella e Joaquim Câmara Ferreira criam a Ação Libertadora Nacional (ALN). O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) surge no mesmo ano. Apolonio, Jacob Gorender e Mário Alves estão entre seus líderes.
O PCBR era sustentado por Jorge Medeiros Vale, o Bom Burguês, que retirava dinheiro do Banco do Brasil e repassava aos esquerdistas. O depoimento de Apolonio é interessante e diferenciado de outras opiniões: o Bom Burguês era um “combatente sincero e injustamente esquecido no seio da esquerda. Preso, Jorge Medeiros guardaria dignidade e coragem diante de seus torturadores”.
Num ponto, Apolonio parece escorregar, talvez por ser genérico. Escreve ele: “Por meio da repressão generalizada, a ditadura militar se distancia mais e mais do povo, a que teme e odeia”. É um exagero. Nos piores anos da repressão, no governo Médici, o povão estava em lua-de-mel com a ditadura. O milagre econômico, no início da década de 70, anestesiou a consciência popular.
Apolonio também não parece preciso noutra avaliação — “Um paradoxo, talvez não o único, marca esse período: o fato de as ações armadas urbanas terem se iniciado e acumulado condições de ampliação crescente com o apoio ou pelo menos larga simpatia da população”. Num livro tão belo e autocrítico, esse trecho é de um simplismo espantoso. O povão não apoiava os atos da esquerda — assaltos e sequestros. Apolonio sequer leva em conta a força da censura. Muita gente atravessou o período sem saber o que estava acontecendo.
Preso, Apolonio foi barbaramente torturado. Trocado pelo embaixador da Alemanha, que havia sido sequestrado, ele vai para a Argélia. Depois, segue para a Suíça, de onde é expulso por injunções da Nestlé e outras multinacionais.
Nas avaliações dos motivos da derrota é que Apolonio aparece como bom historiador, não o militante alienado: “Nossa resposta à ditadura militar reduzia-se, simplesmente, a um protesto armado. Justo, digno, generoso — mas sem perspectiva de vitória. A derrota tinha causas profundas. Claro, o isolamento político agrava-se no segundo semestre de 68, quando o movimento de protesto estudantil é fortemente reprimido e reflui. Ele pesa, porém, desde o primeiro dia — e decisivamente — sobre a sorte de nossas organizações. Antes de tudo, corta nosso diálogo com a sociedade. Retira do protesto armado o conteúdo popular que seria sua razão de ser e suas raízes. Mais que o ódio e a violência da repressão militar, passa a constituir a fonte principal do esvaziamento contínuo de nossas fileiras, com as quedas, deserções e mortes de companheiros repetindo-se perigosamente”. (É uma contradição em termos em relação à avaliação de que a sociedade tinha simpatia pela esquerda.)
Apolonio não tem meias palavras ao registrar o fracasso da resistência armada, sem desmerecer, porém, os guerrilheiros: “Por que, em condições difíceis, a esquerda continuou investindo na guerrilha recém-iniciada? Por que não interrompeu tão doloroso sacrifício — já agora inútil?”.
Sua resposta: “Primeiro porque, ingenuamente, acreditou na força mágica, na vara de condão e no alcance místico da ação armada, mesmo isolada do povo. Depositou uma confiança cega no slogan da OLAS: a ação move montanhas; eleva o nível de consciência do povo; multiplica sua força criativa; cria e dinamiza suas formas de organização”.
O Brasil real
“Em segundo lugar, por sua própria imaturidade. Sobretudo por suas debilidades políticas e teóricas. Esquecia que as massas populares só aprendem — e só se convencem — por meio de sua experiência própria e direta, acumulada passo a passo em sua atividade diária. A simples propaganda — ou o reflexo eventual de ações externas isoladas — são insuficientes”.
Uma história de Apolonio é surpreendente. Em 1972, o PCBR organizou um retorno ao Brasil. “Manda a honestidade que se diga: tal retorno foi organizado; e só não se deu porque o golpe militar no Chile o inviabilizou.”
Ao final do livro, Apolonio observa que a esquerda, apaixonada por jargões, sempre teve dificuldade para compreender o Brasil real e não se empenhou efetivamente pela unidade das forças políticas defensoras de uma transformação estrutural.
O livro de Apolonio é indispensável em qualquer bibliografia que se elaborar sobre a história da esquerda brasileira. É uma biografia daquele Brasil que a história oficial tenta esconder, mas não consegue. É um livro bonito, digno. É a história de uma coerência sem chatice. As pessoas muito coerentes às vezes são intragáveis. Felizmente, não é o caso de Apolonio. Ele é um must, diria, se lesse, a maioria dos colunistas sociais.
De volta ao Brasil com a anistia, Apolonio filiou-se ao PT. No livro, ele registra que as tendências estão matando o partido.
Quando publiquei a resenha no Jornal Opção, em 1997, recebi uma ligação do próprio Apolonio. Ele disse: “Gostei de seu artigo, sobretudo das críticas”. O velho esquerdista era assim: sincero, decente e não temia a crítica.
Notas
¹ A resenha é publicada integralmente, com ligeira alteração apenas para noticiar a morte de Apolonio de Carvalho, em 2005.
² Quando publiquei a resenha, na edição de 21 a 27 de setembro de 1997 do Jornal Opção não havia nenhuma biografia de qualidade de Luís Carlos Prestes. Agora há duas: “Luís Carlos Prestes — Um Revolucionário Entre Dois Mundos” (Companhia das Letras, 576 páginas), de Daniel Aarão Reis, e “Luiz Carlos Prestes — Um Comunista Brasileiro” (Boitempo Editorial, 560 páginas), de Anita Leocádia Prestes.
³ Há vários livros sobre a participação dos brasileiros na Guerra Civil Espanhola. Um bom balanço é “A Solidariedade Antifascista — Brasileiros na Guerra Civil Espanhola (1936-1939)”, de Thaís Battibugli. Edusp, 237 páginas, 2004.