Amora, a gata que mudou vidas humanas e salvou vidas felinas

16 julho 2023 às 00h01

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Um misto de pelo tigrado no dorso com a barriga branquinha, juntando na cara a mistura das duas colorações; mestiça em corpo e feições, patas bonitas, rosadas e grossas, provavelmente um cruzamento de um felino de rua com uma angorá. Sem “pedigree” definido, mas com aquelas idiossincrasias que vêm embutidas em todos os gatos – uma da personagem desta história era não poder ver se abrir uma torneira sem que subisse para observar a água descendo.
Essa é uma breve descrição da linda Amora. Ela foi encontrada em uma noite chuvosa, após pedir socorro com miados convictos e chorosos que só os filhotes sabem soltar, embaraçada que estava no alto de uma velha buganvília no jardim da casa. Seu acolhedor não poderia ficar com ela, por já ter consigo uma lotação felina, mas jamais lhe negaria um lar temporário. Durante alguns dias daquele janeiro de 2018, ele se maravilhou com aquela pequena peluda que lhe bagunçou a casa.
Ocorre que o homem precisaria fazer uma pequena viagem e teria de deixar a pequena com alguém de confiança. E não via ninguém mais indicada para a tarefa-favor do que sua amiga e então ex-namorada. Ok, sabia que ela nunca tinha tido um bichinho sequer no apartamento e que lhe “falaria” um bocado antes de conceder. Mas o bom coração sempre vence e o dela sempre foi, além de bom, humano demais.
O problema é que a mulher também tinha seus problemas. Poderia cuidar da garota peluda, mas precisava sair para o trabalho e morava no 4º andar. Gatos sobem nas coisas e pulam das coisas, ainda que pequenos. O perigo de um descuido e a pequena Amora trepar na janela e cair do alto daquele pé de concreto era real. Ela pediu então ajuda à filha, que, embora morando com o marido também em apartamento, era quase vizinha e poderia fiscalizá-la enquanto a advogada resolvia suas demandas pelos fóruns e cartórios da cidade. “Ah, você arruma essas coisas e sabe que tenho de estudar… E nem gosto de gato!”, reclamou a reclamona.
Horas depois, quando a mãe voltou para pegar Amora, o coração da estudante apertou ao devolvê-la. “Olha que gracinha!”, dizia a filha mostrando um vídeo em que a filhote atrapalhava seus estudos passando por cima do laptop e brincando com a caneta e o estetoscópio. Nem “gostava” de gatos…
Foi idêntico ao que a mulher faria um dia depois com o amigo. Quando o tutor temporário subiu para pegar a gatinha de volta, deu de cara com uma tutora definitiva. Amora precisava de poucos dias para conquistar corações.
Naquelas circunstâncias, a principal missão de vida da bolinha de pelo com patas já estava com meio caminho andado. Porque, depois de pouco tempo, sua dona quis logo arrumar uma companhia para a gata. Então, veio Nina, uma felina tigradinha que aguardava em uma gaiola de um pet shop a graça da adoção. E aconteceu. Ela, meses depois, já acompanhando uma amiga de caminhada na alimentação dos bichos de rua, acolheu e cuidou de Vida. Era uma filhotinha mirrada que encontrou quase morta, desacordada na calçada, talvez atingida por um veículo ou alguém maldoso. Levou ao veterinário quase pelo que chamam de “desencargo de consciência”. O que presenciou, então, foi praticamente uma ressurreição – a (até hoje) pequena Vida não tem esse nome à toa, mais completo só se fosse Segunda Vida.
Falando em nome, “Amora” na verdade é uma licença poética, bem mais sóbria, a partir de “Arbórea”, o nome provisório de gosto contestável escolhido pelo tutor provisório, por conta do local onde a havia encontrado naquela noite de chuva fina.
Foi por causa de um dia ter hospedado Amora que sua dona passou a enxergar com outro olhar o mundo animal. E a se dedicar a tarefa diária, sem folga em sábado nem domingo nem feriado, de levar água e alimento aos bichinhos de rua em vários pontos da região onde mora. Em princípio, acompanhando uma amiga de caminhada; depois, tomando para si a missão.
Missão porque a mulher se tornava uma protetora, atividade que dispende recursos de tempo e dinheiro, exige persistência e traz dissabores. Não foram – e não são – poucas as desventuras de quem se encarrega desse trabalho: tomar chuva, adequar horários e compromissos, ouvir insultos de vizinhos sem empatia, se expor em locais ermos e até, o pior, se deparar com a morte de seus assistidos, por envenenamento ou outras maldades.
O lado que recompensa tudo isso é olhar para trás com a consciência de dar comida e certo conforto a dezenas de felinos alimentados dia após dia e colaborar para que muitos deles tivessem ganhado lar, cuidado e carinho. Para outros tantos , ao menos a castração, paga com um rateio de amigos da causa ou do próprio bolso.
Cinco notas curtas, ao fim do texto: 1) Amora na verdade era um gato macho, mas isso foi descoberto (o certo seria dizer “encoberto”) somente na castração, por conta de ela/ele ser muito peluda. Já era tarde demais: na cabeça de quem a conhecia, só se via uma fêmea. E assim, se criou uma “gata trans”, brincavam; 2) era uma gata muito sadia e bem cuidada, relativamente nova – menos de seis anos –, quando teve uma infecção súbita e agressiva, que a levou em sete dias; 3) Amora foi enterrada no jardim da casa em que fora encontrada, debaixo da árvore de onde se ouviram seus primeiros miados; 4) a filha da dona de Amora também virou tutora e hoje são 13 gatos muito bem cuidados divididos em dois apartamentos; 5) os nomes dos bichos humanos foram omitidos deste curto texto porque o que interessava era celebrar a curta e importante vida de Amora.