A Enxada de Bernardo Élis é o melhor conto de Tchékhov e Kafka

23 agosto 2025 às 21h00

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“A Enxada” é o melhor conto de Anton Tchékhov. “A Enxada” é o melhor conto de Franz Kafka.
Ora, “A Enxada” não foi escrito pelo russo nem pelo tcheco — o maior prosador de língua alemã, ao lado de Goethe.
Bem, se “A Enxada” não é da lavra dos autores de “A Dama do Cachorrinho” e de “O Processo” — e sim de Bernardo Élis (figura no livro “Veranico de Janeiro”, José Olympio Editora, de 1966) —, por que comecei este texto de maneira tão enfática?
Porque os dois prosadores estão presentes, direta ou indiretamente, na prosa do escritor brasileiro. Piano, Supriano, é um personagem de Kafka num conto — até novela — que não é de Kafka.
Assim como K., Piano é, mais do que sujeito, objeto de uma história, a brasileira, que mais exclui do que inclui. O negro Supriano é um excluído social. Praticamente um escravo, apesar da Abolição de 13 de maio de 1888. É um joguete de uma história na qual existe mas não é sua. É dos outros. Seu lugar é a terceira margem, não do rio, e sim da história. A margem dos que são “retirados” da história à força.
Piano pertence à terra dos invisíveis. Ou, dito de outra forma, só se torna visível pelo trabalho. Se é que se torna visível.
A contenção de Tchékhov está presente na história do autor nascido em Corumbá há 110 anos. Quando Bernardo Élis nasceu, em Goiás, Tchékhov falecera havia 11 anos, em 1904. O membro da Academia Brasileira de Letras tinha 9 anos quando Kafka morreu, aos 40 anos, em 1924.

Assim como Tchékhov, Bernardo Élis deixa que a história em si seja o discurso. Mais mostra do que demonstra. Não apela ao panfleto, com a instrumentação de palavras candentes e melodramáticas. O prosador do Cerrado enxugou ao osso o “excesso” da tragédia do Sísifo dos trópicos. Piano é homem real, é mito e é personagem emblemático.
A história de Piano, a dos esquecidos pela sociedade
Uma mulher, Alice, é a única a perceber e publicizar a sapiência de Piano: “Não sei adonde que Piano aprendeu tanto preceito”. Onde mesmo? Na escola da vida, nas frestas da história, por assim dizer. Nos espaços sobrantes.
O narrador não doura a pílula, mas segue, obediente, o dito de Alice: “Supriano era feio, sujo, maltrapilho, mas delicado e prestimoso como ele só”. A pobreza, que não salvará o mundo — ao contrário da beleza —, não é bela, ou raramente pode ser bela.
Marido de Alice, Joaquim Faleiro “enconvidou” Piano para almoçar. Porém, o homem negro optou por trocar a comida pelo empréstimo de uma enxada.
“Seu Joaquim, num vê que estou lá com a roça no pique de planta e não tem enxada. Será que mecê tem alguma aí pra me emprestar”, suplica Piano.

A linguagem de Piano é curta, sintética: “A gente não quer de graça. É só colher a roça, a gente paga”.
Ao saber que a enxada era para plantar a roça de Seu Elpídio Chaveiro, Joaquim Faleiro diz um rotundo não a Piano: “Pra você eu te dou tudo; praquele miserável num dou nadinha dessa vida”.
Rico e arrogante, Elpídio Chaveiro abria as portas só para a maldade, daí a resistência de Joaquim Faleiro.
Ao não aceitar os rogos de Piano, em tom de desespero, Joaquim Faleiro, ao se “vingar” do “coronel”, deixa Piano numa situação difícil.
Por isso, relata o narrador, Piano “pensou consigo que um homem não deve de tratar outro por essa forma, que é faltar com o preceito da boa maneira”. O “bom” Joaquim Faleiro havia se levantado e saído, sem oferecer uma satisfação adequada ao pobre “severino”.
Porém, mesmo virando as costas, Joaquim Faleiro disse: “Vem trabalhar mais eu, Piano. Te dou terra de dado, te dou interesse”. Quer, pois, um meeiro, e não um escravo.
O problema é que Piano estava nas mãos de Elpídio Chaveiro. Ele trabalhou para o delegado numa plantação de café. No lugar de sair com algum dinheiro ou alguma saca de café, “ficou devendo um conto de réis” para o policial.

O delegado “repassou” Piano para Elpídio Carneiro. Havia se tornado, por assim dizer, mercadoria — uma escravo não-dito. A dívida foi paga com a moeda Piano.
Acompanhado da mulher, Olaia, e de um filho “bobo babento, cabeludo”, Piano dirigiu-se à fazenda de Elpídio Chaveiro para pagar uma dívida, que, a rigor, era fictícia. Pois havia trabalhado para o delegado. (Os tempos de ontem, numa espécie de eterno retorno, estão sempre voltando. Numa vinícola do Rio Grande do Sul, que produz vinhos conhecidos, usava-se pessoas em trabalho análogo à escravidão… novo eufemismo para escravidão e barbárie. No século 21.)
De cara, Elpídio Chaveiro ameaçou: “Quero ver que inzona você vai inventar para não plantar a roça”.
Desacorçoado, Piano optou pelo essencial: “E a enxada, adonde que ela está, nhô?” Pergunta humilde e objetiva de quem quer e sabe trabalhar.
Depreciando Piano, Elpídio Chaveiro atacou: “Nego à-toa, não vale a dívida e ainda está querendo que te dê enxada!” O rei do capital percebe Piano, não como indivíduo, ser humano, e sim, por certo, como uma enxada falante.
Apesar do achincalhe, Piano insistiu, com lógica e respeito: “Me perdoa a confiança, meu patrão, mas mecê me fia a enxada da gente e na safra, Deus ajudando, a gente paga com juro”.
Elpídio Chaveiro, ante um homem cordato e responsável, respondeu de maneira irada: “Ocê que paga, seu bedamerda. (…) Vá plantar seu arroz já, já”.
Do café, que é preto, Piano saltou para a produção de arroz, que é branco. No fundo, tudo igual. Assim como liberais verde-amarelos são uma ideia fora do lugar.

Sem saber o que fazer, Piano se torna um personagem de Kafka, um primo não muito distante de K., o herói-vítima (da burocracia) de “O Processo”.
Como adquirir uma enxada? Piano foi à mata e retirou mel de jataí, aquela abelhinha pequena que trabalha muito, e de graça, como o negro Piano (mesmo o nome — sem sobrenome — é uma imposição de um “branco”, o delegado).
O mel de jataí era difícil de vender. As pessoas queriam de graça. Quando tentava vendê-lo, para comprar a enxada, Elpídio Chaveiro, como se tivesse saído do Inferno, o cercou, persecutório: “Já plantou a roça?”
Piano tentou se explicar, mas os poderosos são donos de duas falas, a sua e a dos outros, a dos pobres. O fazendeiro agrediu-o verbalmente, mais uma vez, com sua ética da maldade.
O que fazer? Piano ficou inerme, ante a dureza dos ricos, dos que tudo podem e, sim, fazem. O que fazer? Num sonho um sujeito aparece “com uma enxada desocupada”.
O conto do vigário e Olaia, a mulher de Piano
Na espera, não de caça, e sim de uma enxada, Piano de repente encontra-se com o vigário, um segundo poder, o religioso.

Pensando no poder e na bondade do vigário, Piano convidou a autoridade a visitá-lo em seu rancho, que ficava numa grota.
“De dentro do rancho veio Olaia, as gengivas supurosas à mostra, se arrastando, pois a coitadinha era entrevada das pernas.”
Mais uma vez, Bernardo Élis faz opção preferencial por estabelecer um discurso por meio dos fatos. A miséria de Piano, Olaia e o filho — ainda mais invisível do que os pais — é evidenciada, mas sem realismo socialista, do qual, se Graciliano Ramos escapou, Jorge Amado se tornou prisioneiro por certo período. A literatura fina e perspicaz salva o prosador do Cerrado da prosa de mero fundo ideológico.
Olaia quis servir alguma coisa ao vigário, mas “tinha nada dessa vida”. O padre mandou o sacristão pegar café, açúcar e vasilhame nos seus alforges. Um luxo.
O vigário disse a Piano para ir à cidade, pois a Igreja Católica lhe daria uma enxada.
A ida de Piano à cidade lembra, aqui e ali, o encanto-desencanto de Fabiano, de “Vidas Secas”, com as, digamos, “vibrações” da urbe.
Ao chegar, Piano lembrou de Homero, o ferreiro. Era um profissional de primeira que o álcool retirou de linha. A dor de Homero era uma odisseia, sem volta para casa. A desventura de Piano era uma “ilíada”, uma guerra pela sobrevivência.
Na cidade, o vigário deu ordens para entregarem uma enxada a Piano. Mas, com a enxada da igreja roubada ou emprestada, o campesino ficou a ver navios. Por que o religioso não mandou comprar uma enxada para o “severino”? Talvez porque Piano não lhe preocupasse tanto.
O que fazer? Piano lembrou que um irmão, “morador no Rio Vermelho”, poderia arranjar-lhe uma enxada. Rumou para sua casa, a pé e subalimentado.
No meio do caminho as pedras eram dois soldados. Primeiro, atiraram. Depois, deram “safanões, socos e pescoções” e “amarraram as munhecas” de Piano “com sedenho”.
Sem ter cometido nenhum crime, exceto o de “querer” trabalhar de graça para um chefão, Piano foi levado para a cadeia, onde ficou “sem comer nada”.
Em seguida, os meganhas levaram Piano ao “escravocrata” Seu Elpídio Chaveiro, filho de senador. “Agora, negro fujão, é pegar o caminho da roça e plantar arroz.”
Piano retomou a história: “O que devo, pago. Mas em antes preciso de enxada, mode plantar”.
Até o chapéu de Piano desapareceu. Um dos soldados o roubou? Quem ouve o negro Piano? Ninguém. Talvez sua mulher.
Sozinho, constatando a injustiça do mondo cane (ele sangrava), Piano diz para si mesmo: “Num matei, num roubei, num buli com muié dos outros, gente. O que eu quero é uma enxada pra mode lavorar. E num quero de graça não. Agora não posso pagar, mas a safra taí mesmo e eu pago com juro”.
Curiosamente, Piano acredita que, concluída a plantação e a colheira de arroz, Elpídio Chaveiro o pagaria.
Ulisses voltou para Ítaca, com extrema dificuldade, para o reencontro com sua mulher Penélope. Piano circula por vários lugares, mas não tem uma Ítaca, pois vive num não-lugar. Não há nada realmente seu. Nem ele é seu. O narrador diz, do nada, que Piano tinha papo (bócio). Faltava tudo à família, inclusive sal.
Olhando para o Céu, Piano diz, ou melhor, pensa: “Tomara que chova”. Dado o veranico, “quem é que pode plantar?”
Quiçá por causa da fome, ou pela pressão dos soldados e de Elpídio Chaveiro (que vê Piano não como uma pessoa, e sim como, por assim dizer, uma enxada — um mero instrumento a ser usado), o semi-escravo (nem meeiro é) delira: a roça está plantada — “inteirinha”. A roça “estava uma beleza”.
Ao subir num pé de jatobá-do-campo, avistou, lá das grimpas, sua roça — a rigor, de Elpídio Chaveiro. Não havia, naquele momento, plantação alguma, exceto capim e alguns brotos de árvores.
Ao chegar em casa, o “navegante” Piano encontra-se com a plebeia Olaia. “Interando dois dias que nós tá fazendo cruz na boca”, disse a mulher de piano.
“Era uma voz pastosa, viscosa, fria. As palavras eram comidas quase que completamente, restando apenas o miolo. Para alguém que não fosse roceiro os vocábulos seriam ininteligíveis.” Bernardo Élis opera com mestria a questão da fome de Olaia e seus parentes e o fato de “comer” palavras, como se fosse a única alternativa.
Olhando para as duas sacas de semente de Elpídio Chaveiro, Olaia disse para Piano: “Inda se tivesse graxa a gente comia esse arroz daí”.
Há momento de poesia assolada pela tragédia da família pobre: “Embrulhando tudo, a solidão como bocado de picumã que a gente pudesse pegar com a mão. O ermo como que alargado com o trilili dos grilos, com o sapear da saparia e o grogoló da enxurrada crescida na grota, onde indagorinha as saracuras apitavam”.
“A noite ia grossa, igual a um fiapo de babo do bobo, com o chuvisco pesado piriricando na saroba.” O que Piano irá fazer para atender as ordens de Elpídio Chaveiro?
Com a “cara barbuda”, Piano diz para Olaia: “Vigia só a enxada!”
Porém, mesmo observando com atenção, Olaia não viu nenhuma enxada. “O que percebia era um pedaço de galho verde” nas mãos de Piano. “O homem tava não regulando, será?”
Com o pedaço de pau e com as próprias mãos, Piano começou o “plantio” das sementes de arroz. Olaia viu o que o marido não mais percebia: “As mãos grossas de Piano manando sangue e lama, agarrando com dificuldade um bagaço verde de ramo de árvore”.
“As pálpebras de Olaia pesavam de sono. O mundo existia aos retalhos.”
De manhã, dois soldados apareceram, um deles armado com um “fuzilão preto”. Olaia não apreciava militares, pactuados, na sua visão, com o demo. “Que Deus me livre de um trem desse entrar no meu rancho!” A resistência da mulher de Piano é tão passiva quanto ativa. Ela não diz, mas pensa mal dos homens públicos a serviço da iniciativa privada.
Na roça, os soldados constataram, perplexos, que “Piano já havia plantado o terreno baixo das margens do corgo, onde a terra era mais tenra, e agora estava plantando a encosta, onde o chão era mais duro. O camarada tacava os tocos sangrentos de mão na terra, fazia um buraco com um pedaço de pau, depunha dentro algumas sementes de arroz, tampava logo com os pés e principiava nova cova”.
As mãos de Piano haviam se tornado enxadas. O “preto Supriano” mostrara, enfim, que era um homem de compromisso — cumpria suas palavras, ainda que ao custo de se ferir —, bem ao contrário daqueles que, mesmo gritando e o agredindo, não queriam “vê-lo”.
Dorido, sofrido, ferido, ainda assim, Piano saudou os homens de farda: “Oia, ô! Pode dizer pra Seu Elpídio que tá no finzinho, viu?”
“E com fúria agora tafulhava o toco de mão no chão molhado, desimportando de rasgar as carnes e partir os ossos do punho, o taco de graveto virando bagaço.”
Impressionado com a cena, um soldado acabou “gomitando”. Mesmo percebendo que ali havia um homem — um homem de verdade, que cumpria o prometido, ao custo de sua saúde —, o soldado atirou em Piano.
O que assustara o soldado? Certamente não foram tanto os cotos das mãos de Piano, o sangue farto. Mas o fato de que, sem nenhuma enxada, aquele preto paupérrimo — instruído unicamente pela vida —, de caráter retilíneo, cumpriu o acordo, ainda que fosse unilateral. O brutal Elpídio Chaveiro não cumpriria sua parte.
Há um pouco mais de história, que fica para os leitores do conto, um dos melhores da literatura brasileira.
Olaia poderia dizer aos homens e mulheres sem alma do lugarejo: “Ô laia de seres desumanos!” A entrada da mulher de Piano na cidade — montada no filho —, como uma condenada-condenadora eloquente (mais pelo gesto do que pela fala), beira o realismo fantástico latino-americano. Frise-se que Bernardo Élis é um autor realista, da “escola” de Machado de Assis, quer dizer, um realismo que trafega por nichos vários, inclusive pelo fantástico, mas sem hegemonia deste.
O escritor era regionalista? Tanto quanto Guimarães Rosa e o russo Liev Tolstói. O regionalismo como “prisão” não funciona com Bernardo Élis. Por isso o escritor e crítico Nilson Jaime tem razão quando assinala que se trata de um escritor regionalista-universalista. “A Enxada” é (quase) um poema em prosa sobre a barbárie do capitalismo tardio patropi. O livro, se publicado na Rússia de Maksim Górki, seria best-seller.
Em boa hora, o Icebe, muito bem dirigido por Nilson Jayme, está repondo o conto “A Enxada” nas mãos dos leitores, com uma edição voltada para estudantes. Patrocinada pelo Sicoob Cultural, a edição de 3 mil exemplares será distribuída, gratuitamente, em escolas. O Icebe fez uma edição numerada Ex-libris, com 300 exemplares, para arrecadar fundos para a instituição. A capa é uma aquarela da notável artista plástica Wal Curado, de Pirenópolis.
A nova edição de “A Enxada” preserva o original, adaptando o conto às novas normas da Língua Portuguesa, e contém notas (escritas por Nilson Jaime, presidente do Instituto Bernardo Élis dos Povos do Cerrado, Icebe) altamente esclarecedoras, cronologia e biobibliografia e relação de obras de Bernardo Élis. Trata-se de um livro (conto) que deveria ser adotado nas escolas de Goiás e do país. A alta literatura agradecerá.