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A brilhante carreira acadêmica-intelectual do sociólogo Boaventura de Sousa Santos acabou? Talvez sim, e de maneira tão melancólica quanto espantosa. A carreira de Bruno Sena Martins talvez tenha acabado logo depois de, por assim dizer, ter começado a se estabilizar. A história, ao não esquecer, não perdoa

O meio universitário de Portugal está em polvorosa: o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, de 82 anos, é acusado de assédio sexual por cinco mulheres. Diz-se que as primeiras denúncias são a ponta do iceberg. O principal pensador do país tem fortes conexões com o Brasil, onde seus livros são publicados com destaque. Bruno Sena Martins, de 45 anos, assistente do célebre mestre, também é acusado de assédio sexual. O país está “chocado”? Sim (é admirado por milhares) e não (várias pessoas já sabiam da “fama” do intelectual).

As denúncias de assédio sexual saíram, primeiramente, num artigo do livro “Má Conduta Sexual na Academia — Para uma Ética de Cuidado na Universidade” (“Sexual Misconduct in Academia — Informing an Ethics of Care in the University”,) escrito pela portuguesa Catarina Laranjeiro, pela belga Lieselotte Viaene e pela norte-americana Myie Nadya Tom e publicado pela Routledge, uma das mais qualificadas editoras acadêmicas do mundo.

Pichação na Universidade de Coimbra | Foto: Reprodução

No Brasil, as denúncias foram divulgadas pelo site Universa, baseado no UOL, e pela Agência Pública.

Boaventura de Sousa Santos é acusado de assédio sexual por quatro ex-alunas — uma delas a brasileira Bella Gonçalves, deputada estadual pelo Psol de Minas Gerais — e pela indígena argentina Moira Millán (participou de uma palestra na Universidade de Coimbra).

As denunciantes foram alunas de Boaventura de Sousa Santos no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Com a divulgação das denúncias — pelo que se está publicando, os casos de assédio eram notórios, e, mesmo assim, a cúpula universitária nada fez a respeito, exceto depois da repercussão global da história —, a Universidade de Coimbra suspendeu Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins.

Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins | Foto: Instagram

Boaventura de Sousa Santos, que nega ter assediado alunas, contrapõe: o afastamento teria sido a seu pedido. O professor afirma que é vítima de “cancelamento” e de “um ato miserável de vingança”. E atacou uma das denunciantes, Lieselotte Viaene, que, de acordo com ele, teria sido expulsa do CES por “comportamento incorreto e indisciplinado”. Ela seria “indolente”. Trata-se de uma prática comum atacar mulheres com este tipo de “argumento”. Incomum são adeptos do politicamente correto, como o mestre luso, usarem “argumentos torpes” (e incorretos) para se referir a uma mulher. Por sinal, Catarina Laranjeiro e Nadya Tom, de acordo com o professor-doutor, “concluíram seus doutoramentos com a nota máxima”.

Adotando a tática de que a melhor defesa é o ataque, o autor do livro “A Difícil Democracia — Reinventar as Esquerdas” sustenta que irá processar as denunciantes por “difamação” (a verdade difama?).

Bella Gonçalves: a denunciante brasileira | Foto: Daniel Protzner/ALMG

Bruno Sena Martins disse à Agência Lusa: “Quero deixar as declarações mais detalhadas para as instâncias próprias. Afirmo, no entanto, que o capítulo que incita ao linchamento público, agora em curso, contém gravosas mentiras e insinuações fantasiosas que ferem a minha dignidade e que atingem a minha reputação profissional”.

As mulheres que denunciaram Boaventura de Sousa Santos ganharam o apoio de um manifesto com a assinatura de dezenas de professores universitários, escritores, artistas e políticos. O documento “Nós sabemos” indica um e-mail ([email protected]) para novas denúncias, e não apenas contra o professor famoso. O manifesto sublinha que “os casos denunciados são apenas a ponta do iceberg”.

Catarina Laranjeiro: PhD pela Universidade de Coimbra | Foto: Reprodução

Há outra acusação contra o intelectual lusitano: ele teria publicado tantos livros porque usaria o trabalho de outros pesquisadores. A denúncia garante que pesquisadores, apesar de terem trabalhado para Boaventura de Sousa Santos, não receberam os devidos créditos. Ele nega: “Obviamente que me apoiaram na investigação porque foi para isso quer foram contratados”.

Nos muros da Universidade de Coimbra há pichações denunciando o suposto assediador: “Fora Boaventura. Todos sabemos”. As denunciantes possivelmente estão certas ao escreverem “as paredes falaram quando ninguém se atrevia”. É o título do artigo delas.

Myie Nadya Tom: denunciante da dupla Boaventura-Bruno | Foto: Reprodução

A história de Bella Gonçalves

A repórter Mariama Correia, da Agência Pública, publicou um texto, “Deputada brasileira denuncia assédio sexual de Boaventura durante doutorado”, no qual entrevista a deputada Bella Gonçalves (Psol-MG). Sua história é estarrecedora.

“A violência que sofri gerou outros processos de violência. Por isso, fiquei anos em silêncio”, afirma Bella Gonçalves.

Boaventura de Sousa Santos foi o primeiro orientador do doutorado de Bella Gonçalves no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal.

Catarina Laranjeiro, Lieselotte Viaene e Myie Nadya Tom, ao relatarem a história de assédio na Universidade de Coimbra, “não citam nomes, mas narram abusos de poder contra ‘jovens pesquisadoras que dependem de aprovação acadêmica para construir suas carreiras’, ‘extrativismo intelectual e sexual’ e ‘impunidade’”.

Lieselotte Viaene: denunciante belga | Foto: Reprodução

Assédios não foram cometidos tão-somente por Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins. Mas o artigo das três intelectuais menciona um “professor-estrela” e “o aprendiz”.

Bella Gonçalves é uma das denunciantes, mas seu nome foi preservado pelas autoras. Com a publicação das denúncias, que geraram novas denúncias, o autor do livro “A Crítica da Razão Indolente — Contra o Desperdício da Experiência” vestiu a carapuça, admitindo que é o “professor-estrela”. “O aprendiz” Bruno Sena Martins, por enquanto, não se manifestou.

“Decidi dar minha palavra pela postura de negação e descredibilização dele”, assinala Bella Gonçalves.

Moira Millán: indígena argentina | Foto: Reprodução

Boaventura de Sousa Santos teria assediado a cientista política brasileira em 2014. Ela tinha 26 anos e ele mais de 70 anos. “‘Um dia, ele pediu para marcar uma reunião no apartamento dele. Colocou a mão na minha perna. Falou que as pessoas próximas dele tinham muita vantagem e sugeriu que a gente aprofundasse a relação’. Ela relata que foi embora atordoada. No dia seguinte, ela conta que o professor a convidou para uma conversa junto com o ex-companheiro dela, que estudava no mesmo centro acadêmico. ‘Ele humilhou nossos trabalhos. Meu ex-companheiro chorava muito’, lembra. ‘Ali identifiquei que você poderia ter vantagens por estabelecer relações afetivas e sexuais com professores. Mas, se você se nega, é punida por isso’.” O contundente relato foi dado por Bella Gonçalves à Agência Pública.

Indignada, Bella Gonçalves conversou com professores e professoras de Coimbra. “Todos diziam que eu não era o primeiro caso. Lamentavam, mas não davam suporte ou saída”, conta. O motivo: Boaventura de Sousa Santos é praticamente um establishment — ou uma instituição — em Coimbra. É, por assim dizer, Coimbra. “Coimbra sou eu”, poderia o scholar português mimetizar o rei francês (“o Estado sou eu”).

Habilmente, Bruno Sena Martins teria aconselhado Bella Gonçalves a não formalizar uma denúncia contra o chefão Boaventura de Sousa Santos.

A Universidade de Coimbra é respeitada, inclusive por ter professores do porte de Boaventura de Sousa Santos — um intelectual cosmopolita —, mas nos bastidores não destoa de outros lugares. “É uma estrutura muito hierárquica, machista, patriarcal. Boaventura já era conhecido por condutas abusivas. Humilhava estudantes em público, xingava pesquisadoras, tinha posturas impróprias nas festas. Mas era diretor do centro acadêmico. Eu sabia que nada aconteceria com ele.”

Resistente, Bella Gonçalves decidiu voltar ao Brasil, porém manteve a pesquisa, conectada a Coimbra e à Universidade Federal de Minas Gerais, mas longe de Boaventura de Sousa Santos. Perdeu a bolsa da Capes e voltou a trabalhar.

“Ele [Boaventura de Sousa Santos] fez uma reunião on-line comigo para pedir desculpas. Disse que se apaixonou, que era natural entre duas pessoas adultas. Quis manter a orientação da minha tese. Não topei. Tive prejuízos psicológicos, emocionais e financeiros. Mudei de país, larguei uma bolsa de estudos, os danos são irreparáveis. Não quero desculpas, quero que ninguém mais passe por isso”, disse Bella Gonçalves à Agência Pública.

Apesar dos abusos, Bella Gonçalves concluiu o doutorado, em 2018, “com honra e louvor” tanto em Coimbra quanto na UFMG (uma da melhores universidades do Brasil). Numa visita a Belo Horizonte, Boaventura de Sousa Santos chegou a questioná-la se havia patrocinado o grafite “Vá embora, Boaventura. Nós todos sabemos disso”.

Resta ressaltar a coragem de Bella Gonçalves e das demais denunciantes e o excelente trabalho da Agência Pública e do Universa, que deram destaque a um caso que muitos jornais preferem não divulgar, dados a fama e o poder de Boaventura de Sousa Santos — espécie de “estátua viva” de Portugal e, também, da esquerda internacional. Denunciar um “santo” da esquerda acadêmica, sobretudo quando se torna poderoso chefão, é muito complicado. É preciso ter tutano — o que as mulheres e as duas publicações patropis tiveram.

A carreira de Boaventura de Sousa Santos acabou? Talvez sim, e de maneira tão melancólica quanto espantosa. A carreira de Bruno Sena Martins talvez tenha acabado logo depois de, por assim dizer, ter começado a se estabilizar. A história, ao não esquecer, não perdoa.