Na 48ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, realizada entre abril e maio, e nas livrarias — Eterna Cadencia, Guadalquivir, Libros de Pasage, Waldhuter (uma distribuidora, mas com estande na “Feria”), Edipo, Yenny e Hernández —, pesquisei livros que, de alguma maneira, possam interessar aos leitores (e editoras) brasileiros. A reclamação geral diz respeito aos preços. Tanto argentinos quanto brasileiros reclamam do valor monetário das obras.

Verdadeiro guia cultural — uma viagem pela literatura —, o “Diccionario de Autores Latinoamericanos” (citado no texto anterior), de César Aira, custa 213,25 reais (36.900 pesos argentinos). O “Nuevo Diccionario Lunfardo”, com 285 páginas, sai por 112,12 reais (19.400 pesos). Um livreiro me falou em “valor euro”, porque muitos dos livros que circulam na Argentina são editados em Barcelona e Madri. Em parte, ele tem razão. Mas os dois livros mencionados neste parágrafo foram impressos por editoras de Buenos Aires — a Corregidor e a Paidós.

Ao elaborar a segunda lista, com mais dez livros, priorizei escritores, jornalistas e intelectuais argentinos. A nota sobre o livro de contos de Mariana Enriquez é de autoria de Candice Marques de Lima, professora da Universidade Federal de Goiás.

(Uma curiosidade: no estande da Waldhuter, na 48ª Feira Internacional do Livro, converso com um livreiro quando um homem, de cerca de 50 anos, me aborda. Ele se identifica como Pietro Mario e diz: “Vocês têm uma chica que escreve muito bem. Trata-se de Andréa del Fuego”. Pergunto: “O que o sr. leu da escritora brasileira?” Ele diz: “Por enquanto, ‘Los Malaquias’. Mas estou à procura de outros livros, como ‘La Pediatra’”. Ele conhece a literatura de Clarice Lispector e disse ter vontade de ler Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso, Caio Fernando Abreu e Paulo Leminski. Não leu Machado de Assis e Graciliano Ramos, mas sabe quem são.)

1

Un Encuentro Fecundo — Ketaki Kushari Dyson

A argentina Victoria Ocampo (1890-1979) criou a revista “Sur” e a Editora Sur e manteve contato com intelectuais e escritores de vários países — publicando seus livros e divulgando suas literaturas. Foi amiga de Virginia Woolf, Jean Cocteau e amante de Pierre Drieu la Rochelle. O poeta, dramaturgo, prosador e ensaista indiano (bengali) Rabindranath Tagore (1861-1941), ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2013, se tornou seu amigo por toda a vida.

Aos 63 anos, em novembro de 1924, Tagore decidiu visitar o Peru, em busca das antigas civilizações do país. “Foi um incansável renovador e experimentalista, praticou e enriqueceu todos os gêneros literários”, diz Eduardo Paz Leston no prólogo do livro “Un Encuentro Fecundo — Rabindranath Tagore y Victoria Ocampo” (Sur, 767 páginas, tradução de María Julia de Ruschi), de Ketaki Kushari Dyson, doutora por Oxford.

Porém, ao chegar ao Rio de Janeiro, pegou gripe. Em Buenos Aires, os médicos recomendaram que “não cruzasse os Andes devido aos seus problemas cardíacos”. Hospedado no Hotel Plaza, Tagore recebeu a visita de Victoria Ocampo, então com 34 anos. Decidida, a jovem mecenas vendeu uma tiara de diamantes e alugou uma quinta para Tagore e seu secretário, Leonard Elmhirst.

No sítio de Miralrío, rolou algum relacionamento erótico entre Victoria Ocampo e Tagore?. Eduardo Paz Leston e Ketaki Kushari dizem que sim, ao contrário das biógrafas Laura Ayerza de Castilho e Odile Felgine, que, no livro “Victoria Ocampo” (Circe, 341 páginas, tradução de Roser Berdagué), sugerem que havia um relacionamento espiritual.

Tagore Rabindranath e Victoria Ocampo, na Argentina | Foto: Reprodução

A pesquisadora indiana escreve: “Se não houvesse amor entre eles, duvido que um teria inspirado o outro para fazer coisas interessantes. Se o amor de Victoria Ocampo por Tagore tivesse sido inteiramente espiritual, por que ela gostava tão intensamente de ficar próxima de Tagore, vê-lo, ouvir sua voz, como ela mesma o disse? Se o amava tão espiritualmente, bastava ler seus livros, só tinha de aprender bengali e começar a estudar suas obras de modo sistemático”.

Ketaki Kushari sublinha que Victoria Ocampo era “intensamente carnal”, mas também “buscava intensamente uma dimensão espiritual”. “Talvez seja a origem de sua personalidade atormentada”, sugere Eduardo Paz Leston.

Tagore traduziu seu poema “Asanka”, do bengali para o inglês, e, ao recebê-lo, Victoria Ocampo escreveu-lhe: “Você é para mim o que o céu é para você”. Tagore parece ter entendido que a argentina havia se apaixonado por ele e disse ao secretário que seria melhor cair fora.

Depois, numa carta a Elmihirst, lamentou ter se distanciado de Victoria Ocampo, que chamava de “Vijaya”. Victoria Ocampo amava a Índia de Gandhi e Tagore.

Ketaki Kushari assinala que o encontro com Tagore foi o começo de um processo que ampliou os horizontes de Victoria Ocampo.

Seguindo o roteiro de Ketaki Kushari, Eduardo Paz Leston afirma que Victoria Ocampo também foi importante para Tagore.

Primeiro, porque, triste por causa da morte de sua filha mais velha, Tagore havia praticamente parado de escrever poemas. Na Argentina, possivelmente por causa da intensa Victoria Ocampo, voltou a escrever poesia. Chegou a dedicar o livro de poemas “Purabi” para a escritora-editora portenha.

Segundo, incentivado por Victoria Ocampo, Tagore começou sua carreira de pintor na Argentina. Mais tarde, com o apoio da amiga argentina, chegou a vender muitos quadros.

2

Victória — Mercedes García Ochoa

Irmã da escritora Silvina Ocampo, Victoria Ocampo era uma mulher extraordinária e não pode ser vista tão-somente como mecenas das artes. Ela fundou a revista “Sur” e a Editorial Sur.

Criada em 1931, a revista publicava o que havia de mais moderno e experimental na literatura internacional (Joyce, Virginia Woolf) e na Argentina. Publicou em suas páginas Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Oliverio Girondo, José Bianco e, entre outros, Silvina Ocampo.

A editora publicava  o que havia de melhor na literatura global, como os livros de Virginia Woolf, que era amiga de Victoria Ocampo. Mulher da elite argentina — o pai era milionário —, casou-se, não por amor, largou o marido e se tornou amante de um primo dele. Coisa que não se fazia na época; ou melhor, quando se fazia, era escondido.

Victoria Ocampo namorou os homens que quis, como o escritor Pierre Drieu la Rochelle. Parecia dominante nos relacionamentos, não só por ser rica, mas sobretudo pela personalidade forte e decidida. Ortega y Gasset, entre outros, se apaixonou pela escritora, mas não foi correspondido. Ficou siderado.

Bioy Casares, Victoria Ocampo e Jorge Luis Borges | Foto: Reprodução

A vida venturosa da argentina daria um romance? Deu. “Victoria” (Lumen, 378 páginas), da jornalista e escritora Mercedes García Rocha, é uma história romanceada da vida da “agitadora” cultural mais importante do mundo portenho. Mas o livro sustenta-se como romance ou é mera biografia disfarçada?

Nas mãos de Mercedes García Rocha a vida de Victoria Ocampo ganhou um belo romance que, a rigor, também se sustenta como biografia. Pode-se dizer que a ficção aclara a vida de uma mulher de múltiplos talentos.

O escritor espanhol Enrique Vila-Matos escreve: “Nunca conseguimos falar do que amamos? É surpreendente, mas Victoria Ocampo parece lográ-lo ao contar-nos, por intermédio do talento de Mercedes García Ocha, como, desde muito jovem, descobriu as verdadeiras dimensões do amor e, logo, a paixão de recordá-las”.

Em 1953, o governo de Juan Domingo Perón prendeu Victoria Ocampo. Crime único: não apoiá-lo. Assim como Jorge Luis Borges não apoiava. Ela tinha 63 anos e ficou abalada.

Mercedes García Ocha já escreveu para “O Globo” e para a “Folha de S. Paulo”.

3

La Viajera y Sus Sombras — Victoria Ocampo

“La Viajera e Sus Sombras — Crónica de un Aprendizaje” (Tierra Firme, 289 páginas), de Victoria Ocampo, conta com seleção e prólogo de Sylvia Molloy.

Victoria Ocampo conheceu o que quis no mundo, desde menina — alfabetizada em casa por professoras particulares. Escreveu sobre suas viagens — relatos diretos ou cartas para amigos, como Tora Cuevas e José Bianco, e parentes, como a irmã Angelica.

A escritora era uma viajante incomum, e não uma mera turista. Sylvia Molloy assinala que seus escritos questionam os relatos de viagem. “Não só dar a ver o que se vê quando se viaja, e sim dar-se a ver no curso da viagem mesmo” — isto era/é Victoria Ocampo, de acordo com a autora do excelente prólogo.

O livro contém histórias das viagens de Victoria Ocampo para a Europa e para os Estados Unidos. Ela expressa suas opiniões com clareza e franqueza, sem titubear.

Os textos “reúnem impressões que lhe deixaram os encontros com personalidades das artes como Maurice Ravel, Jean Cocteau e Alfred Stieglitz” e da política, como o fascista Benito Mussolini, que, sobretudo nas décadas de 1920 e 1930, empolgou muitos políticos e intelectuais latino-americanos.

Virginia Woolf, Pierre Drieu la Rochelle — um de seus namoradores europeus —, Igor Stravinski, André Malraux, Rabindranath Tagore, Waldo Frank, T. E. Lawrence, Coco Chanel “são”, ressalta a editora, “captados pelo olhar de Victoria”.

Victoria Ocampo gostava de ver de perto lugares de que lhe falavam. Conheceu, nos Estados Unidos, o Harlem. Circulou pela arrasada Alemanha do pós-Segunda Guerra Mundial. “Ela se apresentava sempre aberta ao novo, perceptiva aos detalhes e matizes.”

4

Nuevo Diccionario Lunfardo — José Gobello

O lunfardo é a gíria portenha? É mais do que isto? Sim. Porque passou a ser usado por escritores do naipe de Jorge Luis Borges, Silvina Ocampo e, entre outros, Julio Cortázar.

Sabe a palavra “pibe”? Pois é: trata-se de lunfardo. Significa “niño” (menino), “pivetto” (temos em português pivete). “Aplica-se afetivamente a pessoas de qualquer idade”, diz José Gobello, autor do ótimo “Nuevo Diccionario Lunfardo” (Corregidor, 285 páginas). Pode se falar “piba”, como sinônimo de namorada. “Piberío” é um conjunto de pibes. Quem não se lembra que Maradona era chamado de Pibe, uma espécie de Pibe de ouro.

No prefácio, José Gobello assinala: “Que é o lunfardo? Nada mais difícil que acertar com uma definição capaz de agradar igualmente aos linguistas, aos estudiosos e aos meros falantes”.

“Para uns é linguagem de delinquentes”, nota José Gobello. Há os que sugerem que se palavra chegou, digamos assim, às famílias, numa espécie de linguagem comum, não é mais lunfardo. É o caso de “pibe”.

José Gobello diz que não perde tempo com as discussões acima. “O lunfardo é um repertório de termos trazidos pela imigração, durante a segunda metade do século passado e até o início da Primeira Guerra Mundial, e assumido pelas pessoas pobres de Buenos Aires, em cujo discurso se mesclavam com outros de origem camponesa, e quechuismos e lusismos que já eram usados na fala popular, conformando um léxico que circula agora em todos os níveis sociais das ‘repúblicas do Prata’”.

Os termos do lunfardo às vezes têm mesmo a ver com a marginalidade — como “punga” e “escruche”. Mas muitos não têm a ver com delinquência — como “pelandrún” (folgado, miserável, infeliz), “mufa” (mau humor, falta de ânimo), “farabute” (fanfarrão) e “acamalar”.

De acordo com José Gobello, “não há termo lunfardo que não seja literário e coloquial”.

A editora relata que, com o livro “Lunfardía”, de 1953, José Gobello “transferiu o estudo do lunfardo do território da criminologia para o da linguística”.

O “Novo Diccionario Lunfardo”, publicado pela primeira vez em 1990, é apontado como “um clássico incontornável para compreender o idioma portenho”. José Gobello é a maior autoridade no assunto.

No dicionário, José Gobello recolhe a linguagem oral, aquilo que se fala nas ruas e bares, e o que saiu na literatura popular de Buenos Aires. “Os repertórios de léxicos marginais — o argot, a germanía, el gergo, e mesmo o lunfardo — têm passado por sucessivas etapas de renovação.”

O livro de José Gobello é importante “para entender o que se fala e também o que se lê”.

5

Ricardo Piglia a la Intemperie — Mauro Libertella

O escritor argentino Ricardo Piglia (cujo nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi) morreu, em 6 de janeiro de 2017, aos 75 anos, em decorrência de esclerose lateral amiotrófica (ela). Ele está enterrado no Cemitério da Chacarita.

Sete anos depois, sai a biografia “Ricardo Piglia a la Intemperie” (Ediciones Universidad Diego Portales 231 páginas), do mexicano Mauro Libertella, radicado na Argentina.

Mauro Libertella começa assim sua história: “No dia em que morreu [Ricardo Piglia] escreveu seu último texto com os olhos, o corpo já paralisado por uma enfermidade implacável, sua casa convertida em um hospital de campanha; o fez letra a letra, como se entalhasse uma mensagem em pedra”.

O texto foi feito para a inauguração de um bar que passou a se chamar Ricardo Piglia, e fica na Biblioteca do Congresso da Nação Argentina.

Como começou o interesse literário de Ricardo Piglia? Seu avô Emilio era leitor de livros. O menino acreditava que ele dormia com os olhos abertos, como se estivesse vigilante.

Quase toda história sobre a infância é apócrifa ou meio apócrifa. Há uma boa sobre Ricardo Piglia. Aos 3 anos, olha para uma estante, pega uma escada e saca um livro de capa azul. Senta-se na escada da casa, na porta da rua, e começa a folheá-lo, como se o estivesse lendo.

Ricardo Piglia: escritor argentino | Foto: Reprodução

De repente, passa um homem e esclarece que o livro estava de cabeça para baixo. Brincando, e mais ou menos a sério, Ricardo Piglia disse que o homem poderia ser Jorge Luis Borges, pois o escritor passava os verãos no hotel Las Delicias de Adrogué, a umas quadras da casa dos Piglia”.

O biógrafo diz que, naquele dia, com ou sem lenda, nasceu o leitor Ricardo Piglia. Desde aquele dia, até o fim de sua vida, o escritor e crítico literário aprendeu a ler, a escrever e criticar de maneira não ortodoxa. “Ao revés.”

“Ler ao revés é encontrar Borges em [Roberto] Arlt e a Arlt em Borges. Ler ao revés é criar o ensaio como ficção e ficção como ensaio. É afirmar, quando ninguém havia feito, que a vanguarda eram [Juan José] Saer, [Manuel] Puig e [Rodolfo] Walsh. Ler ao revés é ler o polaco Gombrowicz como um escritor argentino”, anota Mauro Libertella.

A mãe de Ricardo Piglia era uma contadora de histórias e sempre o fazia de modos diferentes, cada vez com mais detalhes, com “variantes e desvios”. Afinal, uma história, se contada várias vezes, até pela mesma pessoa, nunca é a mesma história. Porque as histórias, mesmo as reais, são, no geral, produto da imaginação individual ou coletiva. Há uma porção de ficção em cada história real.

Ricardo Piglia diz que admirava a mãe porque ela não julgava ninguém de sua família. “Dela aprendeu que um narrador nunca tem de julgar os personagens de suas histórias”, enfatiza o biógrafo.

O adolescente Ricardo Piglia gostou de uma garota e, quando ela lhe perguntou o que estava lendo, não hesitou: “A Peste”, de Albert Camus. Ele havia visto o romance do argelino-francês numa livraria. Mas não o havia lido. Então, comprou a obra e a leu de uma sentada. “Assim foi como começou a ler: pelas mulheres.”

O pai do autor de “Respiração Artificial” (Companhia das Letras, 200 páginas, tradução de Heloisa Jahn), o médico Pedro Piglia, era peronista e em 1956, quando houve um golpe de Estado, chegou a ser preso. Os aliados de Juan Domingo Perón foram perseguidos.

6

Los Canto — Daniel Mecca

Os irmãos Patricio Armando Canto (1918-1989) e Alba Estela Canto (1915-1994) eram intelectuais, escritores e tradutores do primeiro time. Ele traduzia do inglês, russo, francês e português (traduziu “Noche, de Erico Verissimo). Trabalhou como tradutor para as Nações Unidas. Ela escreveu um livro celebrado, “Borges à Contraluz” (Iluminuras, 216 páginas, tradução de Vera Mascarenhas de Campos), uma das obras mais polêmicas sobre o poeta, prosador e crítico argentino.

A obra retira a roupa de Jorge Luis Borges e o homem desnudo fica não menor, e sim maior — rico em suas contradições. Estela Canto não diminui Borges — o situa e desvela, o que é diferente.

Estela Canto escreveu também “El Muro de Mármol”. Patricio Canto escreveu apenas um livro: “El Caso Ortega y Gasset”. É um ensaio. Ele ficou mais conhecido como tradutor.

O poeta, jornalista e professor Daniel Mecca pesquisou durante sete anos a vida de Patricio e Estela Canto e publicou “Los Canto — Estela y Patricio: Los Enfants Terribles de la Literatura Argentina” (Emecê, 364 páginas).

Os irmãos tinham o hábito, não muito apreciado no circuito relativamente discreto da mítica revista “Sur” — de Victoria Ocampo —, de dizer a verdade, doesse a quem doesse, na cara da, digamos, “vítima”. Eram escandalosos.

Patricio Canto, conhecido como Pato, “foi o primeiro amigo da escritora Silvina Ocampo”. Os dois, por sinal, eram muito diferentes. Ela, discreta; ele, não.

Jorge Luis Borges e Estela Canto | Foto: Reprodução

Borges e Estela Canto se conheceram em 1944. O poeta apaixonou-se, visitava a casa da jovem com frequência, levava livros e pegava livros emprestados de Patricio Canto. A escritora engravidou e abortou, o que não agradou o autor de “O Aleph”, que queria ser pai.

Por que Estela Canto não quis se casar com Borges? Porque o escritor só queria ter relações sexuais depois que se casassem. Como o escritor não parecia ter muito entusiasmo por sexo, a escritora e tradutora caiu fora. A mãe de Borges, onipresente, também não queria a continuidade do relacionamento.

“Estela Canto era frontal, rebelde, desejante e desejada”, diz Daniel Mecca. “Gostava de aventuras e de amantes aventureiros.” Namorou Borges, um espião britânico, um taxista francês, um miliciano e poeta espanhol. “A mãe de Borges, Leonor Acevedo de Borges, dizia que Estela se interessava particularmente por maus elementos.”

A escritora Silvina Bullrich a tachava de “promíscua” — quando deveria dizê-la “livre”, moderna antes do tempo das modernas. A jovem “alardeava duas coisas: pertencer ao Partido Comunista e não ser virgem”, de acordo com María Esther Vásquez.

Miguel de Torre Borges, sobrinho de Borges, ouviu do tio que Estela Canto “era a mulher mais inteligente que havia conhecido”.

Apresentado como “atormentado” pelo biógrafo, Patricio Canto era bissexual. Manteve relacionamento com o escritor Carlos Correas e com a condessa Tota Cuevas de Vera.

Hospedado na casa de Victoria Ocampo, o escritor inglês Graham Greene ficou fascinado por Patricio Canto. Durante um coquetel, na revista “Sur”, o argentino disse para o inglês: “Vou ser um personagem que, sem dúvida, vai interessar a você. Vai agradecer ter me conhecido. Sou um traidor”. Entusiasmado com o suposto quinta-coluna, o autor de “O Poder e a Glória” o levou para o Chile, onde, convidado, foi visitar o socialista Salvador Allende.

Irritada com Borges, por seu direitismo político e antiperonismo, Estela Ocampo certa vez o atacou, numa estação do metrô: “Não vai me escapar, filho da puta. Vai falar comigo”. O poeta reagiu: “Com essa conversa feita de lugares comuns, vai ser difícil e inútil falar”. A escritora contra-atacou: “Temos que falar. Porque é um filho da puta e um grande escritor”.

Estela Canto acrescentou: “Quando triunfarmos, não vão te enforcar, porque eu vou salvá-lo”. Borges replicou: “Em troca, se triunfarmos, ninguém vai ter de salvar ninguém. Não vamos matar ninguém”.

Numa conversa com o amigo Bioy Casares, Borges chegou a chamar Estela Canto de “perra soviética”. Mas os dois mantiveram a amizade até o fim de suas vidas. “Foi a única pessoa que percebeu que, em meus contos, há emoção”, admitiu o proeta argentino.

7

Extranjero en Todas Partes — Mercedes Halfon

O escritor polonês Witold Gombrowicz é autor de livros celebrados pelos leitores: “Fordydurke” (Companhia das Letras, 352 páginas, tradução de Tomaz Barcinski), “Cosmos” (Companhia das Letras, 192 páginas, tradução de Tomaz Barcinski e Carlos Alexandre Sá) e “Pornografia” (Companhia das Letras, 204 páginas, tradução de Tomaz Barcinski).

Gombrowicz nasceu em 1904 e morreu em 1969, aos 64 anos.

Em agosto de 1939, o navio de luxo Chrobry atravessou o oceano Atlântico, da Polônia para a Argentina, pela primeira vez. Para divulgar a viagem, a companhia de navegação convidou escritores, como Gombrowicz, “jovem autor de vanguarda”. Com ele vieram diplomatas, políticos e empresários.

Ao contrário dos demais passageiros, Gombrowicz decidiu permanecer na Argentina. Fugia da guerra e buscava novas aventuras num país tão belo quão desconhecido. Nos bolsos, tinha 200 dólares e, nas malas, algumas mudas de roupa. “Não falava espanhol, não conhecia praticamente ninguém e ninguém o conhecia”, conta Mercedes Halfon no interessantíssimo livro “Extranjero en Todas Partes — Los Días Argentinos de Witold Gombrowicz” (Ediciones Universidade Diego Portales, 159 páginas).

De uma aparente aventura, dadas a curiosidade pelo país e a necessidade de salvar a própria pele — Hitler batia às portas dos países europeus, ameaçando-os —, Gombrowicz acabou por residir na Argentina por 24 anos.

Witold Gombrowicz: polonês que morou na Argentina | Foto: Reprodução

Quando chegou em Buenos Aires, Gombrowicz tinha 35 anos, mas parecia mais novo. Já havia publicado uma peça de teatro, dois livros e um folhetim estava sendo publicado. Era amigo de Stanislaw Ignacy Witkiewicz e de Bruno Schultz. “Ferdydurke” era o seu sucesso literário.

Na Argentina, no jornal “La Nación”, o jornalista Pizarro Lastra o apresenta como “um humorista moderno” e autor de “um folheto intitulado ‘Ferdydurke’”. Os termos do diário não o agradaram. Porque Gombrowicz já era conhecido na Europa. Mas, em Buenos Aires, uma capital cosmopolita, não o era.

Sem o domínio da língua local, com poucos amigos, a vida de Gombrowicz foi muito difícil no início. Às vezes fazia apenas uma refeição por dia. Não raro ficava sem comer. Dormia em pensões do centro e em Almagro. Chegou a ser expulso de uma delas por falta de pagamento. De outra, em 1943, como não tinha dinheiro, abandonou-a, à noite, e nunca mais voltou ao local

Gombrowicz se tornou amigo dos escritores argentinos Manuel Gálvez e Arturo Capdevilla. Para ganhar uns trocados, deu palestras para mulheres.

“Gombrowicz vive uma vida erótica intensa nas margens, relaciona-se com garotos e garotas.” Um deles, um ferroviário, lhe ensina espanhol e “rouba suas camisas, sua lapiseira e seu relógio de ouro.”

Tudo indica que era bissexual, mas Gombrowicz negava ser homossexual. Vivia cercado de garotos, em geral pobres, porém, mais tarde, se casou com uma mulher.

Ernesto Sábato, um dos amigos de Gombrowicz, disse: “Com aspecto adolescente, magrelo, enxuto, fumando e chupando cigarrilhas com fúria; era teatral, contraditório, provocador, altaneiro e dispunha de um incrível senso de humor”.

Certa feita, quando caminhava com um amigo pela Avenida Corrientes, clama que tem fome. O companheiro não se faz de rogado: “Não se preocupe, tenho um cadáver, e haverá comida de sobra para nós dois”.

Gombrowicz e o colega haviam se tornado canibais? Não. Eles foram para um velório, num bairro operário, no qual havia comida farta. “Comeram sanduíches e beberam vinho até saciarem-se.”

Na falta do que fazer, e passando necessidade, Gombrowicz decidiu frequentar as redações de jornais e revistas, em busca de algum bico. Com o apoio de Gálvez e Capdevilla, publicou alguns textos nas revistas “Aquí Está”, “El Hogar” e “Viva Cien Años”.

“La Nación” não quis publicar suas resenhas de livros. Mais tarde, divulgou alguns de seus textos. Percebendo sua miséria, a embaixada da Polônia lhe forneceu uma pequena pensão, que o manteve por um ano.

Em seguida, Gombrowicz conheceu os escritores Carlos Mastronardi, do comitê editor da revista “Sur”, e Roger Pla. Cecilia Benedit de Debenedetti ajudou a mantê-lo. Esses amigos o convidavam para comer nos restaurantes. Muitas vezes, era a única comida do dia.

Espécie de “príncipe do pântano”, suas roupas estão gastas e ele não tem dinheiro para comprar outras novas.

Como não havia muito o que fazer, Gombrowicz jogava xadrez nos cafés (chegou a jogar por dinheiro), como o Rex, na Corrientes, a menos de 200 metros do Obelisco, e o bar El Querandí, na esquina das ruas Perú e Moreno. Ele também frequentava o café La Fragata. Estreitou a amizade com o maestro polonês Paulino Frydman.

O primeiro texto de ficção de Gombrowicz publicado num veículo de comunicação da Argentina foi “Filidor forrado de niño”. Saiu na revista “Papeles de Buenos Aires”, dirigida por Adolfo de Obieta

Mastronardi, amigo de Victoria Ocampo e de Silvina Ocampo, levou Gombrowicz para cear na casa da segunda, que era casada com o escritor Bioy Casares. Não deu liga. Silvina, Bioy Casares e Jorge Luis Borges eram elitistas e Gombrowicz apreciava “os de baixo”. “A obscuridade do Retiro me enfeitiçava, a eles as luzes de Paris”, escreveu o polonês em seu “Diário”.

“A revista ‘Sur’ dedicou um único artigo a Gombrowicz, em 1968.” Era referente à publicação de seu “Diário Argentino”.

8

Cortázar por Buenos Aires — Diego Tomasi

O título completo do livro é “Cortázar Por Buenos Aires, Buenos Aires Por Cortázar” (Seix Barral, 254 páginas), de Diego Tomasi.

O livro, no dizer de Diego Tomasi, “é a crônica da relação entre um escritor e uma cidade. (…) ‘Buenos Aires Por Cortázar’ busca a Buenos Aires nos livros e nas palavras de Cortázar. Assim, o livro é um espelho, e o espelho é também uma busca”.

“Julio Cortázar nasceu em Bruxelas, em 1914, passou a primeira parte de sua infância em Zurique e Barcelona, viveu em Banfield até sua adolescência, foi professor da escola secundária em Chivilcoy e Bolívar, professor universitário em Mendoza. Se instalou para sempre em Paris aos 37 anos”, anota Diego Tomasi. Viveu também quase um ano na Itália.

O autor de “O Jogo da Amarelinha” voltou a Buenos Aires sete vezes. “É possível assinalar que Cortázar passou cerca de 6 mil dias em Buenos Aires. Quer dizer, menos de uma quarta parte de sua vida.” Porém, sublinha Diego Tomasi, a cidade exerceu uma influência enorme sobre o escritor.

“Outras cidades contaram” Cortázar “entre seus habitantes”, disse José Amícola, no livro “Sobre Cortázar”. “Porém nenhuma conseguiu perdurar em sua imaginação com suficiente força e individualidade — só Buenos Aires e, também, Paris” Tanto que outras cidades não apareceram com destaque na sua literatura e escritos de não-ficção.

“A percepção de Cortázar sobre a cidade é inseparável de suas ideias sobre a criação literária. O vínculo de Cortázar com Buenos Aires é central na constituição de sua personalidade, de sua literatura, de sua maneira de olhar o mundo. (…) Em Buenos Aires, Cortázar escreveu alguns de seus mais memoráveis contos. (…) Mas Cortázar não pertencia a nenhum lugar e, ao mesmo tempo, pertencia a todos os lugares. Seu barco (e seu porto) era a liberdade. A liberdade de ir-se, a liberdade de voltar uma e outra vez a Buenos Aires”, escreve, belamente, Diego Tomasi.

9

Un Lugar Soleado Para Gente Sombría — Mariana Enriquez

Ler a escritora argentina Mariana Enriquez é sempre um suspanto, diria Mário de Andrade. Não somente por suas histórias de terror, mas também pela qualidade de sua escrita.

Mariana Enriquez é uma artífice poderosa tanto na escrita de contos quanto de romance. Seu último e longo romance “Nossa Parte de Noite” consegue prender a leitora (e o leitor) do início ao fim.

É importante destacar que sua escrita de terror não diz respeito principalmente ao terror sobrenatural, com fantasmas, vampiros e demônios. Há, sim, algumas histórias em que o sobrenatural comparece, mas a maioria conta sobre a vida cotidiana e como algumas pessoas e situações podem ser bizarras e assustadoras.

Na conversa que teve na Feria internacional del libro de Buenos Aires, no dia 5 de maio deste ano, com um auditório de mil lugares lotado e silencioso para ouvi-la, Mariana Enriquez relatou que tira as ideias de suas histórias de situações que escuta nas ruas e as anota. E da política e das condições socioeconômicas.

Em seu novo livro de contos, não é possível distinguir o que é da ordem do sobrenatural e o que faz parte de condições psíquicas das personagens. É possível se perguntar com a leitura se há ali algo de fantasmagórico ou são delírios e alucinações que as personagens vivenciam.

Aparecem as questões com o corpo, como a história de uma mulher que, ao tirar um mioma do útero, decide enxertá-lo nas costas. Ou uma mulher que começa a desaparecer, seguindo uma “herança familiar” de mulheres abusadas que tiveram o corpo desaparecendo aos poucos. Há também a história de Julie, uma jovem obesa devido à quantidade de remédios para tratar sua suposta esquizofrenia, que faz sexo com fantasmas.

É sempre uma aventura ler Mariana Enriquez, pois nunca se sabe o que vai aparecer e nem como ela vai terminar o enredo da história. Geralmente bem alinhavado. Cada conto é um nocaute diferente.

10

Juan Rulfo — Reina Roffé

O título completo do livro é “Juan Rulfo — Las Mañas del Zorro” (Mil Botellas Editorial, 256 páginas), da escritora e ensaísta argentina Reina Roffé. O título pode ser traduzido assim: “Os Truques da Raposa” ou, mais coloquialmente, “As Manhas da Raposa”. Trata-se de uma biografia crítica e não autorizada.

Na introdução, Reina Roffé escreve: “Um artista não deveria ‘contar sua vida tal como a viveu [ou tem vivido], e sim vivê-la tal como a contará’, anotou em 1892 André Gide em seus ‘Diários’. ‘Dito de outra maneira: que seu retrato, pois isso é o que será sua vida, se identifique com o retrato ideal que aspira; e, mais simplesmente, que seja como quer ser’”.

Na sua literatura, reescrevendo a história, Juan Rulfo “contou histórias de seus antepassados, de sua infância e juventude, da região onde transcorrem seus relatos, do campesinato de Jalisco e do como e do porquê de uma obra pronta e de outra em eterna gestação ser apresentada como ilusão de sua atividade criadora”.

Como Juan Rulfo, o ficcionista, lidava com a verdade? “A verdade não lhe importava muito.” Mas contar bem os fatos, ainda que romanceando-os, talvez para torná-los mais compreensíveis (ilustrativos?) e, quiçá, eternos, era relevante. A ficção ilumina a história, mesmo quando a distorce para torná-la mais expressiva.

Juan Rulfo: um dos mais importantes escritores mexicanos | Foto: Reprodução

Juan Rulfo criou, no dizer de sua biógrafa, uma “autobiografia oblíqua”. Ele tinha o hábito de “plantar pistas falsas”, ainda que, no geral, não soterrasse a verdade. A sua. Ou como ele a via. Talvez, quem sabe seguindo Platão, ele retirasse a roupa da realidade para mostrar sua complexidade.

O autor de “Pedro Páramo” era dado, ao falar de si, a mentir. “Mentir era para Rulfo — em quem ficção e verdade se mesclam, convivem naturalmente — uma forma de preservar-se, mas também de opor resistência à realidade gris [cinza, acinzentada] e desumana”, assinala Reina Roffé. Mas era “sincero — nunca negou suas mentiras”. Chegou a dizer: “Eu, quando falo, invento”. E quem, narrador ou não, faz diferente, em certa ou larga medida?

O escritor negava a “confluência de elementos autobiográficos em sua obra”. Pelo contrário, seus biógrafos notam que sua vida e a de seus parentes são vitais para a formatação de suas histórias. Porém, talvez o autor de “Chão em Fogo” estivesse dizendo que, ao recriar as histórias familiares, reinventando-as — dando-lhea, de alguma maneira, um caráter épico, uma cor mais visceral —, elas haviam se tornado não “biografias”, e sim literaturas. Afinal, a literatura é outra realidade — seu contraponto literário.

Ao se referir aos escritores e suas narrativas, Juan Rulfo disse: “Somos mentirosos; todo escritor que cria é um mentiroso, a literatura é mentira, mas dessa mentira sai uma recriação da realidade: recriar a realidade é, pois, um dos princípios fundamentais da criação”.

Reina Roffé sublinha que Juan Rulfo mentiu, inclusive, sobre sua data de nascimento, e também a respeito do local. Na verdade, não nasceu em 1918, como dizia, e sim em 1917. O lugar de nascimento é a cidade de Sayula, no Estado de Jalisco. Mas o escritor inventou outros locais — tornando sua vida uma espécie de invenção, por assim dizer, literária. Hora ele dizia que havia nascido em Apulco, hora em São Gabriel.

O mexicano Antonio Alatorre, um de seus descobridores literários, propôs “não chamar de mentiras as mentiras de Rulfo”. Elas deveriam ser chamadas, com mais acerto, de “metamorfoses da verdade”.

Depois, Reina Roffé explica a obra de Juan Rulfo cuidadosamente, mostrando como sua imaginação poderosa, “mentiras” à parte, aliada à sua contenção milimétrica, recriou parte da história de sua família — e de outras famílias — para recontar, pela literatura, a história do México. A literatura, nas mãos de Juan Rulfo, é uma rival da história. Rival ou complemento, ou ainda, uma alternativa — quase uma contra-história. Talvez, seguindo sugestão do crítico literário George Steiner (não a respeito do mexicano), se possa sugerir que Juan Rulfo era uma espécie de “historiador do inconsciente” — quem sabe, coletivo.

A obra curta e seminal do Graciliano Ramos do México (país tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos, no dizer de um mexicano) teve sorte no Brasil, onde encontrou tradutores competentes, que souberam captar tanto sua secura quanto os segredos de sua linguagem enviesada. Eliane Zagury, a pioneira, traduziu tanto o romance “Pedro Páramo” quanto os contos de “O Planalto em Chamas”.

Em seguida, Eric Nepomuceno recriou em português a prosa do homem de Jalisco, com traduções precisas de “Pedro Páramo” e “Chão em Chamas” (optou por não usar “planalto”, preferindo “chão”. O título em espanhol é “El Llano en Llamas”. Llano quer dizer plano, liso, planície). Eric Nepomuceno é citado por Reina Roffé.

Há outro livro muito bom sobre o prosador mexicano: “Noticias Sobre Juan Rulfo — La Biografía” (Editorial RM, 412 páginas), de Alberto Vital. De sua apresentação, retiro um trecho, de autoria de Víctor Jiménez: “Pedro Páramo” é “um livro no qual o conhecimento e o presente de uma boa leitura se dão as mãos”.

Confira a primeira parte da lista