Aldair Nery, educador e poeta

30 novembro 2022 às 15h36

COMPARTILHAR
Aldair Nery, um nome. Na singularidade da sua obra encontramos um ser visceralmente preocupado com o social, machucado pela realidade, porém muito embasado na fé, uma fé toda peculiar, lembrando o templo e seu silêncio invocando prece, ser romântico, voltado ao lar, ao trabalho edificante, eterno apaixonado pela esposa, os filhos, mola propulsora de inusitadas mudanças, clareando os passos dos que, por ordem de Deus, caminharam com ele pela mesma estrada.
Aldair Nery dos Santos nasceu em Goiatuba, Estado de Goiás a 24 de julho de 1936, filho de Cândido Alexandre dos Santos, humilde carpinteiro natural de Goaituba e Diomedes Nery dos Santos, prendas domésticas, natural de Catalão.
Além do primogênito Aldair, o humilde casal teve ainda mais dois filhos: Jurandir, hoje residente em são Luiz dos Montes Belos e Jair, residente em Cocalinho no Mato Grosso.
Aldair Nery dos Santos fez seus estudos iniciais na “Cidade dos Pomares”, Morrinhos, para ali encaminhado em 1947 pelo Padre Gui Barreto, quando, então, passou a ser coroinha-chefe da Igreja de Nossa Senhora do Carmo dos padres Estigmatinos.
Seguiu depois para Aparecida, Estado de são Paulo, onde ingressou no Seminário Santo Afonso sob a orientação dos abnegados e benevolentes padres redentoristas.
Cidade mística, banhada pelo Paraíba, Aparecida nasceu da fé, desde a descoberta da imagem da santa por três pescadores pobres em 1717 e, num crescente de milagres e de romeiros, tornou-se em 31 de maio de 1931 “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”, padroeira do Brasil, declarada pelo então Papa pio XI.
O santuário de Aparecida foi destacado entre os demais do Brasil para receber especial atenção. Os Bispos de são Paulo e Rio de Janeiro organizaram as primeiras romarias episcopais do país, levando os fiéis de suas dioceses para orar em Aparecida que foi coroada com ouro e diamantes em 08 de Setembro de 1904 por aglutinar a “Maior concentração religiosa do povo, acontecida no Brasil após a proclamação da República”.
A importação maciça de missionários europeus representou um passo decisivo para a reação da igreja, empenhada no final do século XIX na resistência do controle dos Estados e na promoção de reformas internas, com a recuperação da disciplina, educação e estilo devocional canônicos.
Feita a separação entre a Igreja e o Estado, na República, o episcopado assumiu o controle dos santuários e foi buscar, na Europa, ordens religiosas que se encarregassem de sua administração, razão pela qual os Padres Redentoristas alemães assumiram o pesado encargo a partir de 1894, tanto no Vice-Provincialado em Aparecida, como em Campinas e Trindade, mais tarde, a partir de 1947 no Nordeste.
No Seminário Santo Afonso, sob a coordenação dos Padres Redentoristas, Aldair Nery fez seus estudos, centrados na doutrina católica, terminando ali o curso de Filosofia, sem, contudo, fazer os votos perpétuos, pois como veremos o destino lhe reservaria outros caminhos ligados aos laços de amor. Ali no seminário, teve por colegas, dentre outros, o goiano Natan Ludovico Lacerda que seguiu carreira eclesiástica.
Sentindo necessidade de uma visita aos pais, Aldair Nery veio ter a Goiás onde, penalizado com a situação de dificuldades vivida por estes, decidiu então deixar o noviciado para poder, assim, servir de arrimo aos pais livrando-os das dificuldades então vividas.
Desvinculado do Seminário, seguiu com os pais para são Paulo onde residiram na Capital, ocasião em que Aldair Nery trabalhou como professor particular de Latim, Francês e português, ostentado sozinho a família por mais de três anos, sem vínculo empregatício. Mais tarde, trabalhou como revisor do Jornal Folha de são Paulo.
Cansado do burburinho da cidade grande, resolveu retornar à Goiás com a família, residindo em Senador Canedo, trabalhando então na “Escola Emanuel” de Goiânia. Em permanente contato com os Padres Redentoristas de Trindade, por estes, foi convidado a trabalhar no então recém-fundado Ginásio Divino Pai Eterno, administrado pelo Padre João Cardoso de Souza.
Educador nato, Aldair Nery utilizava técnicas modernas para a época lecionando Latim, Francês, Filosofia e português, no acúmulo ainda do cargo de Vice-Diretor. Foi professor ainda da Escola anexa, “Escola Normal são José”, ministrando aulas para moças, adolescentes, que, muitas impressionadas com sua beleza, passavam a cortejá-lo.
Dentre essas, uma em especial marcou a atenção do jovem mestre: Ana Maria Camilo, mocinha de incomum encanto que passaria a ser, dai por diante, a eterna inspiradora da alma do poeta Aldair.
Iniciaram então o namoro dentro dos rígidos preceitos da época, bafejados pelo romantismo dos anos 60, até a concretização dos ideais que se deu como matrimônio realizado em 23 de dezembro de 1961, sendo a cerimônia civil realizada na residência da noiva perante o Juiz Dr. Alonso Inácio da Silva, testemunhada por Joaquim Amâncio Filho e esposa, naturais de Uberlândia e Dr. Sizenando da Silva e Campos e Esposa, residentes em Trindade.
A cerimônia religiosa foi oficiada no mesmo dia na matriz do Divino Pai Eterno pelo Padre Menezes Pedro, testemunhada por Abadio Gonçalves do Couto e Rita Rodrigues do Couto.
Natural de Inhumas, Ana Maria Camilo é filha de João Carlos Camilo, natural de Minas Gerais e Benedita Rodrigues Camilo, natural de são Paulo. ‘Normalista pela Escola Normal são José de Trindade, Ana Maria Camilo exerceu o magistério por curto período, sendo que as obrigações maternais impediram a continuidade dos trabalhos fora do lar. Do consórcio de Aldair/ Ana Maria nasceram os filhos Júlio César, Ancomárcio, Neriana e Juliana, todos hoje casados e com sucessão.
Com desejo de aprimorar seus conhecimentos e obtenção de mais uma profissão com maior rentabilidade, Aldair Nery ingressou no curso de Direito na famosa “Faculdade da Rua 20” onde colou grau em 1966.
Nas lides do magistério, foi nomeado em 20 de abril de 1964, professor do “Ginásio Padre Pelágio” pelo Decreto n°111/64, nomeação do então Secretário de Educação Padre Rui Rodrigues da Silva.
Em paralelo, foi contratado pela Prefeitura Municipal de Trindade em 01 de fevereiro de 1964, pelo Decreto Lei n°005, assessorando o então Prefeito José Pinto de Magalhães (1913-1980) e ainda em 16 de setembro de 1966, nas lides educacionais, foi colocado à disposição da “Irradiação Espírita Cristã”, em Goiânia.
Em todos os encargos exercidos ao longo de sua existência, sempre pautou pela responsabilidade, pela descrição, acreditando no potencial das pessoas.
Como educador Aldair Nery foi ainda fundador do “Colégio Comercial de Trindade”, estabelecimento de expressão Federal que muito realizou no campo educacional nesta cidade. Ah, no vetusto casarão da antiga Casa Rural, o colégio funcionou por dilatados anos tendo por funcionários José Soares de Castro (natural de Paraguá onde nasceu em 29/02/1933, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Goiás, empossado em 28/02/1968), Waldivino Chaves Guimarães (natural de Trindade onde nasceu em 26/08/1941, técnico de Contabilidade pelo Colégio Comercial, bacharel em Direito, empossado em 28/02/1968). Mais tarde, o colégio foi repassado ao não menos ilustre professor Helon Gomide. O colégio Comercial teve por mestres ainda Arleno Mendanha, José dos Reis Mendes, Esmeraldo Monteiro.
Aldair Nery foi sempre um homem de muitas atividades, realizando diversos encargos paralelos, em todos, eficiente e responsável. Foi assessor jurídico dos Padres Redentoristas de Campinas, e em 1971 transferiu residência para Brasília onde trabalhou na extinta Sudeco, ali permanecendo pelo curto espaço de um ano.
Em vista das diversas dificuldades financeiras, retornou à Campinas onde, a convite, passou a assessorar o então Secretário de Educação Dr. Hélio Mauro Umbelino Lobo, ocasião em que, por questões de desagrado no Colégio Pedro Gomes foi designado para ser interventor ali permanecendo por 04 anos, utilizando de modernos técnicos administrativos no tradicional Colégio, fundado pelo arrojo do Secretário de Educação e Saúde e nosso particular amigo, ínclito Dr. Hélio Seixo de Britto.
Em paralelo, assessorou ainda o então Prefeito Municipal de Trindade Waldivino Chaves Guimarães em sua primeira gestão (1973 – 1976), antigo colega do Colégio Comercial.
Em seguida, assessorou o Prefeito Municipal de Goiânia Francisco de Freitas Castro (21-0375 a 17-05-78) ocasião ainda que, para o seu pesar, exonerou-se do cargo de professor, profissão que abraçara com amor e dedicação pelo permanente contato com a juventude.
Daí em diante passou a exercer funções de advogado (de 1975 a 1988), assessorando juridicamente as prefeituras de Trindade, Minaçu, Firminópolis e Jandaia. A partir de 1979 passou também a advogar na câmara de Goiânia, e nunca sequer realizou um desquite, pautando sempre pela união da família, para ele, elo indissolúvel.
Foi assessor ainda do Prefeito Municipal de Trindade, Waldivino Chaves Guimarães em sua segunda gestão (1983-1988), auxiliando-o a realizar profícuo trabalho em prol da melhoria de Trindade.
Nas lides intelectuais, Aldair Nery foi, sem sombra de dúvidas, um valoroso cultor das letras. Foi autor de dezenas de discursos como Padrinho de formatura de estudantes trindadenses, autor da recepção do povo trindadense aos padres Guí Barreto e Natan Ludovico Lacerda, realizada em Trindade em 07 de junho e 1964, conferindo-lhes o título de “Sacerdotes do Divino Pai Eterno”.
No campo histórico, iniciou as pesquisas sobre a história de Trindade, chegando a coletar dados importantes em entrevistas com os pioneiros da cidade, dentre estes, a professora Maria Brandão, cognominada Maria da Cruz, precursora do ensino local.
O trabalho, porém, com o seu precoce desaparecimento, ficou inédito e incompleto. Sua obra poética, toda ela, de forma epistolar, é um verdadeiro manancial de ternura para com a esposa, os filhos, os amigos. De alma apaixonada escreveu muito e com intensa sensibilidade, aproveitando os momentos de inspiração escrevendo em papel timbrado, folhas esparsas, lenço de bar, em todos, registrando sua permanente lição de amor.
Seu poema de melhor qualidade “Nosso Arraial” é uma verdadeira canção de amor, de devotamento, comparando a esposa a em pé de arroz, produzindo sob as intempéries do tempo, os grãos, doravante, novos pés, novos grãos, continuamente um poema belíssimo, inesquecível pela riqueza de imagens reais, de lirismo e sensibilidade.
De resto, são cartões, poemas, sonetos em datas especiais, impressões de amor, um eterno namorado da mulher amada, aquela que, por desígnios de Deus, estaria a seu lado na travessa da vida.
Como cristão crente no Pai Celestial, deixou excertos belíssimos, hinos de devoção: “Já não sabe mais onde Deus quer levar-te. Pouco importa: Ele te jogou no impossível para te fazer sair dele de uma maneira que não poderás imaginar”. Quanta verdade em tão poucos linhas!
Assim escreveu Aldair Nery: “O sopro do Espírito Santo coloca o cristão numa aventura perpétua. Mas só essa aventura dá a verdadeira segurança…”. E essa segurança sabemos que após o dia 21 de dezembro de 1988, numa viagem diferente, para outros planos, Aldair conquistou.
Tudo Deus, reverte em bênçãos. E devemos abençoar a tudo, até mesmo o fatídico instante de partida que foi mola propulsora para a salvação. Aldair viveu pouco, mas viveu em êxtase, sabendo existir em luminoso caminho…”. Já não podes mais. Está bem. Entrega-te à vontade divina…” assim escreveu ele um dia.
Aldair Nery: um testemunho de amor para os dias atuais, um exemplo a ser seguido por nós que ainda trilhamos essas difíceis estradas do plano terrestre. Seu exemplo é, e nunca deixará de ser, uma luz muito forte a nos guiar os passos.
…”A gente anda bem longe, depois de estar cansado…” escreveu Aldair. “Cada um parte do que é e do que já adquiriu para si…” e finalizamos que este homem iluminado, hoje, ao lado de Deus sabe…” ir no passo de Deus não corres mais depressa do que Deus…”.
Testemunho de amor de um ser especial – todo ele, feito de amor: Aldair Nery dos Santos.
O dia em que o professor Aldair Nery foi preso
José Luiz Bittencourt Filho
Uma passagem que ninguém conhece da vida de Aldair Nery mostra bem quem ele foi. É uma estória inusitada e engraçada: a madrugada que passou na prisão do na época célebre 5º Distrito, ou seja, a conhecidíssima delegacia policial de Campinas, situado em uma esquina próxima à Praça Joaquim Lúcio. Calma. O caso não representa desdouro nenhum para o professor Nery, como o conhecíamos na época em foi diretor do Colégio Estadual Prof. Pedro Gomes, o afamado Liceu de Campinas ou, como os próprios alunos gostavam de chamar, o Pedrão. Ao contrário.
Nery foi um diretor diferenciado. Naquele tempo, havia muita pompa e circunstância em torno do cargo de diretor de colégio estadual. Quem o ocupava era autoridade reconhecida socialmente. Educadores de peso e preparo passaram pelo comando do Pedro Gomes: dona Ligia Rebelo e o professor Paulo Marcelino, por exemplo, luminares que conviviam com governadores de Estado. Um dia, chegou a vez de Aldair Nery, uma surpresa pelo estilo suave, conciliador, que sempre estava no pátio, na hora do recreio, para papear nas rodinhas com os seus alunos.
Pois então eis que chega um dia em que Nery, morando alguns metros abaixo da Praça Joaquim Lúcio, na antiga rua Couto Magalhães (depois engolida pelo prolongamento da avenida 24 de Outubro), deparou-se na esquina com um grupo de estudantes do Pedro Gomes. Já não era tão cedo, talvez mais de 23 horas. Nery foi para o meio da rapaziada para prosear. Com a conversa animada, os minutos foram se escoando e ninguém viu. Lá pelas 2 horas da madrugada, uma viatura da Polícia Civil faz uma abordagem. Os estudantes, sem documentos. Os policiais engrossam, Nery se identifica e se responsabiliza pela turma. Tudo bem, respondem os agentes, “o senhor está liberado, mas os outros vão para o Distrito”.
Detenção arbitrária e inaceitável. Nery não concorda. Impasse: a equipe policial não abre mão de prender os estudantes. “Então, eu vou junto”, posiciona-se o diretor. Mais um pouco de discussão e talvez algumas cabeças quentes, seguem todos para a delegacia. Lá, são simplesmente colocados atrás das grades. Nery firme, acompanha solidário os seus alunos e é trancafiado junto com eles.
De alguma forma, apesar do avançado da noite, a notícia vaza e vai parar na casa de outro professor, este José Luiz Bittencourt, meu pai, morador da Rua Couto Magalhães, quase em frente à casa de Aldair Nery. Professor Bittencourt já havia sido vereador, deputado e secretário da Educação, além da banca de advocacia que manteve na Praça Joaquim Lúcio. Figura conhecidíssima da vizinhança, cujas demandas sempre desaguavam na sua sala de estar atrás de solução e ajuda. Não me lembro de quem bateu na porta. Mas a família toda se levantou. Rapidamente, ele telefonou para o seu genro, Henrique Barbacena Neto, promotor de Justiça, que já havia passado pelo 5º Distrito como delegado titular. Henrique imediatamente pega o carro, busca o sogro em casa e vão os dois para a delegacia. Um comissário de plantão os recebe com gentileza e os leva até o corredor das celas, talvez para deixar claro que estavam todos ilesos.
Lá estavam todos: os alunos e o professor Nery conversando alegre e tranquilamente, como se estivessem na mesma esquina onde tudo começou. Sim, eram altas horas, mas não haviam notado. Nery era advogado e sabia que nenhum crime fora cometido. Como educador, percebeu que seria melhor aceitar o erro dos policiais e evitar um confronto de consequências arriscadas. “Pois é, dr. Bittencourt, estamos aqui”, disse, altivo, com a mão no ombro de um dos estudantes.
Quase sem necessidade de qualquer argumentação, o comissário abriu a cela e liberou o grupo, não sem um ligeiro pito sobre a obrigação de andar pelas ruas carregando documentos pessoais. Garantiu espontaneamente que nada ficaria registrado. Os meninos teriam sido levados para o posto policial por proteção, para serem entregues aos pais. Assunto encerrado.
Para todos, aquela madrugada ficaria na lembrança como uma aventura inesperada. Com o dia já se insinuando, voltam para as suas casas. Conta-se que, depois, os policiais teriam sido admoestados pelo exagero cometido. Não se sabe se é verdade. Mas o episódio, que provavelmente está sendo revelado agora pela primeira vez, serviu como prova de caráter para Aldair Nery. Fez engrandecê-lo ainda mais como o pastor que se submeteu a um constrangimento para não abandonar o seu rebanho. O mestre igualado aos discípulos. E até por isso consagrado como mais um dos grandes nomes da coleção de diretores do Pedrão que têm um lugar na história da Educação em Goiás.
José Luiz Bittencourt Filho, jornalista, foi editor do Jornal Opção.