Quando for para a Chapada, vá de João Donato

17 julho 2023 às 18h10

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A segunda-feira começou triste para quem gosta de canções aconchegantes aos ouvidos. O Brasil perdeu o João músico que não gostava de poesia, como escreveu uma vez Caetano Veloso.
O acreano “naturalizado” carioca João Donato, um dos maiores instrumentistas do País, grande ícone da MPB e considerado mestre dos bossa-novistas, morreu aos 88 anos, em um hospital da zona sul do Rio, com um quadro de pneumonia.
Até janeiro de 2015, nunca tinha parado para ouvi-lo. E, para ouvi-lo, acelerei. Foi numa viagem solo, em férias, no caminho entre Goiânia e Alto Paraíso, que Donato me conquistou.
Eu havia adquirido uma coleção de CDs – daqueles que vinham junto a um fascículo toda semana nas bancas de revista –, todos com grandes nomes da bossa nova: entre Dick Farney, Carlos Lyra, Nara Leão etc, estava também João, não o Gilberto, conhecido, mas o Donato.
O carro, um Fiat Punto, não era tão novo, por isso contava ainda com a entrada para o dispositivo hoje já arcaico (mas que também tenho no carro atual, para “garantir”).
Depois de uma parada para conhecer um lindo mas escondido local, chamado Poço Azul, em Formosa – acho que hoje desabilitado para visitas e que se encontrava em área particular –, peguei a estrada rumo à Chapada dos Veadeiros, por mais algumas centenas de quilômetros. Queria ouvir algo que ainda não conhecia e, para isso, havia enchido um porta-CDs. E então experimentei João Donato no som.
Um disco apenas. E, a partir dali, praticamente todo o restante da viagem escutando aquele instrumental sofisticado pontuado pela voz tranquila, um tanto arrastada, que quase servia para ninar. Era uma coletânea, mas que tinha como base o álbum Quem é Quem, de 1973, aclamado como um dos cem melhores da história da música brasileira pela revista Rolling Stone – isso fui saber muitos anos depois.
João Donato compôs clássicos como A Rã, Bananeira e Amazonas. Tudo combinava muito com o ambiente naquela viagem, em meio às belezas da Chapada. Mas minha favorita virou “Ahiê”, uma canção despretensiosa em parceria com Paulo César Pinheiro, de baixo e piano marcantes, uma bateria levíssima e na qual no final, como que lendo uma carta, João Donato diz: “Sílvio, aquela poeira, hein? A poeira da cachoeira…. Não vá esquecer, hein? Aquela poeira, rapaz, no caminho da cachoeira! Isso é coisa que se faça, hein?”. E complementa mandando abraços para amigos (Celso, Beto, Capitão, Pai Zé d’Angola, Carlinhos, Grapete).
Mas de onde vem isso de que João Donato não gostava de música? Foi um “segredo” revelado na canção Outro Retrato, do ótimo álbum Estrangeiro, lançado em 1989 por Caetano Veloso – parceiro dele em A Rã. Nela, há a repetição dos versos abaixo:
Minha música vem da
Música da poesia de um poeta João que
Não gosta de música
Minha poesia vem
Da poesia da música de um João músico que
Não gosta de poesia
Caetano faz, na letra, homenagem a dois Joões que lhe foram fontes de inspiração para seu trabalho como artista: João Cabral de Melo Neto, que confessava não gostar de ouvir música, apesar de ter uma poesia modernista muito rítmica; e o próprio Donato, que preferia música instrumental – portanto, sem letras – e só passou a cantar em seus discos exatamente no álbum Quem é Quem.
Fui para a Chapada sozinho e voltei com João Donato. Então a dica de ouro é: leve João Donato para lá. Ou para qualquer lugar. Seja em CD, pen drive, Spotify ou equivalente, a música dele sempre deve ter espaço em qualquer porta-malas de viajante.
Ah, claro: se for ficar em casa, ouça também.