Carta aberta para uma pessoa que vive com HIV
02 dezembro 2025 às 19h38

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Entrar no mês de dezembro, há dois anos, tem sido sempre um aprendizado, um período de reflexão para mim. Não que isso seja diferente nos outros meses, mas é porque esse tem um significado de resistência. Inclusive, de pessoas que lutaram – e morreram – para que eu pudesse usufruir de um tratamento que me mantém vivo e que eleva a minha expectativa de vida, cenário diferente na década de 80, quando o mundo vivia a chamada “Epidemia da Aids”.
Mas tive um baque, não posso negar. Eu senti uma alteração no meu corpo. Procurei um médico e, em meio à bateria de exames, ele me perguntou se me importava de fazer um teste de HIV. Não neguei e fiz. Ao pegar o resultado, recebi uma carta que deveria refazê-lo. Não entendi bem o porquê, mas refiz. Esse segundo resultado me tirou o chão. Descobri-me infectado com o HIV. Como uma pessoa estudada poderia estar infectada nessa altura do campeonato? Nunca ouviu falar em proteção na hora da relação sexual? Sim! Eu aprendi tudo isso. Mas eu confiei. E isso já é muito difícil para mim. Quis deixar essa resistência que criei ao longo da vida tomar conta de mim e vivi aquele momento a dois com uma pessoa que não imaginasse que tivesse. De certo modo, confesso, foi um pensamento preconceituoso meu.
Não me arrependo daquele momento, mas eu me contaminei. E não poderia ficar me martirizando, mas fiquei. Eu fui a primeira pessoa a me julgar. A olhar no espelho e me senti sujo, desamparado… um verdadeiro imbecil. No dia em que me descobri como pessoa soropositiva, eu ia sair com alguns amigos. Não tinha mais clima quando abri o aplicativo do laboratório e vi o resultado. Mas mesmo assim eu fui. E ainda bem que fui…
Eu precisava externalizar aquilo com alguém de confiança. E conversei com uma pessoa nesse perfil. Afinal, como dizem os influenciadores, quem me conhece sabe do alto astral que tenho. E não estava acuado, cabisbaixo. Despejei a minha nova condição de vida ali para aquela pessoa. E ela foi mais do que um ombro amigo. Foi um caminho de esperança pela sua história que se parecia com a minha.
Aquela pessoa me mostrou que eu ia sentir medo. Normal! Mas não poderia me paralisar. Ter HIV não poderia ser tratado como fim do mundo. Ou melhor, com o fim do meu mundo. A medicina já tinha evoluído tanto. Quanta gente não deve viver normalmente sendo soropositiva por aí? Eu me perguntava. A partir daí, procurei uma forma de iniciar meu tratamento. Fui ao infectologista, que foi um anjo da minha vida. Ele foi um verdadeiro psicólogo. Ele me acolheu naquele momento de dor e incerteza com os seus relatos fortes que vivenciou durante a epidemia da Aids, aquela que citei no início do texto.
Foi ele quem me explicou que há diferença entre estar contaminado com o HIV e ter Aids – em um primeiro momento, eu imaginava que estar com o vírus já estava automaticamente com a doença. Mas não. A quantidade de vírus no seu corpo que faz evoluir para a doença. É por isso, com o tratamento adequado, que uma pessoa consegue ter o vírus adormecido no meu corpo.
E foi isso que aconteceu comigo. O meu primeiro exame deu uma quantidade razoável de vírus por cópias por mililitro de sangue, mas, com o uso correto dos medicamentos, no exame seguinte, eu já estava indetectável. E o melhor de tudo: ter acesso aos remédios sem pagar nada. Graças ao Sistema Único de Saúde (SUS). Tanto demonizado por alguns. Eu sei que tem as suas falhas, mas funciona. No meu caso, me salva.
Enquanto jornalista já tive oportunidade de fazer uma matéria com uma pessoa que viu o vírus se espalhar por morar fora do país devido ao alto custo do medicamento. Praticamente, se definhar por dois comprimidos diários que são gratuitos neste país, às vezes, desprezado pelos seus patriotas. Isso também me fez refletir sobre o privilégio que tinha vivendo no Brasil.
Viver com o HIV tem me ensinado todos os dias. E ainda tenho muitos medos. Saber o momento e para quem falar isso ainda é desafio, principalmente quando damos – ou queremos dar – início a um relacionamento. Apesar de o mundo ter “evoluído” em alguns pontos, o preconceito moldado pela ignorância ainda é muito presente. A pessoa pode não estar pronta para querer se relacionar com uma pessoa soropositiva por imaginar que o vírus te leva à morte de imediato. O que não é verdade.
Mas o meu relato serve como um forma de alerta. O HIV pode ser silencioso, vir de quem você menos espera por diversos motivos. Não me cabe o papel de julgar: tive muito medo de fazerem isso comigo e não quero fazer com ninguém. Mas é importante fazer o tratamento correto. Em 10 anos, segundo o Boletim Epidemiologia da Infecção por HIV e Aids em Adultos, da Secretaria de Estado da Saúde (SES), uma em cada cinco pessoas com HIV no estado está fora do tratamento. Neste mesmo período, Goiás registrou 25.100 casos de HIV e Aids em adultos. Atualmente, o Estado tem atualmente 29.503 pessoas vivendo com HIV, das quais 5% não estão vinculadas ao serviço de saúde e 15% não iniciaram ou interromperam o tratamento.
Mesmo com os óbitos em queda, a gente precisa entender que é importante usar proteção e, caso esteja infectado, se cuidar. O vírus não é fim. No meu caso, me ajudou a ter coragem para dividir esse relato com vocês para que entendam que é possível seguir, amar e ser feliz sendo soropositivo.
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