Existem ações que dispensam debate técnico, jurídico ou logístico. Elas se explicam sozinhas, pelo choque. Jogar pacotes de carne de um helicóptero para pessoas em situação de vulnerabilidade, em plena véspera de Natal, em Aparecida de Goiânia, é uma dessas cenas. Não é preciso muita reflexão para entender: aquilo não foi solidariedade. Foi uma encenação grotesca da exploração da miséria.

As imagens falam por si. A aeronave sobrevoa um pasto. No chão, dezenas de pessoas correm, disputam, se atropelam para tentar pegar comida lançada do alto. Não há ordem, não há dignidade, não há cuidado. Há pressa, fome e humilhação. E, acima de tudo, há alguém filmando.

Nada ali foi inevitável. Nada foi acidente. Tudo foi escolha.

Um frigorífico não é um pequeno comerciante improvisando ajuda. É uma empresa estruturada, com logística, caminhões refrigerados, funcionários, galpões, contato com o poder público e pleno conhecimento de normas sanitárias e operacionais. Se quisesse doar carne de forma responsável, poderia fazer com filas organizadas, horários definidos, apoio da assistência social, cadastro prévio, distribuição em pontos fixos, acompanhamento da Polícia Militar ou da Guarda Civil, se necessário. Poderia, inclusive, entregar por meio de entidades sociais já existentes.

Mas não foi isso que escolheram.

Escolheram o helicóptero. Escolheram o impacto visual. Escolheram a cena que viraliza. Escolheram transformar a fome em corrida e a pobreza em espetáculo. Escolheram um gesto que coloca quem doa no alto, literalmente, e quem recebe embaixo, disputando restos.

A nota oficial fala em “critérios de segurança”, em “tentativa de organizar filas” e em “falta de colaboração de alguns adultos”. É uma explicação que não se sustenta. Se havia risco, a ação deveria ter sido interrompida. Se não houve controle, a dinâmica estava errada desde o início. Segurança não se improvisa depois que o erro acontece. Responsabilidade social não se testa como experimento.

O que se viu ali não foi falta de colaboração. Foi previsibilidade ignorada.

Porque qualquer pessoa minimamente decente saberia que jogar comida de um helicóptero para uma população vulnerável, em um contexto de fome e exclusão, produziria exatamente aquela cena. Não foi surpresa. Foi consequência direta do método escolhido.

Há algo ainda mais perverso nisso tudo: a naturalização da humilhação. A ideia de que, porque são pobres, essas pessoas devem aceitar qualquer forma de ajuda, em qualquer condição, mesmo que isso signifique correr atrás de comida lançada do céu, sob olhares e câmeras. Como se dignidade fosse um detalhe. Como se fome anulasse direitos.

No Natal, essa perversidade se acentua. Porque o discurso é de amor ao próximo, mas o gesto é de poder. Não é sobre aliviar a fome, é sobre mostrar quem pode dar. Não é sobre resolver um problema, é sobre produzir uma imagem forte o suficiente para render curtidas, compartilhamentos e aplausos fáceis.

Solidariedade que precisa de espetáculo não é solidariedade. É autopromoção. É marketing embalado em sofrimento alheio.

Doar não autoriza constranger. Ajudar não dá licença para desumanizar. Nenhuma ação social é legítima quando expõe quem recebe como figurante de um show de ego. Pobre não é cenário, fome não é conteúdo, miséria não é estratégia de comunicação.

Talvez o que falte dizer, e dizer alto, seja isso: jogar carne de um helicóptero não é gesto de bondade. É símbolo de uma sociedade que prefere olhar de cima, filmar de longe e chamar de solidariedade aquilo que, no fundo, é apenas mais uma forma de ignorar a dignidade humana.

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