Ao se antecipar para impedir anistia ou indulto à direita, Judiciário fere os pesos e contrapesos

12 setembro 2025 às 10h36

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A condenação do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL) pela mais alta Corte do país trouxe não apenas um impacto jurídico, mas também abriu espaço para declarações que extrapolam o limite do que deveria ser a função do poder Judiciário. Em meio ao julgamento, foi dado um recado explícito aos pré-candidatos à Presidência em 2026: segundo a fala, não caberá indulto presidencial para o condenado. Além disso, dirigindo-se ao Congresso Nacional, afirmou-se que também não haverá possibilidade de anistia por parte dos parlamentares.
Essa declaração merece reflexão profunda. Ao antecipar o que pode ou não ocorrer no campo político e legislativo, a fala coloca em xeque o equilíbrio entre os poderes. O indulto presidencial é prerrogativa constitucional do chefe do Executivo. Já a anistia, quando aprovada, é fruto do debate democrático no Congresso Nacional, instituição composta por representantes escolhidos pelo povo. Limitar de antemão essas possibilidades significa ultrapassar o papel de julgar e invadir competências alheias.
O problema não está apenas no conteúdo, mas no simbolismo. Quando a Justiça impõe sua palavra como absoluta, o país se afasta da lógica de pesos e contrapesos que deveria nortear a democracia. Um Judiciário forte é essencial, mas jamais pode se sobrepor à vontade soberana expressa nas urnas e aos poderes constituídos que dela derivam.
A fala também transmite uma mensagem perigosa: a ideia de que, independentemente do resultado das próximas eleições, determinadas decisões judiciais estariam blindadas de qualquer ato político. Isso equivale a negar a própria essência da separação de poderes, pois tanto o indulto quanto a anistia fazem parte da dinâmica republicana.
Não se trata aqui de defender impunidade, mas de reconhecer que a Constituição distribuiu atribuições de maneira clara. Ao presidente, cabe o poder de conceder indulto. Ao Congresso, cabe legislar, inclusive sobre anistia. Ao Judiciário, cabe julgar. O desequilíbrio surge quando um desses atores tenta impor sua autoridade sobre os demais, rompendo o pacto constitucional.
É importante lembrar que a história política brasileira já conheceu diferentes momentos de anistia. Nos anos 2000, por exemplo, quando lideranças da esquerda enfrentaram acusações e condenações, o mesmo sistema político buscou caminhos de perdão ou revisão, culminando até mesmo na volta de figuras antes afastadas da vida pública. O caso mais emblemático foi o de Luiz Inácio Lula da Silva, que, após cumprir pena e ter sua inelegibilidade revertida, pôde retornar ao cenário eleitoral e acabou eleito novamente presidente.
É preciso recordar que a esquerda brasileira, e em especial o Partido dos Trabalhadores (PT), já defendeu anistias em outras ocasiões. Em 1979, a Lei da Anistia foi celebrada por todo o campo progressista como um marco de reconciliação nacional, permitindo que exilados políticos retornassem ao Brasil e que crimes cometidos durante o regime militar fossem, em certa medida, perdoados. Mais recentemente, durante os governos petistas, não foram raros os apelos por “virar a página” em relação a escândalos de corrupção, com lideranças defendendo tratamento mais brando a aliados.

A foto usada neste artigo foi tirada por Iugo Koyama, em abril de 1979, e mostra o então sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva, no ABC Paulista, distribuindo panfletos pró-anistia durante o último período da ditadura militar.
O movimento, iniciado em 1975 por organizações civis, resultou na Lei da Anistia, sancionada pelo presidente João Figueiredo, que concedeu perdão a quase cinco mil pessoas punidas por atos políticos. Entre os beneficiados estavam sindicalistas e lideranças de esquerda perseguidos pelo regime, como o próprio Lula, preso em 1980 por liderar uma greve.
Se no passado houve espaço para reinterpretação jurídica e até anistia de fato, por que agora se quer blindar um grupo específico, associado à direita, da mesma possibilidade? A seletividade corrói a democracia e gera a sensação de que o Estado não atua de forma equilibrada, mas de acordo com a ideologia de quem ocupa temporariamente a toga ou a caneta.
Além disso, ao Congresso Nacional cabe a função de refletir os anseios sociais. Se amanhã a maioria dos parlamentares entender que a pacificação do país passa por uma anistia ampla, isso deve ser respeitado como fruto da soberania popular. Negar essa possibilidade antes mesmo que o debate ocorra é desconsiderar a essência da representação democrática.
A fala em questão, portanto, não apenas desafia a Constituição, mas também estabelece um precedente perigoso: o de um Judiciário que se antecipa, interfere e impõe barreiras à atuação legítima dos demais poderes. Isso alimenta a percepção de um ativismo judicial que pode minar a confiança da população nas instituições.
Em uma democracia saudável, os poderes devem coexistir em harmonia, com respeito às suas prerrogativas. Quando um se coloca acima dos demais, o resultado é a erosão da liberdade e do pacto social que sustenta a República. O Brasil precisa de equilíbrio, de respeito às regras do jogo e de coerência histórica. Se no passado houve anistia para a esquerda, nada justifica interditar de antemão a possibilidade de anistia para a direita. A justiça, para ser justa, deve ser igual para todos.
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