Migrações: o Cerrado, Nova York, Amsterdã; escritores, pássaros, borboletas…

27 janeiro 2025 às 19h14

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Duas aves pousam no telhado em frente à janela do meu escritório em Amsterdã. Gaivotas pardas, da espécie Larus Canus, com plumagem cinza e branca — uma pena solta dessa espécie me faz companhia enquanto escrevo. Nas árvores de galhos secos na esquina, os periquitos-de-colar anunciam o pôr do sol com gritos estridentes. Na manhã seguinte, a mesma cerimônia: saúdam com entusiasmo a alvorada. Eu poderia aposentar o relógio. Quem precisa de ponteiros quando se tem seus gritos? É uma característica do inverno, vale notar. Há poucos meses, não estavam aqui; agora, sacodem os galhos com seu canto e movimento.
De onde vieram os periquitos-de-colar? As gaivotas pardas, que reviravam os sacos de lixo no verão, inimigas número um dos garis, migraram para regiões de clima mais ameno, segundo a Internet. Talvez tenham ido para o mar Cáspio ou o Mediterrâneo. Das centenas que via, hoje só vejo uma meia dúzia. A mesma fonte afirma que os periquitos-de-colar não migram. Eles não enfrentam mais uma jornada longa em bando. Teriam vindo para Amsterdã de avião?
Eu imigrei em um voo diferente, uma sucessão de voos que começou há quase vinte anos.
Nova York
Nova York foi onde aprendi a converter unidades — ou pelo menos tentei. Em julho de 2005, no táxi que me levava do aeroporto para o bairro do Queens, o locutor da rádio lamentava: “São 8h30 da manhã e já faz 100 graus”. “100 graus?”, perguntei ao taxista egípcio de meia idade, que recusou minha ajuda ao depositar a bagagem no porta-malas. “Fahrenheit”, ele disse pelo retrovisor. “Isso significa um calor dos infernos.”
Nos próximos dias eu aprenderia que as unidades de medida do Brasil não mais me serviam. Um quilo não era um quilo. Um litro não era um litro. Multiplicando um quilômetro por 1,6, eu teria a medida aproximada de uma milha. Cem graus é calor para mais de metro, mesmo para quem cresceu em Goiânia—ou melhor, é calor para mais de milha.
Outra lição de Nova York: preciso de silêncio para pensar com clareza. Na agência de publicidade, o barulho ininterrupto do telefone era como uma broca no ouvido. Sempre que possível, eu fugia para os parques, onde observava os cães, os turistas e especialmente os pombos, que nunca perdiam o meu almoço de vista.
Certa feita, um colega de trabalho americano, aficionado por trivia, compartilhou dados impressionantes: os pombos têm uma visão aguçada, podendo ver objetos a distâncias de até 0,9 milhas. Como uma cria do Cerrado, precisei calcular de cabeça: cerca de 1.300 metros. Além disso, os pombos são navegadores natos, utilizando o sol, a lua e até o campo magnético da Terra para se orientar. Já eu, não sei mais voltar para casa sem o Waze. E o que é casa para mim hoje?
Arara em Amsterdã?
Ler sobre as aves do Cerrado é sofrer pelas aves do Cerrado. Ou de maneira menos melodramática: ao me deparar com descrições e fotos de seriemas, tucanos, papagaios, caburés, garças, emas e jaós, sinto uma saudade esquisita; sou assombrada por visões de um passado de mais de vinte anos que se recusa a ser esquecido. Recentemente, ao sair de um supermercado no bairro do Jordaan, em Amsterdã, vi o que pensei ser uma arara-canindé na varanda de um apartamento. Senti uma pontada nas costelas, uma mistura de assombro e indignação: quem teria uma arara-canindé em Amsterdã? Ao olhar novamente, percebi que era apenas uma camisa da seleção sueca de futebol pendurada em um cabide.

Escritores
Acho difícil escrever sobre o Cerrado. Prefiro escrever sobre escritores.
Chimamanda Ngozi Adichie. Jhumpa Lahiri. Roberto Bolaño. Samuel Beckett. Aleksandar Hermon. James Joyce. Yiyun Lin. Milton Hatoum. Cecília Meireles. Alguns de meus escritores favoritos foram, em algum momento, imigrantes. Clarice Lispector, que passou quinze anos fora do Brasil. Vladimir Nabokov, que viveu na Rússia, Alemanha, França e, por fim, nos Estados Unidos, e que era obcecado por borboletas. “Conheci poucas coisas” — Nabokov afirma em “Speak, Memory” — “em termos de emoção ou apetite, ambição ou realização, capazes de superar em riqueza e força o entusiasmo da exploração entomológica” (tradução minha). Para ele, um dos aspectos favoritos de capturar borboletas era o silêncio que a atividade exigia. Consigo entender o apreço pelo silêncio, mas de minha parte, prefiro não capturar nem uma espécie nem outra.
Aves negras de notas puras
Por que bandas andam — voam? — os blackbirds? Seu canto melodioso enchia os céus de Amsterdã em abril, e seu assobio podia ser ouvido até tarde da noite, aves negras de notas puras. Antes de aprender a identificá-los, perguntei ao meu marido, com a inocência de uma imigrante de primeira viagem, se o barulho suave seria o som de uma flauta ou o resultado do vento passando pelas chaminés do bairro. “Como canta bonito essa cidade”, lembro de pensar.
Igualmente presentes na primavera passada, as magpies eram um espetáculo. Um pulinho aqui, outro ali, sempre em duplas, aves sabidas, parentes dos corvos, com asas azul cobalto e cabeça preta. Li que são uma de apenas seis espécies de animais capazes de se reconhecerem no espelho.
Na Holanda, eu nem sempre me reconheço no espelho. Os lábios rachados pelo frio, há meses sem batom. O cabelo volumoso contido em um coque. As mesmas roupas de lã no corpo a semana inteira — faz tanto frio que só preciso trocar a roupa de baixo e as meias. Suor, só na academia. As sobrancelhas grossas perderam o desenho que tinham.
Li na Internet que algumas aves realizam uma troca de penas, ou “muda” parcial, após a migração, ao chegarem ao destino de inverno. O cabelo, os lábios, a mesmice no traje: levando em conta as vezes em que imigrei, eu estou na minha terceira muda.

Obsessão recente
Eu nem sempre fui interessada em aves. É uma obsessão recente, estranha, obtusa: quando dei por mim, tinha me transformado em alguém que chama um pássaro pelo nome, pesquisa rotas de migração aviárias no celular, se senta em um banco úmido à beira de um canal para ouvir o passarinhar das aves, e— pasme! — compara a própria jornada à delas.
Periquitos-ricos
É difícil escrever sobre o Cerrado, mas preciso tentar. Lembro-me de uma tarde, no final da década de noventa, quando paramos para almoçar em uma churrascaria na BR-153, durante o longo trajeto entre o rancho de minha tia em Porangatu e nossa casa em Goiânia. Eu carregava no colo uma gaiola com seis periquitos-ricos, um presente de minha tia. Meu pai estacionou o carro em frente ao estabelecimento e colocou a gaiola ao lado da porta, para que não a perdêssemos de vista. Naquele dia, almocei um picolé de manga. Apesar da garantia de meu pai de que ninguém levaria a gaiola, eu não me afastei dos periquitos.
Hoje, eu gostaria de dizer àquela menina de 9 anos: abra a gaiola. E que irônico ter algo em comum com Nabokov — não a escrita deslumbrante, mas a captura de uma espécie inocente.
Chamei de “neném” o meu periquito favorito dentre os seis. Todos os dias, ao chegar da escola, neném gritava de alegria ao ouvir minha voz. Ele caminhava de um ombro meu até o outro e assistia do topo da minha cabeça às partidas de canastra e truco que aconteciam no quintal de casa. Vivi vários meses nesse estado de êxtase, acompanhada do meu amiguinho verde. Até a manhã de sábado em que não o encontrei. Passei o fim de semana procurando. Minha mãe tentou me consolar, dizendo que provavelmente ele havia fugido, preferindo a liberdade do mato ao conforto estéril do nosso quintal. Chorei a rejeição por semanas, até descobrir o seu corpo morto em um dos canos quebrados do quintal. Vítima de um gato, foi o palpite de meu pai.
Você coloca vinte anos entre uma lembrança e o presente. Três países, dois passaportes, quatro idiomas e um ritmo frenético de leitura: uma vontade quase indomável de aprender, mas ainda maior de esquecer. Você pensa que está segura na Holanda. Um outro país, um outro bioma. A questão é que em todo país há aves. Mesmo o cenário mais cosmopolita está repleto de pombos.

Impossível de resistir
A migração tem uma meta definida: os animais sabem para onde estão indo e quando voltar. Nabokov certamente sabia o que eu acabei de aprender: que algumas espécies de borboletas também migram. Pelo mesmo motivo que as aves, os peixes, os elefantes, as tartarugas e as pessoas: em busca de alimento, abrigo, reprodução ou para escapar de condições adversas.
Em um dos textos que consultei sobre migração animal, o autor afirma que a migração é um movimento “impossível de resistir”, caracterizado por uma “inibição temporária da necessidade das espécies de manter o seu território”. Eu mesma experimentei esse impulso. Até aqui, não consegui resistir ao desejo de imaginar uma outra vida longe, em um lugar onde seja possível ser diferente, ou apenas ser.
Mas vinte anos depois, posso ainda considerar temporária a minha inibição de manter o território? Brasil, Estados Unidos e atualmente a Holanda, onde eu não preciso mais pensar em milhas ou Fahrenheit. Agora, o desafio é dominar o holandês, o meu quarto idioma em quarenta anos. Quantos idiomas precisarei aprender para finalmente me sentir em casa? Quanta distância ainda preciso colocar entre mim e o Cerrado?
Levando o pôr no sol no bico
É difícil falar do Cerrado, mas para mim não há ecossistema mais bonito. Os tucanos que visitam a fazenda de nossa família em Crixás, levando o pôr do sol no bico. As araras-canindé, irritadas com a minha presença no pomar em minha última visita: eu poderia por obséquio deixá-las comer os pequis em paz? (Eu perdi uma pena solta delas, azul feito tinta guache, na mudança para a Holanda.) As garças reunidas nos galhos secos da represa, à espera da lua. Não é fácil escrever sobre o Cerrado. Há três anos venho tentando e falhando. Dos personagens da mitologia grega, um dos que mais me comove é Sísifo.