Talita Michelle de Souza: “Descobrir que seria uma mãe preta no início do doutorado me tirou do chão”

28 janeiro 2023 às 12h15

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O ano já começou com muitos debates e discussões que envolvem as mulheres e as maternidades. Na coluna Conversas de Mãe de hoje, o Jornal Opção entrevista a historiadora doutoranda da Universidade Federal de Goiás (UFG), mãe e mulher preta no puerpério, Talita Michelle de Souza. Ela é professora da rede básica, pesquisadora de História das Mulheres e Relações de Gênero e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero (Gepeg/UFG-CNPq) e do grupo de trabalho (GT) Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais da Faculdade de História (FH). Nesta conversa plural sobre maternidades e experiências, Talita expõem a riqueza de sua pesquisa e a coerência de suas reflexões, que são de uma grandeza exponencial para o mundo.
O que a vida acadêmica significa para você?
Inicialmente, começo pedindo a benção e a permissão às leitoras/ leitores com quem dialogo. Faço reverência a minha ancestralidade e aos meus passos, que vêm de muito longe. Apresento-me como mulher preta, feminista, pesquisadora, doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás. Sou filha da dona Rosa, neta de dona Ambrosina, mãe do Joaquim, professora dos anos iniciais e finais. Conciliar todas essas identidades é uma tarefa árdua, que demanda abdicar de alguns sonhos. Partindo da ótica do feminismo negro, sinalizar o meu lugar de fala é importante para possibilitar outras experiências e narrativas de mulheres pretas. Diante dessa indagação inicial, afirmo que a vida acadêmica sempre representou a possibilidade de mudança, ampliar e tocar outros horizontes que só tive contato por meio de livros e, sendo mais enfática, a vida acadêmica permitiu-me ocupar outros mundos no qual infelizmente não encontro meus pares facilmente – ou seja, a universidade é um espaço de poder, ocupado em sua maioria por homens cis brancos e no qual diversas configurações de mulheres estão ocupando e resistindo.
Como foi para você descobrir a gravidez no início do seu doutorado e imaginar ter uma carreira acadêmica e ser mãe?
Descobrir que seria mãe naquele momento tirou meu chão. Senti muito medo de não seguir com a carreira acadêmica, ainda mais por ser uma mulher preta e compreender que não posso errar. De tantas coisas que senti quando estava com o resultado do teste de gravidez, a coisa que mais passou pela minha cabeça foi comunicar o fato para minha orientadora, que me acolheu de braços abertos. Choramos juntas. Questionei a todo instante como seria possível cumprir todos os prazos que o Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) exige. Aproveito a oportunidade para alertar sobre a necessidade de ajustar o calendário acadêmico para as mães na UFG. Acaba sendo praticamente impossível entregar todas as demandas dentro do prazo e isso gera uma tensão e desgaste muito forte para as mães pesquisadoras e muitas acabam desistindo da academia em virtude das dificuldades e por falta de uma rede de apoio que as auxiliem e compartilhem os cuidados com os/as filhos/as.
O apagamento histórico sobre a maternidade preta impulsionou meu desejo de escrever sobre esse tipo de maternidade plural
Quais foram seus maiores desafios na gravidez e agora no puerpério?
A solidão da mulher preta de não conversar com outras mães pretas e compartilhar ideias, sentimentos semelhantes aos meus. Preciso aprofundar sobre esse momento, que ainda é muito delicado e que trouxe outro direcionamento para a tese de doutorado: o ingresso e a permanências de mães pretas na universidade. Ao buscar em sites referências de chá de fraldas, chá de revelação, roupas para recém-nascido/a, nomes para essa criança que viria ao mundo, não encontrei nada produzido por mães pretas. Ou seja, a romantização da maternidade não é vivenciada por elas. Todo esse apagamento histórico sobre a maternidade preta impulsionou meu desejo de escrever sobre esse tipo de maternidade plural. Sendo assim, iniciei uma produção pessoal que retrata o cotidiano, as experiências, desafios de uma mãe preta que teve início nos primeiros meses de gestação até o atual momento, no qual parto das sensibilidades, silêncios e da dor da mãe preta que atravessa questões de gênero, classe e raça. Durante o puerpério, vivenciei todos os tipos de cobranças, julgamentos, olhares de reprovação de dezenas de pessoas, inclusive de mulheres que deveriam acolher as angústias de uma mãe que está em processo e que reforçam ainda mais o peso de ser mãe. Quando o Joaquim nasceu, renasceu outra mulher, ainda mais fortalecida com essa experiência que é arrebatadora.
Você é uma pesquisadora de História, professora da rede básica e uma ativista antirracista. Como avalia as permanências e rupturas culturais do racismo estrutural na educação em nosso País, nos dias atuais?
Como pesquisadora, iniciei um diário com situações vividas durante a minha gestação, o qual intitulei Crônicas de uma Mãe Preta. Esse título parece curioso, não é mesmo? Demorei muito tempo para exorcizar por meio da escrita o que é ser mãe preta. Muitos/as leitores/as podem analisar o título dessa crônica com certa indiferença, afirmando que mãe é mãe independentemente da cor. Como historiadora, vejo a importância de enegrecer as narrativas históricas e abrir caminhos para conversas abertas e reais sobre a maternidade preta.
Afirmo com veemência que o letramento racial é muito importante para que consiga adentrar nas maternidades plurais. Ser mãe preta (ou de uma criança preta) no Brasil perpassa por questões muito íntimas, dilemas, angústias, dores que não são vivenciados na mesma intensidade de uma mãe branca. Diga-se de passagem, não estamos competindo sofrimentos, mas seguindo a brilhante Vilma Piedade, que criou o conceito de “dororidade”, algo que é sentido na experiência da mulher preta. Cheguei à maternidade, ou ela chegou até mim, de forma desesperada e eu precisava entender todas as mudanças, os riscos de ser uma mãe preta no Brasil, especialmente em Goiás. Ouso pensar que a escrevivência tem sido um lugar de cura para mim.
Enquanto mulher, preta, professora, doutoranda, amante e amiga, de todas as inquietações que eu poderia sentir a que mais afetou minha saúde mental foi a consciência de que colocaria uma criança preta no mundo. E, nessa escrevivência de uma mãe preta, o que assolou a minha alma foi pensar: como potencializar, como amar uma criança preta no qual todos os espaços são negados? Se for do sexo feminino, as mulheres pretas são preteridas, hipersexualizadas. Os homens pretos são os que mais sofrem por violência policial. Então, o meu grande desafio é cuidar, amar uma criança preta e acolher os seus sentimentos.
O que não foi questionado e que você gostaria de acrescentar a esta entrevista?
Quero tocar em algo delicado, que é pensar na pluralidade das mães. Eu me sinto honrada em ser uma mãe preta falando neste espaço, sem toda a romantização da maternidade. É necessário também ouvir e ler mães adolescentes, de diferentes faixas etárias, adultas encarceradas, mães solo (sem e com companheiro). Encerro minha fala tocando em dois pontos: o primeiro é que, quando seguro meu filho nos braços, sinto que toda a minha ancestralidade me acompanha nesse gesto; por último, quero agradecer a toda a rede de apoio que me auxilia, em especial a minha orientadora, Ana Carolina Coelho, ao grupo Gepeg, aos amigos e às amigas, a minha mãe, a minha irmã, a meu companheiro que possibilita a minha permanência na UFG. Existem amizades que sobrevivem e que fortalecem a maternidade. Também agradeço às amigas e aos amigos que encerraram o ciclo da amizade e partiram para outras experiência.
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