Violeta Chamorro, a política que democratizou e pacificou a Nicarágua

28 junho 2025 às 21h01

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Faleceu, no dia 14 deste mês, a ex-presidente da Nicarágua Violeta Barrios de Chamorro. Vou apresentá-la aos leitores mais jovens que não a conhecem, mas antes algumas palavras sobre a Nicarágua, esse infeliz Estado latino-americano.
Situada na América Central, limitada ao norte por Honduras e ao sul por Costa Rica, a Nicarágua tem superfície de apenas 130 mil quilômetros quadrados (um terço da superfície goiana) e população da ordem dos 6 milhões.
Colonizada pelos espanhóis, a Nicarágua tornou-se independente em 1821, mas sempre teve uma história política atribulada (salvo pequeno período no século XX). Esteve sob ocupação “branca” dos Estados Unidos desde o final do século XIX até 1933, quando se elegeu presidente Juan Bautista Sacasa e a guerrilha nicaraguense contra os EUA, chefiada por Cesar Augusto Sandino viu-se vitoriosa.
Contudo, em 1936, em um golpe militar, Anastasio Somoza Garcia assumiu o poder, assassinou Sandino e instaurou uma ditadura familiar que durou mais de quatro décadas.
A corrupta ditadura somozista terminou em 1979, quando o filho de Anastasio, também Anastasio Somoza (nome completo Anastasio Somoza Debayle), foi deposto por uma ampla frente oposicionista (composta de marxistas autodenominados sandinistas, empresários, jornalistas etc.) e refugiou-se em Miami e depois no Paraguai, onde foi morto por guerrilheiros sandinistas e terroristas argentinos.
Com a queda de Somoza, formou-se uma junta para governar o país. Dela faziam parte, representando o grupo sandinista, o mais à esquerda, Daniel Ortega, Sergio Ramirez e Moisés Hassan, e mais o empresário Alfonso Robelo Callejas e Violeta Barrios de Chamorro.
Violeta Chamorro era viúva de Pedro Joaquim Chamorro, um destacado jornalista de oposição nicaraguense, assassinado a mando da ditadura somozista em 1978.
Com maioria na junta, o grupo sandinista, ligado a Fidel Castro, marginalizou Alfonso Robelo e Violeta Chamorro e assumiu o poder, dando início a um governo de extrema esquerda, com a estatização dos setores de produção.
A radicalização sandinista fez com que surgisse um grupo contrarrevolucionário, que pretendia a democratização da Nicarágua, os “contras”, que acabaram por receber apoio dos Estados Unidos, enquanto os sandinistas eram apoiados por Fidel Castro.
Enquanto Daniel Ortega, que se autoproclamara presidente, tentava implantar um regime comunista, e os “contra” pegavam em armas para derrubá-lo, crescia um clamor por eleições na Nicarágua, por parte dos governos vizinhos, dos governos mais ao centro na América Latina e dos EUA.

Violeta Chamorro e a vitória de 1989
Em 1989, os sandinistas, pensando em legitimar seu domínio, aceitaram realizar eleições. É que tinham um plano de ganhá-las a qualquer custo, além de estar a perder terreno para os “contras”.
Pelos sandinistas, era candidato a presidente Daniel Ortega. Violeta Chamorro candidatou-se pelo centro democrático. E em boa parte estimulados por Ortega, outros oito candidatos surgiram, com visível intuito de dividir a oposição, em um pleito sem segundo turno.
Fui designado observador, pelo Senado brasileiro e pela OEA, chefiada pelo diplomata brasileiro Baena Soares, nessas eleições, que se realizaram em fevereiro de 1990 e estive na Nicarágua por duas vezes, em novembro de 1998 e no dia das eleições.
Tive oportunidade de, acompanhado pelo embaixador brasileiro no país, Sergio Duarte, entrevistar mais de duas dezenas de partícipes, direta ou indiretamente, das eleições, entre elas os dois candidatos principais, Daniel Ortega e Violeta Chamorro, o presidente do Conselho Superior Eleitoral (o TSE de lá), cujo nome me foge, o presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos, Lino Hernandez e o arcebispo de Manágua, Miguel Obando y Bravo, que teve papel importante de conciliação entre os vários grupos políticos locais, quando Somoza foi deposto.
Havia um clima de “já ganhou” por parte dos sandinistas, e era justificado por vários fatos. Alguns, entre muitos:
1
Violeta Chamorro nos confidenciou estar cerceada em sua campanha pelos sandinistas, com seus telefones cortados, seus comícios dissolvidos à pancada pelas milícias de Ortega, com o som desligado sempre que empunhava um microfone para um discurso em palanque.
Tentou importar um gerador portátil de energia para superar essa dificuldade, mas o equipamento foi retido na alfândega a mando de Ortega, e nunca lhe foi entregue. Apesar dessas dificuldades, irradiava uma calma e uma confiança impressionantes.
2
Todos os candidatos dispunham de três minutos diários na televisão, menos Ortega, que alegando a posição de “presidente” aparecia a todo momento.
3
Os militares tinham direito a voto e compareciam orientados pelo governo a votar em Ortega, levados em blocos por um oficial de confiança dos sandinistas. Representavam 10% do eleitorado.
4
O Conselho Superior Eleitoral (CSE) da Nicarágua, constante de cinco membros, tinha quatro sandinistas.
Cada dia mais confiante, Ortega convidou observadores de toda a América para assistir ao seu triunfo no dia das eleições. Lá estavam, inclusive o presidente argentino Raúl Alfonsín e o ex-presidente americano Jimmy Carter. Os sandinistas, na verdade, armavam uma armadilha para si mesmos.
No dia das eleições, observadores internacionais se espalharam pelas secções eleitorais e observaram inclusive a contagem de votos.
E com grande surpresa, Violeta Chamorro surgiu à frente em praticamente todas as urnas. Enquanto os observadores aguardávamos, no Centro de Convenções de Manágua pelos boletins eleitorais, os sandinistas, surpresos, se reuniam para uma tentativa de fraude. Mas nessa altura, era impossível.
Autoridades do mundo inteiro já conheciam os resultados. Mas só na alta madrugada os sandinistas resolveram liberá-los e reconhecer a vitória de Violeta.
As fraudes do grupo de Daniel Ortega
Violeta Chamorro governou até 1997 e teve dois sucessores de centro, Arnoldo Alemán, que governou até 2002 e Henrique Bolaños, que governou até 2007, quando Daniel Ortega conseguiu se eleger, nas eleições de 2006, embora tivesse apenas 38% dos votos (não havia segundo turno).
Ortega havia aprendido a lição, em 1990. Nas eleições seguintes, aplicou uma dose de fraudes muito maior do que a usada contra Violeta em 1990, de modo a garantir sua permanência. Está há duas décadas na Presidência.
Qualquer candidato de oposição que crescesse, ainda que um pouco, ia parar na cadeia. A própria filha de Violeta Chamorro, candidata em 2022, foi proibida pela justiça nicaraguense, junto com os outros seis candidatos, de concorrer no pleito. Ortega concorreu sozinho.
E, marxista convicto, governa ditatorialmente seu pequeno país, inclusive com a mais rigorosa perseguição religiosa que hoje se conhece no Ocidente.
Já Violeta Chamorro foi uma personalidade marcante. Não se deixou amargar pelo assassinato brutal do marido. Ao contrário, dedicou-se a criar os filhos e a melhorar sua pátria. Deu o melhor de si para os necessitados da Nicarágua.
Violeta Chamorro fez um governo de pacificação nacional e teve enorme paciência com os irrequietos — e desonestos — sandinistas.
Com a abertura que promoveu, conseguiu melhoras na economia nicaraguense e conseguiu eleger seu sucessor com tranquilidade. Pode-se dizer que, em dois séculos de história, a Nicarágua só teve paz política e social em pouco mais de década e meia. De 1990 ao fim de 2006, quando governaram Violeta Chamorro e seus dois sucessores. E hoje vive uma ditadura corrupta e sangrenta.