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O leitor por certo ouviu falar dos Processos de Moscou, hoje praticamente esquecidos, por conveniência dos movimentos de esquerda. Reavivando a memória: com esse título ficou conhecida uma série de processos promovidos por Stalin, antes da eclosão da II Guerra, mais precisamente entre 1936 e 1938. Uma das mais abjetas ações ditatoriais de que se tem notícia, serviu a um só tempo para eliminar lideranças soviéticas que pudessem ameaçar o poder ditatorial stalinista e lançar sobre toda a população o temor de admitir qualquer ação contrarrevolucionária contra aquele poder. Os processos, de uma brutalidade a toda prova, liquidaram de vez a contestação trotskista e as velhas lideranças bolcheviques que poderiam fazer sombra a Stalin. Os horrores seriam denunciados 20 anos mais tarde, por Nikita Kruschev e os supliciados reabilitados na historiografia soviética.

Tudo começou após o assassinato de Serguei Kirov, líder bolchevique muito ligado a Stalin, e estrela crescente na URSS, em 1934. Há versões controversas: enquanto a oposição trotskista alega que Kirov foi morto a mando de Stalin, que eliminou um concorrente e ao mesmo tempo usou a morte como pretexto para eliminar a oposição, a alegação oficial, de Stalin principalmente, foi de que os oposicionistas haviam assassinado Kirov. A reação stalinista foi sangrenta. Dois membros da “Troika” que governou a URSS entre 1923 e 1925, Lev Kamenev e Grigori Zineviev, foram julgados e mortos, juntamente com milhares de políticos oposicionistas, intelectuais e militares. Leon Trotsky foi mandado assassinar no México, em 1940, e seu filho Leon Sedov em Paris, em 1938, por Stalin, sem preocupação com repercussões diplomáticas.

A forma dos expurgos foi impressionante: os acusados foram torturados por meses pela NKVD, a polícia política soviética, até que fizessem confissões públicas de culpa, denunciassem amigos e parentes inocentes e elogiassem seus verdugos. Milhares foram fuzilados e mais de um milhão de perseguidos foi enviado a campos de trabalho, onde se morria de frio, de fome e de cansaço. 

Poder-se-ia pensar que tais horrores estariam sepultados, principalmente depois de sua denúncia pelos próprios soviéticos, na pessoa de Kruschev, um líder de primeira grandeza na URSS, que privara com Stalin, principalmente durante a Invasão nazista. Antes assim fosse. Hoje, o comunismo nos moldes soviéticos é repudiado em todos os países mais desenvolvidos e de população mais esclarecida, principalmente onde esteve presente, como no Leste Europeu. Mas subsiste, com o mesmíssimo caráter que ostentava na URSS das décadas de 1940 e 1950 em apenas em uma parte do mundo ocidental: na América Latina. O regime comunista de Cuba é um remanescente da URSS, o da Venezuela é uma sua imitação, o da Nicarágua idem, e existem nos demais países do subcontinente partidos ou grupos políticos nitidamente cultores do regime, no Brasil inclusive. Um fato mostra, relativamente recente, que os métodos de Stalin são difíceis de extirpar: o do intelectual cubano Heberto Padilla. 

Herberto Juan Padilla (1932-2000) foi um destacado poeta cubano, autor de vários livros de poesia, romances e novelas, traduzido em mais de uma dezena de línguas. Apoiador de Fidel Castro, talentoso escritor que era, foi aproveitado como colaborador da ditadura castrista em diversas posições importantes, como representante cultural de Cuba em Nova Iorque e em Moscou, na década de 1960.

Foi premiado em 1968 com o maior prêmio literário cubano, por seu livro Fuera de Juego. Ocorre que o livro fazia algumas críticas veladas à ditadura cubana, o que desagradou a Fidel Castro e tornou o autor um alvo do regime, posto sob vigilância. Em 1971, um novo livro seu, Provocaciones, que também ousava apontar correções de rumo à ditadura, enfureceu Fidel Castro. O poeta foi preso, e com ele a mulher, a poetisa Belkis Cuza Malé.

Castro imitava, no processo de Padilla, os processos de Stalin contra os dissidentes e intelectuais de seu desagrado, quatro décadas atrás. O poeta ficou quase dois meses na prisão, e não são sabidos os processos de tortura que experimentou. O fato é que só foi libertado após uma “autocrítica” nos moldes das arrancadas na URSS stalinista à época dos Processos de Moscou. Padilla, na sua fala, se confessava culpado dos piores crimes contra o regime, acusava a esposa e conhecidos de atividades contrarrevolucionárias e proclamava seu arrependimento, além de elogiar seus torturadores. Até parecia que Stalin havia ressuscitado.

Alquebrado e humilhado, Padilla escapou ao fuzilamento porque se levantaram a seu favor vozes de intelectuais famosos no mundo, muitos deles chegados a Fidel Castro (como Jean Paul Sartre) pedindo sua libertação. Padilla, agora um homem ilhado em si mesmo, tentava deixar Cuba, mas não lhe permitiam. Tinha, para a ditadura, que expiar os seus crimes em meio à execração pública na Ilha, até a morte. Outra vez, os intelectuais, latino-americanos e europeus principalmente (como Júlio Cortázar, Susan Sontag, Mario Vargas Llosa e outros), fizeram seus apelos e Fidel Castro teve que ceder. Em 1980 um Herberto Padilha derrubado conseguia asilo nos Estados Unidos, com a ajuda do Senador Edward Kennedy. No exílio, que terminou com sua morte em 2000, no estado do Alabama, o poeta escreveu alguns livros, mas sem o entusiasmo e o brilho de antes, inclusive uma autobiografia, La Mala Memoria, em 1989. Era um homem moralmente alquebrado. Requiescat in pace.