José Mariano Beltrame: uma década de “jeitinhos” e fracassos

22 outubro 2016 às 11h18

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A ideia de pacificar traficantes e polícia, ou bandidos e sociedade, é uma mediação equivocada. A polícia deve prender bandidos, não assinar tratados de paz, até porque eles não cumprem tratados

Como todo brasileiro que vê no Rio de Janeiro uma beleza natural sem paralelo, um potencial turístico enorme, mas pouco explorado, sinto pena quando contemplo a deterioração da cidade, quer do ponto de vista econômico, quer do social. O leitor que conhece o Rio e o admira, estou certo, participa dessa revolta. Morei ali nas décadas de 1950 e 1960, quando a cidade era, em quase todos os aspectos, maravilhosa de verdade. Um descaso contínuo desde então, uma leniência com a marginalidade, uma sequência de governos fracos, desonestos, “politicamente corretos”, adeptos das soluções simplistas para os problemas cada vez mais complexos da antiga capital do país, fizeram do Rio de Janeiro um caos administrativo, onde sobressai o problema da segurança pública.
Nenhum grave problema social surge da noite para o dia. Em qualquer sociedade, problemas se agravam de maneira contínua, e se não corrigidos, com o passar dos anos (no caso do Rio, décadas) assumem proporções descabidas.
O Rio de Janeiro sofre a maldição da beleza. Seus governantes e seus moradores — e eleitores — parecem pensar que a paisagem deslumbrante protege a cidade das ameaças que pesam sobre as metrópoles.
Desde Carlos Lacerda governador, ninguém mais se preocupou com a favelização da cidade. Impedir o avanço das favelas tomava votos. Ninguém se preocupou com a marginalidade crescente abrigada nos morros. Essa marginalidade, quase inofensiva quando se reduzia ao jogo do bicho, foi se transformando em algo cada vez mais perigoso, mais letal, até se materializar no tráfico de drogas pesadas e armas, e se assenhorar de áreas da cidade como territórios autônomos, onde a polícia não entra.
A não ser em épocas especiais, como nas recentes olimpíadas, quando todas as forças de segurança nacionais estavam presentes, o Rio é uma cidade insegura, dominada por marginais, e não só nas favelas. Nos pontos mais elegantes da cidade, você pode ser furtado, roubado ou assaltado. Se reagir, pode ser morto. Nas belas praias cariocas, é uma temeridade o uso de relógios, correntes, pulseiras ou brincos. Veículos antes furtados, ou roubados, são hoje tomados a mão armada de seus donos em plena Zona Sul. Arrastões são uma constante, nas linhas de tráfego, nos shoppings, nos coletivos ou nas praias. A venda de drogas faz-se quase que escancaradamente. Pelotões de bandidos resgatam à bala traficantes feridos dentro de hospitais.
O eleitorado carioca — vale dizer, sua população — nunca foi cuidadoso no eleger seus administradores ou representantes. Escolheu para governadores nulidades como Chagas Freitas, Leonel Brizola, Moreira Franco, Marcelo Alencar, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sergio Cabral.
À incompetência, muitas vezes se somou a desonestidade. Um exemplo: Brizola proibia a ação da polícia nas favelas, numa atitude criminosa, que somava a busca por votos, o financiamento dos bicheiros e a ideologia que via nos marginais “excluídos da sociedade”.
No Congresso, chegavam eleitas pelo Rio as figuras mais bizarras, como Juruna, Agnaldo Timóteo, Abdias do Nascimento, Jaques Dornellas, Benedita da Silva, Jandira Feghali, que longe de atacar os problemas do Rio, queriam contorná-los — e usufruir do mandato.
Beltrame
Nesse rolar ladeira abaixo, chegamos em 2007, quando Sérgio Cabral nomeou José Mariano Beltrame como secretário de Segurança Pública.
Beltrame nunca foi um luminar em segurança. Delegado da Polícia Federal, entrou na carreira por vias administrativas recursais, pois, no concurso que fez, ficou em vexaminoso lugar, com quase um milhar de concorrentes à sua frente. Mas tinha o que os cariocas parecem apreciar mais que outros brasileiros: o cultivo do “jeitinho” e do “politicamente correto”.
Fui um dos primeiros a expor, e o fiz mais de uma vez aqui, no Jornal Opção, minha descrença com a ideia das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), panaceia vendida por Beltrame e Sérgio Cabral para solução da violência carioca.
A ideia de pacificar traficantes e polícia, ou bandidos e sociedade, sempre me pareceu uma mediação equivocada. A polícia deve prender bandidos, não assinar tratados de paz com eles, até porque eles não cumprem tratados. E cabe à justiça aplicar a eles as penas ditadas pela lei. Polícia não pode dialogar com bandidos, aceitando que trafiquem, desde que não usem fuzis a tiracolo, como a sociedade não pode aceitar que assaltem, desde que não matem.
Mas a ideia das UPPs sempre me pareceu essa, de um acordo com bandidos. Beltrame e governo, logo após gastos enormes com as UPPs, passaram a alardear seu sucesso. Um sucesso que nunca apareceu. Em 2010, todos assistimos à invasão da favela do Alemão pelas forças de Beltrame. Um espetáculo transmitido pelas televisões, cujo clímax foi a fuga de dezenas de marginais, armados como soldados em guerra, para outras favelas.
Enquanto a mídia exaltava a operação e Beltrame (que ganhou homenagem da Rede Globo e chegou a ser indicado para Prêmio Nobel da Paz!) era glorificado por quase todos, inclusive por amigos meus, meu ceticismo crescia.
Duas perguntas, então, me assaltavam:
1) se havia uma rota de fuga tão evidente, a ponto de o helicóptero da Rede Globo filmá-la na retirada dos bandidos, por que Beltrame não a havia fechado, e prendido os traficantes?
2) os traficantes fugidos iriam se regenerar, e buscar empregos honestos no dia seguinte? Iriam ser auxiliares de enfermagem, empregados no comércio, peões de obra, ou continuariam no tráfico em outras favelas? A resposta estava com “especialistas em segurança” que apareciam nas televisões e afiançavam que prender não resolve. Quem receita cadeia para bandidos é para eles uma espécie de monstro pouco afeito às realidades sociais: o “encarcerador”. A solução está nos serviços públicos nas favelas, diziam.
Continuavam Cabral e Beltrame, enquanto isso, a dizer que as UPPs eram um sucesso e que a criminalidade caía no Rio de Janeiro. De 2006 para 2009, afirmavam, o número de assassinatos caíra quase 30%. Mentira. Em 2009, aos 5 mil assassinatos contabilizados pela secretaria de Beltrame, deveriam ter sido somados outros 3 mil, que haviam sido escondidos, numa maquiagem dos números oficiais, denunciada por Daniel Cerqueira, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea). A violência no Rio continuava a mesma. Ou pior. E Beltrame adotava atitudes esdrúxulas.
Certa vez chamou ao seu gabinete policiais que haviam sido agredidos por traficantes e não haviam reagido. Em vez de repreendê-los pela covardia, os cumprimentou. Doutra feita, mandou recolher os fuzis dos policiais militares, para evitar balas perdidas. Esqueceu-se de que para evitá-las precisaria também recolher os fuzis dos traficantes, evidentemente depois de combinar com eles. E de que com essa atitude, deixava os PMs vulneráveis e potencialmente fuzilados num confronto com marginais a média distância.
A situação das UPPs hoje é a seguinte: os policiais que as ocupam estão isolados, e são alvo de ataques frequentes por parte dos traficantes. Desde o início das UPPs até hoje quase 500 policiais foram baleados e cerca de 40 morreram. Até o governo reconhece que elas fracassaram. A violência cercou as UPPs e continua espalhada pela cidade, e deve se agravar agora, quando terminadas as eleições o restante das forças de segurança nacionais se retirarem do Rio.
Os índices cariocas de violência continuam entre os mais altos do país, muitos deles mascarados pela falta de confiança nos dados oficiais e pela descrença da população, que muitas vezes nem registra roubos e furtos, pois sabe da burocracia existente e da inutilidade da medida.
A comparação com São Paulo, a outra metrópole, é gritante. A taxa de homicídios no Rio de Janeiro é de 32 mortos por 100 mil habitantes; em São Paulo é de 13. A polícia paulista prende muito mais: a taxa de encarceramento em SP é de 630 presos por 100 mil habitantes; no Rio é de 280. O que mostra o equívoco, já por si evidente, de quem combate o encarceramento.
Em São Paulo, que não tem UPPs, não existem áreas dominadas pelo tráfico. Lá, ao contrário do Rio, não se é adepto do “jeitinho” e os “politicamente corretos” não ditam normas. Beltrame deixou agora a Secretaria de Segurança Pública do Rio. Emburrado, sequer teve o gesto educado de passar o cargo ao sucessor. Já vai tarde. Que o próximo tenha respaldo do governo e coragem para medidas efetivas, coisas que desejo, mas em que não acredito. Pobre Rio de Janeiro.