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Dos que se foram para a viagem sem volta nos últimos dias, ou que “mergulharam no imperceptível”, como dizia o filósofo Herbert Spencer, três nomes merecem o reconhecimento nacional, pelo que fizeram de benéfico ao longo de suas carreiras. Um deles, até, recebeu láurea internacional. 

Alysson Paolinelli, engenheiro agrônomo, morreu aos 86 anos no dia 29 do mês passado; José Celso Martinez Correa, dramaturgo, se foi também aos 86 anos no último dia 6; José Paulo Sepúlveda Pertence, jurista, faleceu aos 85 anos no dia 2 deste mês. Cada qual foi útil ao seu modo para a sociedade brasileira.

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Sepúlveda Pertence, ministro do STF

Sepúlveda Pertence foi ministro do STF | Foto: Reprodução

José Paulo Sepúlveda Pertence, mais conhecido apenas como Sepúlveda Pertence, mineiro, foi advogado, promotor público, procurador-geral da República e ministro do Supremo Tribunal Federal.

Militante de esquerda desde os tempos de estudante, Sepúlveda Pertence chegou a ser cassado do Ministério Público (onde entrou por concurso em 1963), em 1969, pelo AI-5.

Foi indicado por Sarney para o Supremo, em 1989, muito merecidamente. Lembro-me de sua sabatina no Senado.

Fez a visita protocolar em meu gabinete (eu era senador), um tanto constrangido, pois sabia de minha posição antiesquerdista. Eu disse a ele, na ocasião, que teria meu voto, pois indiscutivelmente preenchia as condições básicas para o cargo. Tinha reputação ilibada, não se conheciam desonestidades suas. E tinha o “notável saber jurídico”, exigência constitucional que hoje ninguém mais leva em conta.

Sua crença no socialismo, de que eu não participava, não influiria no meu voto — disse eu — pois era um homem à altura do Supremo. Foi um grande ministro do STF, e nunca mesclou seu socialismo com as disposições constitucionais, o que também parece ter caído em desuso. Foi um exemplo.

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Zé Celso, diretor de teatro

José Celso Martinez, ou Zé Celso, como era carinhosamente conhecido, paulista, confunde seu nome com o do Teatro Oficina, que criou em 1958, juntamente com alguns colegas da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, como Fauzi Arap, Itala Nandi, Renato Borghi e outros que ficaram famosos.

O teatro funciona até hoje, e Zé Celso dirigiu peças icônicas desde os anos 1960, como “Os Pequenos Burgueses”, de Górki, “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, “Na Selva das Cidades”, de Brecht, e peças de sua própria autoria, como “Vento Forte para Papagaio Subir”.

O diretor teatral e dramaturgo José Celso | Foto: José Celso Martinez/Instagram
Zé Celso: diretor teatral e dramaturgo | Foto: José Celso Martinez/Instagram

Zé Celso dirigiu outras peças, de Shakespeare a Chico Buarque, passando por Nelson Rodrigues. Sob sua direção trabalharam famosos, como Fernanda Montenegro, Henriette Morineau, Raul Cortez. Fez cinema e até uma novela, embora não apreciasse os espetáculos televisivos. Divertiu e ilustrou muita gente. Que descanse em paz.

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Alysson Paolinelli sobre boicote da imprensa

Alysson Paolinelli foi secretário de Agricultura de Minas Gerais de 1971 a 1974 e ministro da Agricultura de 1974 a 1979, no governo Ernesto Geisel.

O mestre mineiro dinamizou a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), criada no governo anterior, e enviou os melhores alunos das escolas de agricultura e veterinária de todo o País, centenas deles, com de bolsas de estudo, para os mais renomados centros internacionais de pós-graduação, exigindo que voltassem e aplicassem aqui o que aprendessem.

Alysson Paolinelli fez com que o cerrado brasileiro, antes improdutivo, se tornasse boas pastagens por intermédio de novas gramíneas (como o capim braquiária, oriundo da África) ou em lavouras produtivas (adaptando com produtividade a soja e o milho a esse tipo de terreno, após exaustivos estudos genéticos).

Fez, enfim, uma revolução no campo que hoje é visível pela posição que o Brasil ocupa na produção de alimentos, atendendo 1 bilhão de pessoas, aqui e lá fora. Esse feito barateou o alimento dos brasileiros e equilibrou a balança comercial do País.

Alysson Paolinelli: o técnico que melhorou a mesa dos brasileiros | Foto: Reprodução

Em 2006 Paolinelli recebeu o maior prêmio internacional voltado para a melhoria da alimentação, o World Food Prize, concedido anualmente pela fundação criada pelo agrônomo e cientista Norman Borlaug, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1970.

Em 2021, o próprio Paolinelli foi indicado para o Prêmio Nobel da Paz. Foi um dos grandes brasileiros da atualidade.

A morte de pessoas úteis e honestas é sempre motivo de tristeza, deixa o País mais pobre e deve ser objeto de respeitoso pesar por todos. Objetivamente, a crença política do falecido não pode nunca ser colocada acima de sua utilidade para o Brasil e os brasileiros.

Zé Celso e Sepúlveda Pertence eram homens de esquerda. Isso interessa no momento de luto pelos dois? Não, porque isso não influiu na alegria e na cultura que Zé Celso levou a miríades de espectadores, com suas atuações, montagens e direções artísticas. Como não influiu na atuação sempre profissional e sóbria de Sepúlveda Pertence, verdadeiro exemplo de jurista, cuja formação nunca permitiu que saísse de sua pena uma injustiça para atingir um adversário de direita.

E porque falo isso: porque às consternações pelo passamento desses três brasileiros ilustres, juntou-se um quarto amargor: a injustiça com um deles, proporcionado por nossa imprensa militante, em sua estreiteza e mesquinhez. O leitor terá visto, se acompanha nossos jornais, rádios e televisões, abundante noticiário do passamento de Zé Celso. Não faltaram as edições, os detalhes, as homenagens, os depoimentos sobre o dramaturgo, todos merecidos, sem dúvida. Sobre Sepúlveda Pertence, houve uma normalidade, mesmo sem exagero, no noticiar seu passamento e suas qualidades. Nossa “grande imprensa” tratou a notícia como triste notícia que foi, consternada, sem alarde, mas sem omissão. Afinal, fez justiça ao nome do jurista.

Já quanto a Paolinelli, e aqui repito da mesquinhez, da pequena estatura de nossos jornalistas da esquerda militante. A notícia de seu passamento foi quase que escondida, sua morte foi quase uma não notícia. Suas grandes qualidades, não menores que as de seus dois companheiros de época de encontro com a indesejada, foram praticamente enterradas.

O leitor atento terá observado que para uma rara e diminuta menção à morte de Paolinelli, o grande brasileiro que revolucionou o campo e deu nova dimensão ao País como alimentador de populações, terão sido feitas ao menos dez menções à morte de Sepúlveda Pertence e trinta sobre o passamento de Zé Celso, e às qualidades destes dois últimos.

Compreende-se que Zé Celso e Sepúlveda Pertence tenham sido “companheiros”, que a classe jornalística e a classe artística sejam próximas e que a primeira fique mais condoída quando morre alguém da segunda. Todas as homenagens aos dois são merecidas. Até se compreende que os jornalistas militantes tenham sua antipatia por alguém que foi ministro de Ernesto Geisel, que no seu entender era “ditador”.

Mas não se compreende que não levem em conta a atuação de Paolinelli em benefício de todos os brasileiros, sem que alguém de uma coloração ideológica ou política se beneficiasse mais que alguém de qualquer outra. Apenas anões éticos escondem uma morte e as evidentes qualidades do morto apenas porque ele, em princípio, pensava diferente deles.

Paolinelli sequer poderia ser classificado como político, o que poderia ainda que no exagero, explicar esse ódio além da morte. Era um técnico, muito bom, aliás, como sua obra comprova. Cada um dos que procuraram diminui-lo ocultando suas qualidades e nem mencionando seu passamento é devedor dele quando se alimenta, ainda que não queira. A mesa brasileira, a dos esquerdistas também, seria mais onerosa se Paolinelli não tivesse existido. Ele merecia um luto oficial do governo federal, como teve do governo de Minas Gerais, mas isso seria exigir uma grandeza do governo petista que ele, minúsculo que é, nunca seria capaz de produzir.

Lembro-me que na morte de Juscelino Kubitschek, em 1976, quando Paolinelli era ministro e o presidente era Geisel, este decretou luto nacional, mesmo Juscelino sendo adversário do regime que o general-presidente encarnava. Paciência! Muitos têm a alma cabisbaixa. Só veem o chão — não conseguem voltar o olhar para cima, e dentro de sua limitação cognitiva, perdem o espetáculo do céu estrelado.