COMPARTILHAR

“Audaces fortuna adjuvat” (A sorte protege os audazes) — Virgilio

O dicionário define audácia como um substantivo feminino significando: “Tendência que dirige e incita o indivíduo a, temerariamente, realizar ações difíceis, desprezando obstáculos e situações de perigo; ousadia, intrepidez, denodo”.

Evidentemente, as ações difíceis, desprezando situações de perigo, ameaçando até mesmo a vida de quem as exerce, podem tanto obedecer a impulsos nobres, como os que moveram Tiradentes, na Inconfidência Mineira, como podem vir do estímulo dos instintos mais baixos, como os que experimentam os assaltantes de bancos ou de cofres públicos. Se os primeiros visam objetivos mais perenes, morais e altruístas, como a Liberdade, os segundos perseguem objetos mais materiais, imediatos e egoístas, como Dinheiro e Poder. Costumamos, comumente, e até de maneira inconsciente, a falar em coragem, quando o sentimento motor da audácia é nobre, e em ousadia no caso contrário.

Nos últimos tempos, e no campo brasileiro da política, a audácia se fez notar, quer por sua gritante presença, quer por, contrariamente, sua pungente ausência, justamente quando se fazia mais necessária. Alguns exemplos:

Uma enorme audácia moveu o ministro do STF Edson Fachin, quando, em março de 2021, pessoalmente, anulou as sentenças condenatórias de Lula da Silva (PT), exaradas em três instâncias e por dez juízes de carreira. Por outro lado, faltou audácia aos profissionais da área jurídica, advogados, promotores e juízes, bem como às suas associações de classe, que — julguei — iriam despejar uma enxurrada de protestos contra o audaz feito do ministro, juiz novato, em favor do réu, mas muito também em desfavor de uma dezena de juízes ilibados, competentes e experimentados. Também faltou audácia às maiores figuras do Executivo e do Legislativo, que, mesmo inconformados com o gesto do ministro, não tiveram o suficiente denodo para um protesto. A audácia por vezes tem enorme retumbância. No caso, fez de um recém libertado da prisão por corrupção e lavagem de dinheiro um candidato e posteriormente um presidente eleito da República.

Jair Bolsonaro votando na Vila Militar, no RJ | Foto: Reprodução/TV Globo

Campeão da audácia, outro ministro, Alexandre de Moraes, por várias vezes a exibiu, nestes últimos tempos. Fez prender sem ser em flagrante e por crime inafiançável um deputado federal em pleno exercício de mandato, o que contraria a Constituição. Preside um inquérito em que é investigador, promotor e juiz, o chamado Inquérito das Fake News, sem data de acabar. Proibiu o chefe do Executivo de nomear o diretor-geral da Polícia Federal, isto é, de exercer sua prerrogativa constitucional. Paralisou a pedido de um partido político sem expressão, a construção da ferrovia mais importante do país. Fez invadir residências de empresários com base em conversas por WhatsApp e assim por diante.

E faltou audácia ao presidente do Senado para atender aos pedidos de inquérito sobre a atuação do ministro Moraes, como proposto mais de uma vez. Aliás, dizem as más línguas, Rodrigo Pacheco só exibe audácia em duas ocasiões: quando faz a barba e tem que, ruborizado, contemplar-se no espelho, ou quando precisa olhar de frente os parentes mais próximos.

E tem faltado audácia ao presidente Jair Bolsonaro. Como faltou quando ele não usou a força que tem como chefe do Executivo, para esclarecer a grave tentativa de morte de que foi vítima, e que, até hoje, permanece em meio à névoa das narrativas simplistas e da negação de evidências. Ela faltou também quando o presidente deixou de nomear o diretor que havia escolhido para a Polícia Federal, como lhe competia constitucionalmente, e preferiu acatar a decisão ilegal do STF, em nome de uma harmonia entre poderes que sabidamente fluía num só sentido. Faltou audácia em outras vezes em que se curvou a decisões do Judiciário ao menos discutíveis, como a que paralisou a Ferrogrão. Seguramente faltou audácia ao presidente nos dois feriados de 7 de Setembro, em 2021 e 2022, quando convocou o povo às ruas para respaldá-lo, sem esclarecer para quais ações, e foi atendido, mas não desencadeou ação nenhuma, mesmo diante da atuação visivelmente parcial da justiça eleitoral nas eleições.

Sobrou audácia aos senadores Renan Calheiros, Omar Aziz e Randolfe Rodrigues, que propuseram e conduziram a chamada CPI da Covid, quando o passado que ostentam lhes recomenda recolhimento e discrição. CPI que, como sempre, em nada resultou, mas atraiu para a trinca os holofotes. Foi falsa a audácia do ex-deputado Roberto Jefferson, ao anunciar que iria se imolar em protesto pelas ilegalidades que sofria por parte do ministro Alexandre de Moraes — ilegalidades reconhecidas por muitos juristas qualificados —, mas que terminou em tiros em viaturas da polícia, granadas de efeito moral (ou seja, granadas que apenas fazem barulho) e uma rendição rápida e incondicional.

A audácia não é aleatória. Tem que ser exercida no local e momentos certos, e uma condição de liderança é ser audaz, e ter ao mesmo tempo discernimento para a audácia na hora exata. Pois ela, fora do contexto, deixa de ser audácia e se transforma em demência, não levando a nada a não ser à desgraça de quem tenta praticá-la. A audácia é uma dama caprichosa: oferecida a alguém e não aproveitada, desprezada que foi, costuma castigar o pretenso, mas ausente audaz, com o infortúnio de não alcançar aquilo a que se propôs. Pelo menos em parte, isso explica o insucesso do presidente Bolsonaro, derrotado por pequena margem de votos em eleição que contemplou Lula da Silva, ainda que moralmente inferiorizado, pois egresso da prisão, e eleição que muitos consideram inaceitável, dado o seu comportamento quando ocupou o cargo a que agora volta.

Enfim, leitor fica aqui esse pequeno exercício: como classificar a audácia dos personagens dos últimos acontecimentos no palco político brasileiro, um por um, sejam eles do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário. Coragem, ousadia ou omissão?