Por muitas razões que não interessa discutir no momento, temos no Brasil pouca informação sobre o que se passa nas partes mais distantes do Globo. E mesmo essa pouca informação, pelas mesmas razões aqui não discutidas, chegam até nós distorcidas ou incompletas. Um exemplo está no ocorrido na Romênia, quando caiu o regime comunista de Nicolae Ceausescu, em dezembro de 1989. Poucos brasileiros sabem que foi o único dirigente comunista europeu que caiu de forma violenta, após uma revolta popular a que as forças armadas acabaram por aderir, e que terminou não só com o fuzilamento do ditador, mas também de sua mulher, Elena. Esse desconhecimento da história faz com que muitos de nossos “progressistas” defendam regimes hediondos. Paciência.

Os excessos ditatoriais de Ceausescu, que determinaram seu fim, não eram conhecidos em toda sua extensão. Mas não foram poucos. Governava a Romênia desde 1965, apoiado por uma polícia política obediente e violenta – a Securitate – e reprimia sem piedade qualquer manifestação de dissidência. O país era um dos mais fechados da Europa. A dissidência crescia, contudo, pois a despeito de ser o país rico em minérios (petróleo, ouro, prata, sal etc.) e dotado de terras férteis e produtivas (milho, trigo, vinhas), as dificuldades só cresciam, pela ineficiência natural da concepção econômica marxista e pela administração míope do próprio ditador e seus auxiliares. Era um país rico, com apreciável tradição cultural, mas o povo era reprimido e passava por inúmeras dificuldades e privações, inclusive a fome.

A queda do regime pôs a descoberto a série de equívocos econômicos e sociais cometidos durante sua permanência, como de resto poder-se-ia observar nos outros regimes marxistas que desmoronavam por toda a Europa no início dos anos 1990. Mas na Romênia, houve a descoberta de um equívoco particularmente monstruoso, e de consequências as mais trágicas. Atingiu comprovadamente cerca de 170.000 crianças, embora o número certo seja bem maior, podendo se aproximar de meio milhão. A Gazeta do Povo, no Brasil, ao que sabemos, foi o único jornal a fazer uma reportagem a respeito. Expliquemos a experiência marxista de engenharia social, imaginada por Ceausescu: Em 1966, o ditador, julgando que a população romena era pequena (23 milhões), resolveu que ela deveria crescer, e atingir 30 milhões no prazo de aproximadamente 30 anos. Baixou o Decreto 770, que entre outras medidas proibia o aborto, os anticoncepcionais de qualquer tipo, estimulava a geração de pelo menos cinco filhos pelos casais (a mãe que tivesse dez filhos recebia um título de “mãe heroína da Romênia”). Com essas medidas, a taxa de fertilidade no país dobrou em dois anos, embora, caísse logo depois, pois os casais, num pais empobrecido e racionado, viam que era insano gerar um filho que não podiam sequer bem alimentar. Em 1977, Ceausescu reagiu, criando na Securitate uma secção policial para investigar as mulheres. Essa polícia, que a verve popular chamava “Polícia da Menstruação”, verificava se as mulheres não estavam usando anticoncepcionais, se estavam evitando o sexo ou fazendo uso de algum método abortivo. Casais sem filhos pagavam uma multa ao Estado. Dois resultados imediatos da política de Ceausescu, além do aumento de nascimentos (as crianças eram chamadas de “decretinhos”, em referência ao Decreto 770): cerca de dez mil mulheres (ou mais) morreram por abortos clandestinos e a taxa de mortalidade infantil cresceu para oito vezes a taxa média do restante da Europa. Mas o pior – muito pior – ainda estava por vir.

Nicolae Ceausescu: longevo ditador da Romênia | Foto: Reprodução

Com as dificuldades se agravando, a carência de alimentos crescendo, a repressão aumentando, crescia também o número de órfãos, de crianças abandonadas e de bebês entregues às creches do governo. Isso permitiu que Ceausescu desse início a seu trágico e sinistro experimento de engenharia social: os funcionários das creches eram orientados para serem distantes no trato com as crianças: os menores, se chorassem, deveriam ser deixados chorando até que mais não pudessem, para se acostumarem a não receber atenção que não aquelas das horas certas; aos maiores, estavam proibidos abraços, toques, afagos ou qualquer “manifestação familiar burguesa”. Roupas, cortes de cabelo e berços deveriam ser absolutamente iguais, pois no catecismo marxista, a individualidade é um pecado. Algum tipo de trabalho era imposto aos que pudessem com ele. Soube-se que uma das pretensões do ditador era começar nessas creches a formar forças policiais totalmente obedientes ao estado e ligados seus elementos não por sentimentos como o da camaradagem ou o da solidariedade, mas o da disciplina e o da uniformidade de comportamento. Imagine, se puder o leitor, o sofrimento desses pequeninos. Quando Ceausescu foi derrubado, havia na Romênia 700 dessas creches, que abrigavam (melhor dizer aprisionavam) 170.000 crianças desvalidas. Soube-se então das bestialidades cometidas: abandono, fome, sevicias, abusos (sexuais, muitas vezes). Em muitas creches não havia agua corrente ou eletricidade regular. Em outras, o aquecimento era deficiente. Outro triste fato: crianças foram encontradas amarradas em suas camas, em meio a dejetos, por serem mais agitadas que as outras.

O novo governo preocupou-se com o problema. Buscou ajuda junto em setores mais adiantados no estudo de trauma de crianças, nos países mais desenvolvidos, enquanto tentava adoções na própria Romênia, onde isso era bastante difícil. Afinal, tratava-se de um país devastado.

Temos relatos de dois cientistas e professores universitários americanos que atenderam o governo romeno no assistir essas crianças. Estarrecidos com o que viram, estenderam esses estudos e acompanham muitas dessas crianças ao longo dos anos. Pelo menos, seus sofrimentos serviram de base para o estudo do desenvolvimento cognitivo infantil.

O professor Charles A. Nelson III, da Universidade de Harvard (e que já fez trabalhos no Brasil), relata a situação das crianças romenas que estudou: “Havia problemas cognitivos, emocionais, de saúde mental. O cérebro daquelas crianças era menor”. Em um dos orfanatos, onde as crianças eram maiores, ficou abismado pela maneira com que o agarravam, em busca de um gesto de amizade, um afago, um contato amigável, qualquer que fosse.

Outro cientista americano que participou da assistência ao governo romeno, foi o professor Nathan Fox, da Universidade de Maryland. Ele conta de seu estarrecimento ao entrar pela primeira vez no berçário de uma dessas creches e verificar algo que nunca tinha encontrado nos berçários que conhecera em sua vida profissional: “Era assustador o silêncio! Eles não choravam!” – Aquelas crianças haviam experimentado a falta de estímulos por meses, não tinham respostas com choros e não eram mais crianças cerebralmente comuns.

Muitas das crianças acabaram por serem adotadas nos EUA ou em países europeus, pelos esforços do governo e dos estudiosos estrangeiros chamados por ele. Os estudos de Nathan Fox e de Charles Nelson continuam até hoje. Mas é incalculável o dano causado àquelas crianças, hoje adultos. Poucos serão pessoas normais. Seu sofrimento serve ainda hoje para as conclusões que vão fazendo os acadêmicos americanos. Uma delas é a de que, nos seis primeiros anos de vida, anos mais importantes do desenvolvimento cerebral cognitivo, as adversidades são irremediavelmente traumáticas. As interações, os estímulos, os contatos, os olhares, as brincadeiras, o afeto, enfim, são da maior importância para o aprendizado, o conhecimento e o equilíbrio na escola, no trabalho e na futura vida social. Essa, uma das lições que nos deixam os sofridos “decretinhos”, vítimas inocentes do delírio marxista de um ditador, o “progressista” Nicolae Ceausescu. Outra lição: atenção para com os nossos “progressistas”, aqueles que acham, como achava Paulo Freire, que a família é “opressora”, e que as crianças devem ser educadas pelo Estado e não pelos pais. As monstruosidades das tiranias, como aquela dos pobres “decretinhos”, começam por aí.