COMPARTILHAR

A sociedade portuguesa, formada em boa parte dentro do embate entre o cristianismo e o islamismo, embate que durou séculos na Península Ibérica, é, até hoje, muito religiosa. As festas tradicionais, em todos os locais, são geralmente associadas a santidades. A maior delas é a de Santo Antônio, em junho e em Lisboa, onde nasceu o santo e doutor da Igreja; a segunda é a de São João Batista, no Porto, em 23 de junho. A terceira, a Feira Afonsina em Guimarães, também em junho, é mais histórica que religiosa, pois celebra a cidade de Guimarães, primeira capital de Portugal, assim reconhecida no século XI, quando Portugal era apenas condado; e celebra o primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques (1109?-1185), que ali nasceu. É organizada pela Câmara Municipal, mas tem forte presença religiosa, inclusive com a participação da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, igreja local apenas de cônegos, fundada no século X.

A história de São Vicente (São Vicente de Saragoça), inscrita na historiografia portuguesa, mostra como a religiosidade está presente na cultura da sociedade local. O santo nasceu em data incerta, no século III da era cristã, em Huesca, na hoje Espanha, e morreu martirizado em Valência, também na Espanha, no ano 304. Foi vítima da chamada décima perseguição aos cristãos, desfechada pelo imperador romano Deocleciano e seu filho adotivo Galério, e que durou dez anos – a chamada Era dos Mártires. Iniciada em 23 de fevereiro de 303 (Dia da Terminália, em que todos os cristãos em Roma e nas províncias deveriam ser exterminados) a mortandade só terminou em 313 com o a chegada ao trono do imperador Constantino. O governador da província romana de Hispânia, onde vivia São Vicente, Públio Daciano, interrogou pessoalmente o santo, dizem os registros, e exigiu que ele oferecesse dádivas aos deuses romanos. Como São Vicente se recusasse, alegando servir a um só Deus, foi supliciado até a morte, por ordem do governador. Morto, Daciano ordenou que seu corpo fosse abandonado para servir de pasto aos corvos. Há uma lenda de que um corvo tomou conta do corpo do santo e não permitiu que nenhum animal se aproximasse. Sabendo disso, Daciano ordenou que o corpo, atado a uma pedra, fosse lançado ao mar, ou, segundo outros, que fosse deixado num barco à deriva. Diz ainda a lenda que o corpo foi, intacto, dar à praia, próximo a Sagres, onde foi recolhido por cristãos, que o enterram em lugar secreto. A história do santo faz pausa aqui e só tem sequência oito séculos depois, quando D. Afonso Henriques fundava as bases do Reino de Portugal.

Em 1139, D. Afonso Henriques, na Batalha de Ourique, no sul de Portugal, derrota os mouros (como eram chamados os muçulmanos), chefiados por cinco reis e em número muito maior de que os combatentes portugueses. Essa batalha marcaria a criação de Portugal como reino, até então apenas um condado espanhol. D. Afonso teria sido informado, por dois prisioneiros moçárabes (muçulmanos cristãos ou descendentes cristãos de fala árabe) que tinham sido engajados à força nos exércitos mouros e agora tinham sido libertados, sobre o possível esconderijo dos despojos de São Vicente. Eles teriam sido levados para onde hoje é o cabo de São Vicente e ali estariam escondidos. O local só era sabido de cristãos mais influentes, que passavam a informação entre gerações. Diz a crônica que D. Afonso fez uma trégua na guerra contra os mouros e se abalou de Coimbra até o sul em busca da tumba, mas não a encontrou, e voltou para Coimbra. A história do santo é retomada três décadas depois, em 1173, segundo o cronista Duarte Galvão (1446-1517). Lisboa, liberta definitivamente dos mouros em 1147, era agora uma cidade da cristandade, e as notícias do esconderijo da ossada sagrada de São Vicente, sempre levadas pelos moçárabes, chegaram outra vez a D. Afonso Henrique, que ordenou nova busca. Encontrada (ao menos presume-se) a ossada santa, foi a mesma levada por mar a Lisboa, onde foi recebida com grande devoção e onde está até hoje. Conta a lenda que um corvo acompanhou o esquife em toda a viagem, e o seguiu até a catedral da Sé, onde passou a viver. Conta ainda Mestre Estevão, cronista da Sé de Lisboa entre 1173 e 1185, que houve uma disputa pelas relíquias do santo, entre a Igreja de Santa Justa, o Mosteiro de São Vicente de Fora e a Catedral da Sé, onde D. Afonso Henrique mandou que ficassem e onde permanecem até hoje. Duarte Galvão, em seu português medieval, também a relata:

“Elles chegados ao Porto de Lisboa não quizeram logo tirar fóra o Corpo do gloriozo Martyr, com receo de lho tomarem por força, e aguardando a noite levaram-no escondidamente á Egreja de Santa Justa, o qual sendo logo sabido ao outro dia de manhã, segundo Deos não quer sua gloria escondida, toda a Cidade corria para alli e uns diziam que era bem de o poerem em São Vicente de Fòra, e outros que mais rezão era estar na Sé, e neste debate D. Gonçalo Viegas Adiantado, mor de Cavallaria del-Rei, que era presente, vendo quão errada cousa era arguir-se mal e arroido sobre cousa tão santa e devota, que mais com rezão deveriam tolhe-lo, fez cessar o alvoroço da gente e que esperassem até que El-Rei soubesse e que mandasse o que sua mercê fosse nesso.” São Vicente foi para a Catedral da Sé, é o padroeiro do Patriarcado de Lisboa e da Diocese do Algarve. No brasão de Lisboa, aparecem uma nau e dois corvos, símbolo das aves que teriam protegido o santo, quando do abandono do corpo após o martírio e quando do traslado, do Algarve para Lisboa. Basta olhar — e interpretar — o escudo lisboeta para que se tenha uma mostra da história, da lenda, da cultura e da religiosidade portuguesas.