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Estive, no início deste mês, na Cidade de Goiás, nossa histórica e querida ex-capital. Ali fui cumprir dupla promessa, feita há tempos, para dois estudiosos, inteligentes, dedicados e abnegados amigos.

A primeira visita foi ao Gabinete Litterário Goyano (a grafia é essa mesma), primeira biblioteca pública do Estado, instituição quase bicentenária, fundada que foi em 1864. Um casarão tradicional abriga o Gabinete, hoje de pé e restaurado graças aos esforços enormes do ex-presidente, o jovem escritor e advogado Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, que me aguardava. Fica na Rua Couto Magalhães, a poucos passos da casa de Cora Coralina, lugar conhecido na velha capital.

Poucos sabem da luta de Rafael Fleury para manter de pé (física e espiritualmente) o Gabinete. Uma amostra dessa luta ele expressou em vibrante artigo publicado no “Diário da Manhã” do dia 24 de agosto de 2018. Se você, leitor, preza a cultura goiana, e as nossas coisas, leia. É um brado de alerta e até de socorro, o que Rafael Fleury faz ecoar ali.

A célebre crônica de Machado de Assis saudando a criação do Gabinete Litterário | Foto: Divulgação

Algumas revelações que ele me fez durante a visita me surpreenderam, e por certo também vão surpreender o leitor. Como a de que o Gabinete teve sócios honorários ilustres, como o Visconde de Taunay (1843-1899), que doou alguns livros, e o editor que publicou Machado de Assis, Baptiste-Louis Garnier (1823-1893), dono da célebre Livraria Garnier, fundada no Rio de Janeiro em 1844.

E a de que — sensacional descoberta de Rafael — nosso Machado de Assis, em crônica publicada no “Diário do Rio de Janeiro” de 20 de fevereiro de 1866, saudou a criação do Gabinete. “Que o Gabinete Litterário não esmoreça na sua tarefa; modesto e limitado, ainda, pode desenvolver-se até prestar à província de Goyaz serviços de inmenso alcance” — reza trecho da crônica. Crônica que Rafael Fleury fez gravar em bronze e fixar na entrada do casarão que abriga o Gabinete.

O Gabinete guarda documentos históricos preciosos, que não tivesse Rafael Fleury sido paciente, operoso e persistente, poderiam ter-se perdido nas infiltrações do casarão quase em ruínas, que ele encontrou e que entregou recuperado — a duras penas e sem auxílio governamental — ao fim de seu mandato, ao sucessor Paulo Brito do Prado.

Livros antigos, atas, mapas (inclusive alguns elaborados pelos engenheiros militares de Caxias retratando o teatro das principais batalhas da Guerra do Paraguai), registros oficiais da capitania e da província estão ali preservados, prontos para consulta. Uma preciosidade.

Fico sabendo da luta de Rafael Fleury para conseguir recursos para restaurar o casarão, organizar e preservar a documentação que ele abriga. E espanta ver que os governos, que gastam tanto com coisas sem importância, inclusive viagens de figurões, seus acepipes e seus luxos, não tenham recursos para preservação de sua memória, das páginas mais importantes de sua história. Meus cumprimentos respeitosos ao Rafael. O futuro lhe agradecerá, e quem ali pesquisa o faz desde já.

Arquivo Frei Simão Dorvi

A segunda visita foi ao Arquivo Frei Simão Dorvi, e à sua coordenadora, Maria de Fátima Silva Cançado. Maria de Fátima, aliás que, como bibliotecária, deu também sua contribuição na organização do Gabinete Litterário.

Elder Camargo: uma das personalidades mais marcantes na historiografia de Goiás | Foto: Divulgação

Arquivo Frei Simão Dorvi, com sede na Rua D’Abadia, é o nome de fantasia da Fundação Educacional da Cidade de Goiás (Fecigo), cujo presidente é o advogado, escritor e memorialista Elder Camargo de Passos, uma das personalidades mais marcantes na historiografia do Estado e sobretudo da Cidade de Goiás.

Foi Elder Camargo quem, na década de 1960 criou, liderando um grupo de jovens na Cidade, uma organização cultural — a Organização Cultural de Artes e Tradições (Ovat), a que Goiás muito ficou devendo, por promover as tradições e a cultura locais, que não se perderam, como costuma ocorrer pelo País afora.

Prova disso é a preservação da Procissão do Fogaréu e das demais comemorações da Semana Santa. Estudioso da história de Goiás em geral, da vida do artista Veiga Valle em particular, Elder Camargo tem vários livros publicados.

Maria de Fátima: em defesa da preservação da história | Foto: Divulgação

Certa vez, lembro-me, discursando em uma solenidade em São Paulo, quando governava Goiás, deixei os paulistas intrigados e boquiabertos, ao lhes revelar fato histórico levantado por Elder Camargo: a cidade de Goiás havia sido capital de São Paulo por quase três anos, quando ali aportou e despachou, trazido pela abundância do ouro, o governador geral da Capitania de São Paulo, a que Goiás pertencia, Dom Luís Mascarenhas, em 1739. Essa chegada, aliás, é relatada pelo também escritor Edival Lourenço em seu extraordinário romance histórico “Naqueles Morros, Depois da Chuva”. Nenhuma das autoridades paulistas presentes conhecia o fato.

Tal como ocorreu com o Gabinete Litterário, impressionou-me o cuidado com que é tratado o Arquivo. Fátima se desdobra e é visível o carinho – até maternal – que ela dedica ao casarão, aqui também recuperado com doações obtidas por Elder, suas instalações, seus documentos, sua coleção de artefatos indígenas, cuidadosamente preservados e dispostos nas vitrines. E é só entusiasmo e alegria, essa senhora, com o trabalho que faz. Que Deus a preserve assim, Fátima, e preserve também, para que mais possamos usufruir de sua dedicação, nosso Elder Camargo.

Duas palavrinhas sobre Frei Simão Dorvi, o padre italiano, nascido em 1907 na província de Piacenza, que cuidava do acervo histórico da basílica de Bolonha, e aportou no Brasil em 1936, e na Cidade de Goiás em 1938.

Lembro-me de sua figura afável e bondosa, quando visitei, algumas vezes, seu arquivo documental, na década de 1970. Estudioso de história e de arte, documentarista, Frei Simão encontrou em Goiás um terreno fértil para o trabalho de que gostava. Foi ele quem fundou o Museu de Arte Sacra da Boa Morte, em 1958.

Em vinte anos de trabalho pesquisando e organizando os documentos da cidade de Goiás e das vizinhanças, juntou cerca de 2.500 volumes de documentos, preservados para pesquisa dos interessados. Graças a seus esforços, o Estado criou ali, em 1975, a Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás. Catequista no início de sua estada entre nós e posteriormente totalmente dedicado às pesquisas e à organização do acervo documental, Frei Simão não se incluía na nova Igreja Católica que surgia, uma igreja mais voltada para a política, e mais de uma vez se aborreceu pelas cobranças que recebia dos colegas militantes. Voltou a Bolonha em 1979 e lá faleceu em 1996.

Goiás, cidade, e Goiás, Estado, muito devem ao Frei Simão. Mas o desvelo de Elder Camargo e de Maria de Fátima são uma segurança de continuidade. Quando lá cheguei, em visita, um jovem casal pesquisava, sob o olhar prestativo — e vigilante — de Maria de Fátima. Arquivos importantes, objeto de doação, haviam sido incorporados, como o da socióloga Mary Baiocchi e o do escritor José Mendonça Teles.

Aproveitei a viagem — promessa feita a Rafael Fleury e a Maria de Fátima — para uma visita a Elder Camargo, a quem há anos não via, em sua agradável residência. Saí de lá com seu último livro: “Goyaz — De Arraial a Patrimônio Mundial”.

Muito respeito, Rafael, Fátima e Elder. Vocês, quase anônimos, dedicados, altruístas, fazem parte do Brasil de que nos orgulhamos, muito longe daquele outro, que sequer merece citação aqui.