A luta bem-sucedida de Rafael Fleury e Elder Camargo para preservar a história de Goiás
20 novembro 2022 às 00h00

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Estive, no início deste mês, na Cidade de Goiás, nossa histórica e querida ex-capital. Ali fui cumprir dupla promessa, feita há tempos, para dois estudiosos, inteligentes, dedicados e abnegados amigos.
A primeira visita foi ao Gabinete Litterário Goyano (a grafia é essa mesma), primeira biblioteca pública do Estado, instituição quase bicentenária, fundada que foi em 1864. Um casarão tradicional abriga o Gabinete, hoje de pé e restaurado graças aos esforços enormes do ex-presidente, o jovem escritor e advogado Rafael Ribeiro Bueno Fleury de Passos, que me aguardava. Fica na Rua Couto Magalhães, a poucos passos da casa de Cora Coralina, lugar conhecido na velha capital.
Poucos sabem da luta de Rafael Fleury para manter de pé (física e espiritualmente) o Gabinete. Uma amostra dessa luta ele expressou em vibrante artigo publicado no “Diário da Manhã” do dia 24 de agosto de 2018. Se você, leitor, preza a cultura goiana, e as nossas coisas, leia. É um brado de alerta e até de socorro, o que Rafael Fleury faz ecoar ali.

Algumas revelações que ele me fez durante a visita me surpreenderam, e por certo também vão surpreender o leitor. Como a de que o Gabinete teve sócios honorários ilustres, como o Visconde de Taunay (1843-1899), que doou alguns livros, e o editor que publicou Machado de Assis, Baptiste-Louis Garnier (1823-1893), dono da célebre Livraria Garnier, fundada no Rio de Janeiro em 1844.
E a de que — sensacional descoberta de Rafael — nosso Machado de Assis, em crônica publicada no “Diário do Rio de Janeiro” de 20 de fevereiro de 1866, saudou a criação do Gabinete. “Que o Gabinete Litterário não esmoreça na sua tarefa; modesto e limitado, ainda, pode desenvolver-se até prestar à província de Goyaz serviços de inmenso alcance” — reza trecho da crônica. Crônica que Rafael Fleury fez gravar em bronze e fixar na entrada do casarão que abriga o Gabinete.
O Gabinete guarda documentos históricos preciosos, que não tivesse Rafael Fleury sido paciente, operoso e persistente, poderiam ter-se perdido nas infiltrações do casarão quase em ruínas, que ele encontrou e que entregou recuperado — a duras penas e sem auxílio governamental — ao fim de seu mandato, ao sucessor Paulo Brito do Prado.
Livros antigos, atas, mapas (inclusive alguns elaborados pelos engenheiros militares de Caxias retratando o teatro das principais batalhas da Guerra do Paraguai), registros oficiais da capitania e da província estão ali preservados, prontos para consulta. Uma preciosidade.
Fico sabendo da luta de Rafael Fleury para conseguir recursos para restaurar o casarão, organizar e preservar a documentação que ele abriga. E espanta ver que os governos, que gastam tanto com coisas sem importância, inclusive viagens de figurões, seus acepipes e seus luxos, não tenham recursos para preservação de sua memória, das páginas mais importantes de sua história. Meus cumprimentos respeitosos ao Rafael. O futuro lhe agradecerá, e quem ali pesquisa o faz desde já.
Arquivo Frei Simão Dorvi
A segunda visita foi ao Arquivo Frei Simão Dorvi, e à sua coordenadora, Maria de Fátima Silva Cançado. Maria de Fátima, aliás que, como bibliotecária, deu também sua contribuição na organização do Gabinete Litterário.

Arquivo Frei Simão Dorvi, com sede na Rua D’Abadia, é o nome de fantasia da Fundação Educacional da Cidade de Goiás (Fecigo), cujo presidente é o advogado, escritor e memorialista Elder Camargo de Passos, uma das personalidades mais marcantes na historiografia do Estado e sobretudo da Cidade de Goiás.
Foi Elder Camargo quem, na década de 1960 criou, liderando um grupo de jovens na Cidade, uma organização cultural — a Organização Cultural de Artes e Tradições (Ovat), a que Goiás muito ficou devendo, por promover as tradições e a cultura locais, que não se perderam, como costuma ocorrer pelo País afora.
Prova disso é a preservação da Procissão do Fogaréu e das demais comemorações da Semana Santa. Estudioso da história de Goiás em geral, da vida do artista Veiga Valle em particular, Elder Camargo tem vários livros publicados.

Certa vez, lembro-me, discursando em uma solenidade em São Paulo, quando governava Goiás, deixei os paulistas intrigados e boquiabertos, ao lhes revelar fato histórico levantado por Elder Camargo: a cidade de Goiás havia sido capital de São Paulo por quase três anos, quando ali aportou e despachou, trazido pela abundância do ouro, o governador geral da Capitania de São Paulo, a que Goiás pertencia, Dom Luís Mascarenhas, em 1739. Essa chegada, aliás, é relatada pelo também escritor Edival Lourenço em seu extraordinário romance histórico “Naqueles Morros, Depois da Chuva”. Nenhuma das autoridades paulistas presentes conhecia o fato.
Tal como ocorreu com o Gabinete Litterário, impressionou-me o cuidado com que é tratado o Arquivo. Fátima se desdobra e é visível o carinho – até maternal – que ela dedica ao casarão, aqui também recuperado com doações obtidas por Elder, suas instalações, seus documentos, sua coleção de artefatos indígenas, cuidadosamente preservados e dispostos nas vitrines. E é só entusiasmo e alegria, essa senhora, com o trabalho que faz. Que Deus a preserve assim, Fátima, e preserve também, para que mais possamos usufruir de sua dedicação, nosso Elder Camargo.
Duas palavrinhas sobre Frei Simão Dorvi, o padre italiano, nascido em 1907 na província de Piacenza, que cuidava do acervo histórico da basílica de Bolonha, e aportou no Brasil em 1936, e na Cidade de Goiás em 1938.
Lembro-me de sua figura afável e bondosa, quando visitei, algumas vezes, seu arquivo documental, na década de 1970. Estudioso de história e de arte, documentarista, Frei Simão encontrou em Goiás um terreno fértil para o trabalho de que gostava. Foi ele quem fundou o Museu de Arte Sacra da Boa Morte, em 1958.
Em vinte anos de trabalho pesquisando e organizando os documentos da cidade de Goiás e das vizinhanças, juntou cerca de 2.500 volumes de documentos, preservados para pesquisa dos interessados. Graças a seus esforços, o Estado criou ali, em 1975, a Faculdade de Filosofia da Cidade de Goiás. Catequista no início de sua estada entre nós e posteriormente totalmente dedicado às pesquisas e à organização do acervo documental, Frei Simão não se incluía na nova Igreja Católica que surgia, uma igreja mais voltada para a política, e mais de uma vez se aborreceu pelas cobranças que recebia dos colegas militantes. Voltou a Bolonha em 1979 e lá faleceu em 1996.
Goiás, cidade, e Goiás, Estado, muito devem ao Frei Simão. Mas o desvelo de Elder Camargo e de Maria de Fátima são uma segurança de continuidade. Quando lá cheguei, em visita, um jovem casal pesquisava, sob o olhar prestativo — e vigilante — de Maria de Fátima. Arquivos importantes, objeto de doação, haviam sido incorporados, como o da socióloga Mary Baiocchi e o do escritor José Mendonça Teles.
Aproveitei a viagem — promessa feita a Rafael Fleury e a Maria de Fátima — para uma visita a Elder Camargo, a quem há anos não via, em sua agradável residência. Saí de lá com seu último livro: “Goyaz — De Arraial a Patrimônio Mundial”.
Muito respeito, Rafael, Fátima e Elder. Vocês, quase anônimos, dedicados, altruístas, fazem parte do Brasil de que nos orgulhamos, muito longe daquele outro, que sequer merece citação aqui.
