Priorizar transporte individual nas cidades é assumir falência da coletividade
29 setembro 2019 às 00h00

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Lógica do veículo particular como essencial na hora de se pensar em intervenções nas vias públicas é trabalhar pelo estrangulamento da mobilidade

“A conta não é minha, eu não uso o transporte coletivo.” A alegação é um típico equívoco de quem cresceu e se acomodou a enxergar o trânsito de uma cidade pela lógica do veículo particular que, raramente, tem mais de uma pessoa por automóvel nas ruas e avenidas de qualquer município. O ônibus, tratado na maioria dos casos como a única opção para quem não consegue se livrar dele, nem que seja com uma motocicleta financiada, é sim um modal de mobilidade urbana que deve ter sua conta partilhada com o motorista e o piloto que pagaram pelos seus carros ou motos.
Este não seria o tema a ser discutido na semana, mas uma mensagem de áudio de um ouvinte em uma rádio de Goiânia despertou a necessidade de abordar o assunto. “Por que a prefeitura não alarga as ruas e avenidas da cidade para melhorar o trânsito?” A pergunta evidenciou a prioridade que a capital – e diversos outros municípios – dá ao transporte individual. Podemos criticar a gestão por optar pela construção de viadutos e trincheiras a cada dez anos ou menos tempo. Mas é o que uma parcela considerável da população espera.
A modificação na infraestrutura viária que retira um congestionamento de um cruzamento só para empurrar o problema para alguns quilômetros adiante escancara que o transporte coletivo, a pessoa na bicicleta e o pedestre não têm vez no planejamento da mobilidade daquela cidade. Como resposta ao ouvinte, um participante do programa de debate da emissora responde que as calçadas podem ser encurtadas para aumentar a quantidade de faixas ou a largura das ruas e avenidas, o que, no pensamento da pessoa, melhoraria o trânsito.
Se o pedestre já tem dificuldade para ser notado pelos motoristas em seus carros e motos nas ruas e avenidas, até quando sinaliza para atravessar na faixa destinada a quem está a pé, imagine com calçadas ainda mais estreitas! Vias mais largas e pouco fiscalizadas por equipamentos eletrônicos incentivam os condutores a desrespeitar a velocidade máxima permitida, o que amplia a possibilidade de termos mais atropelamentos e acidentes. E isso impacta diretamente no aumento de gastos com a saúde pública, que receberá os feridos do projeto de antimobilidade individualista das cidades.
O poder público tem sua parcela de culpa porque incentiva que as pessoas comprem veículos para investir menos no transporte coletivo. Muitos municípios não destinam qualquer recurso para subsidiar parte da rede de ônibus que atende a cidade. É aí que se faz necessário dividir a conta da tarifa, que hoje em Goiânia é de R$ 4,30. O valor é caro para um serviço prestado sem a qualidade esperada pelos usuários, que dependem do modelo para chegar ao trabalho, escola, faculdade ou se locomover em grandes distâncias.
Mas a eficiência e conforto no sistema não virão se os donos de veículos próprios não arcarem com parte do custo do transporte coletivo. E, nesse ponto, a Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos (CMTC) defende a criação de um fundo estadual que cubra os benefícios de gratuidade. A medida possibilitaria reduzir o preço da passagem para o restante dos usuários, que diminuem a cada ano e se jogam assim que podem em um trânsito cada vez mais pesado com a compra de um carro ou moto.
Há quem defenda que a discussão fique restrita ao aumento do licenciamento anual dos automóveis particulares apenas nas cidades da Região Metropolitana de Goiânia. Mas é aí que mora o erro. A ideia de que não usar o transporte coletivo torna da pessoa livre do peso do custo de operação do sistema de ônibus é um equívoco. É uma tentativa irracional de defender a lógica de uma mobilidade individualista que se agrava com um motorista que bate farol alto e acelera para que outro condutor não o ultrapasse em uma rua, avenida ou evitar parar antes da faixa para que o pedestre possa atravessar.
A impressão equivocada de apropriação indevida do trânsito como extensão da propriedade privada de quem está dentro de um veículo particular precisa deixar de existir. A redução do valor da passagem de ônibus tem de vir junto com o investimento em corredores exclusivos, a cobrança de estacionamento nas regiões centrais das cidades por meio de parquímetros, a proibição da circulação de automóveis nas vias consideradas de patrimônio histórico e arquitetônico, o aumento das linhas que ligam os bairros, não apenas de um terminal a outro, a cobrança de taxa por emissão de gases poluentes dos proprietários de carros e motos e a ampliação da rede de ciclorrotas, ciclofaixas e ciclovias.
Rede cicloviária
A rede cicloviária das cidades necessita de interligação com o transporte público, principalmente nos terminais de ônibus, estrutura que ajudaria a mudar a lógica da mobilidade individualista de cidades como Goiânia. Os viadutos continuariam a ser construídos, mas com uma intensidade cada vez menor. Os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dão conta de que Goiás tem 4 milhões de veículos registrados no Departamento de Trânsito do Estado de Goiás (Detran-GO).
Apenas Goiânia concentra 1.225.105 dos automóveis do Estado, seguida de 292.964 veículos na vizinha Aparecida de Goiânia. Apenas as duas cidades da Região Metropolitana têm mais de 1,5 milhão de carros e motos nas ruas. A capital tem 1.516.113 habitantes e Aparecida 578.179, segundo a estimativa de 2019 do IBGE. São populações relativamente pequenas quando considerados os mais de 12 milhões de moradores da cidade de São Paulo. O que mostra que ainda é possível mudar a lógica do planejamento em mobilidade da Grande Goiânia.
Mas todos precisam estar dispostos a assumir sua parcela de responsabilidade. Desde o poder público, que tem de mudar urgentemente as prioridades dadas quase que exclusivamente ao trânsito voltado aos veículos particulares e investir verdadeiramente no subsídio ao transporte coletivo. E a população, que ainda não compreendeu que o modelo de aquisição de automóveis para o modelo individual de ocupação das ruas e avenidas deve vir tributado do impacto que a coletividade sente ao optar-se por não utilizar o sistema de ônibus. Ao contrário do que você pensa, a conta é sua também. Principalmente sua.