Primeiro debate presidencial nos Estados Unidos dá sinal mais grave dos riscos da desinformação

04 outubro 2020 às 00h01

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Quando um candidato usa o momento considerado mais importante da discussão de propostas para reproduzir conteúdo mentiroso ou distorcido a convertidos, todos perdem

O primeiro debate presidencial dos Estados Unidos tem fundamental importância para os eleitores norte-americanos e para todo o mundo. A nação hoje presidida por Donald Trump é a maior potência econômica, bélica e diplomática do planeta. Pode ser passada em breve na economia pela China? É possível. Mas o que ocorre nos Estados Unidos tem reflexo em todos os cantos da Terra.
Mas o que se observou em pouco mais de 1 hora e 30 minutos foi um tremendo show de horrores. O sistema combinado entre as campanhas do republicano e candidato a reeleição Donald Trump e de seu oponente, o democrata ex-vice-presidente Joe Biden, não permitia o corte do som do microfone do concorrente que não estivesse em sua vez de falar durante a transmissão. E Trump se aproveitou desta brecha para interromper quase todas as tentativas de respostas de Biden. Foram 93 interrupções, das quais 71 feitas pelo candidato a reeleição.
O republicano criticou até o uso, que Trump considera exagerado, de máscara de Biden para se proteger do coronavírus. Chegou a dizer que seu adversário utiliza uma máscara gigante, como se isso fosse um demérito para o concorrente à Casa Branca pelo Partido Democrata. Curiosamente, três dias depois do debate, o presidente informou que está com Covid-19. Não só Trump, mas também a primeira-dama Melania Trump. Durante o debate, o presidente afirmou que se fosse Biden o presidente durante a pandemia, os Estados Unidos estariam em pior situação diante do avanço da doença. Como?
Isolamento social atacado
Trump utiliza a mesma tática adotada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no Brasil: atacar aqueles que, em algum momento, defendem ou propuseram o aumento do isolamento social para conter a taxa de infecção, internações e mortes por Covid-19 em seu país. O republicano acusou Biden de querer fechar tudo. Sabemos que nem lá muito menos aqui tivemos um lockdown (fecha-tudo). O máximo que chegamos a verificar nos dois primeiros meses da pandemia, até o final de abril, foi uma redução da circulação de pessoas nas ruas e a restrição a parte das atividades consideradas não essenciais durante a pandemia.
Se querer fechar tudo fosse uma acusação, indicar remédio sem comprovação para tratar a Covid-19 como se tivesse eficiência 100% verificada por cientistas ou prescrever água sanitária poderiam ser considerados crimes? Isso Trump não explicou muito bem. Mas para os eleitores indecisos norte-americanos, o debate não ajudou a tirar dúvidas sobre as propostas dos candidatos porque os planos de governo do republicano e do democrata não fizeram parte do programa.
Sim, um show. Ao qual Trump está muito mais acostumado a lidar do que Biden, que se perdeu diante dos ataques do presidente, evitou encarar o adversário grande parte da transmissão e chegou a gaguejar diversas vezes enquanto tentava responder a perguntas do âncora, o jornalista Chris Wallace. É preciso reconhecer que as críticas à escolha do mediador foram injustas, porque o profissional fez perguntas duras a ambos os candidatos a presidente. Não poupou ninguém.

Habilidade na TV
Ainda sobre a habilidade inegável de Trump diante das câmeras, a experiência como apresentador do programa “O Aprendiz”, que aqui teve João Doria e Roberto Justus como versões brasileiras do presidente e empresário norte-americano na TV, ficou ainda mais nítida. Não deixava Biden concluir suas respostas, fazia ataques ao adversário e confundia o raciocínio do democrata. Mas usou de artifícios sujos, como a distorção de informações, ataques a detalhes da vida pessoal da família do ex-vice-presidente e mentiras repetidas em discursos e redes sociais. Falou para os apoiadores incondicionais. Aos indecisos, pouco ou nada acrescentou para ganhar seus votos.
Mas Biden, que passou metade do debate apagado e perdido, também não soube se vender para o eleitor que ainda não decidiu se irá votar. São aproximadamente 10% os indecisos nos Estados Unidos neste momento. Que precisam se registrar para votar no dia 3 de novembro. Mesmo com vantagem que chega a 7% nas intenções de votos, o democrata não tem a garantia de que será o próximo presidente norte-americano. Basta lembrar que Al Gore venceu George W. Bush nos votos, o mesmo ocorreu com Hillary Clinton sobre Trump, mas perdeu em Estados que davam mais delegados ao adversário. Como a eleição americana não é decidida diretamente pelo voto, mas pela quantidade de delegados que cada Estado dá ao candidato, a campanha virtual dificulta ainda mais que o adversário de Trump esteja presente nas localidades em que o voto pode ser decisivo.
O mesmo vale para Trump, que desde quinta-feira, 1º, passou a cumprir quarentena por estar com Covid-19. O presidente e a primeira-dama provavelmente foram infectados porque tiveram contato antes, durante e depois do debate com a assessora Hope Hicks, que, um dia antes da confirmação dos testes positivos feitos por Trump e Melania, divulgou que havia contraído a doença. No momento em que o republicano precisa tentar tirar a diferença de votos de Biden, a 30 dias da eleição, veio a necessidade de reclusão na Casa Branca.
Supremacistas brancos
Um ponto que pegou muito mal para Trump nos Estados Unidos e que obrigou o presidente a dar declarações na quinta-feira em um sentido completamente oposto às afirmações feitas durante o debate foi a discussão sobre condenar os supremacistas brancos – que aqui vamos chamar de racistas, porque é o que esses grupos extremistas e criminosos são. Ao ser questionado mais de uma vez pelo mediador do debate, Trump disse “Proud Boys, stand back and stand by” (recuem e aguardem). O candidato a reeleição não só se negou a condenar as ações de grupos racistas, como fez uma espécie de mensagem de apoio ao vivo a um dos supremacistas norte-americanos, os Proud Boys (Meninos Orgulhosos).
A repercussão foi tão grande que, em entrevista à Fox News, Trump precisou voltar atrás sobre o que disse no debate e declarar publicamente: “I condemn the KKK, I condemn all white supremacists, I condemn the Proud Boys. I don’t know much about the Proud Boys, almost nothing, but I condemn that” (Eu condeno a Ku Klux Klan, eu condeno todos supremacistas brancos, eu condeno os Proud Boys. Eu não sei muito sobre os Proud Boys, quase nada, mas eu os condeno). Foi a forma que a campanha do republicano encontrou de tentar esfriar o assunto e reduzir o impacto negativo na tentativa de reeleição do presidente.
Mas há outro ponto, que foi abordado por Trump no final do debate, que causou bastante espanto. Após convocar os Proud Boys a ficarem no aguardo para agirem quando necessário, o republicano questionou a lisura da votação por correio e disse que a eleição pode ser fraudada. Trump deixou claro no debate que não aceitará o resultado das eleições caso seja derrotado, que irá levar a questão à Justiça. Pediu aos seus eleitores que vigiem os locais de votação para evitar supostas irregularidades. Seria um claro recado para a criação de uma milícia em defesa da continuidade de Trump no poder a qualquer custo.
Fraude eleitoral?
Precisamos lembrar que no Brasil tivemos questionamentos infundados e repetidos excessivamente por Bolsonaro durante o processo eleitoral e depois, quando afirmou que teria provas nunca apresentadas de que teria vencido no primeiro turno. O assunto foi esquecido, mas a comprovação das afirmações nunca foi apresentada. O debate americano de terça-feira evidenciou que não só o processo eleitoral está cada vez mais ameaçado por ações incentivadas por políticos de índole autoritária e narcisista, mas deixou um alerta para o mundo: que não entreguemos nossa liberdade e direitos nas mãos de pessoas que não respeitam as leis e a nação, que propagam a bandeira do patriotismo em benefício próprio ou de suas famílias.
Hoje os Estados Unidos estão envergonhados com o debate que viram na TV, definido como o mais caótico de todos. Amanhã seremos nós a nos curvar à corrosão das instituições em nome de um patriotismo que defende os próprios interesses, não se importa com a verdade e incentiva a intimidação armada aos opositores?