O dia é 9 de janeiro de 2023. O Brasil amanhece em ritmo de contragolpe, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Alexandre de Moraes puxando a fila. Enquanto o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) ordena a prisão dos manifestantes acampados em frente ao quartel-general de Brasília e o afastamento do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), o presidente da República recém-empossado articula uma reunião com todos os governadores para mostrar um unânime repúdio à intentona do dia anterior.

As medidas se mostram muito bem-sucedidas. Com a reprovação imediata e esmagadora da opinião pública à baderna terrorista, os supostos patriotas são colocados em dezenas de ônibus e conduzidos para o ginásio da Academia Nacional da Polícia Federal para triagem. De lá, seguirão para a Papuda e a Colmeia, como são conhecidos os presídios masculino e feminino do Distrito Federal, enquanto a vice-governadora Celina Leão (pP) assume o cargo de Ibaneis.

Na outra frente, a política, o petista conseguia fazer sentar à mesa no Palácio do Planalto as 27 unidades federativas do País, juntamente com todos os chefes dos demais Poderes: Rosa Weber, presidente do STF; Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e do Congresso Nacional; e Arthur Lira (pP-AL), presidente da Câmara dos Deputados. A cereja no bolo foi a caminhada extremamente simbólica que percorreu a praça entre as sede do Executivo e do Judiciário, o prédio mais destruído pelos vândalos extremistas. Uma fotografia com as principais autoridades rodaria o mundo como imagem emblemática da defesa da democracia do Brasil ante os ataques que mimetizaram o 6 de Janeiro de dois anos antes, no Capitólio, em Washington, nos Estados Unidos.

O intento primeiro da ação só aparentemente desordenada dos “vândalos desarmados” do dia anterior era instalar o caos no centro do poder, de modo a forçar com que Lula repassasse o comando das ações aos militares para controlar a situação, por meio de um mecanismo constitucional tal qual a Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Algo que, se assim ocorresse, no mínimo enfraqueceria o governo, ainda em processo de montagem, e no pior cenário efetivaria um golpe de Estado.

Quando tudo na cúpula do Planalto ainda estava no modo “barata voa”, a primeira-dama Janja da Silva foi quem pensou adiante, refutando de cara a ideia de GLO. Lula decretou a intervenção mais cirúrgica possível, apenas na Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, que estava então sob o comando de Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Jair Bolsonaro (PL). Ricardo Capelli, número 2 do sucessor de Torres, Flávio Dino, assumiu o cargo como interventor, atuando de forma dura para fazer o que era necessário.

Na tarde-noite do dia 9, Lula fecharia as ações antigolpe com chave de ouro, naquela reunião dos governadores. Na defesa da garantia do próprio mandato diante dos atos golpistas, seu maior trunfo foi ter no encontro a presença de Tarcísio de Freitas (Republicanos). Conquistar o governo de São Paulo tinha sido a principal vitória de Bolsonaro nas eleições de 2022 e, temendo a base radical de seus apoiadores, Freitas chegou a dizer que não iria ao encontro em Brasília, mas o clamor era óbvio e intenso demais para se omitir e, horas depois, ele voltou atrás e fez parte da foto.

Contrariando Karl Marx, a histórica reunião de emergência pela defesa da democracia diante de uma tragédia institucional se repetiu um ano depois como avesso da farsa

Passou-se um ano e já não existe comoção sobre o 8 de Janeiro. A cultura brasileira de pouca memória histórica e a desconstrução feita por uma versão conspiratória intensamente bombardeada por bolsonaristas nas redes sociais colaboraram para que a repulsa pela vergonha perpetrada se tornasse menor, como atestaram as pesquisas.

Foi nesse contexto que, contrariando Karl Marx, a histórica reunião de emergência pela defesa da democracia diante de uma tragédia institucional se repetiu um ano depois como avesso da farsa. Não exatamente por conta de Lula, como veremos, mas pelo fato de que, prioritariamente, políticos no Brasil – e o petista também se inclui aqui – pensam de acordo com as eleições e não de modo institucional. Ainda em dezembro, o presidente havia convidado os chefes dos demais Poderes e todos os governadores para “lembrar o povo que tentou se dar um golpe dia 8 de janeiro e que ele foi debelado pela democracia deste País”.

À época, a iniciativa foi prontamente aceita pelos todos os chefes dos demais Poderes. Porém, um dia antes da cerimônia, Arthur Lira ligou para Lula dizendo que não iria, alegando problema de saúde em família. Nenhum integrante da mesa diretora da Câmara dos Deputados compareceu para representar a Casa. E nenhum deputado discursou.

Na verdade, como muito convém ao viés pouco cívico construído durante séculos no Brasil, a proposta funcionou pela metade. No caso dos governadores, literalmente nem isso: dos 27, desta vez apenas 13 se sentaram com Lula e demais convidados. E o mineiro Romeu Zema (Novo) fez exatamente o avesso do percurso de seu colega Tarcísio em 2023: ele chegou a ir a Brasília, mas, pressionado pela própria base no partido, desistiu alegando que o evento se transformara em “ato político” e que seguia na capital federal para tratar da dívida do Estado. Ora, mas como não seria “político” um evento para defender a institucionalidade política, governador?

Um ano depois, a polarização segue firme e isso se refletiu na distribuição dos governadores presentes ao ato: do Nordeste, onde o PT venceu com Lula em 2022, somente esteve ausente Paulo Dantas (MDB), de Alagoas – não por acaso, o Estado da região que deu a maior quantidade proporcional de votos a Bolsonaro no segundo turno; do Sul e do Centro-Oeste, regiões em que a direita sempre tem vencido nas eleições presidenciais, compareceram apenas o gaúcho Eduardo Leite (PSDB) e a já citada Celina Leão, no momento governadora em exercício do DF.

A ausência de quase todos os governadores eleitos em oposição ao governo federal tem um olho nas próximas eleições, em outubro, o que é lastimável. O bolsonarismo continua sendo uma força que puxa a direita convencional para o extremismo, porque é inegavelmente dono de muitos votos. E o extremismo é exatamente o que se viu no 8 de Janeiro.

Em última instância, os governadores e autoridades como Arthur Lira colocam seus interesses acima das instituições. O que, no caso de alguns, não é nenhuma novidade, convenhamos.