Novo autoritarismo: Bolsonaro e Maduro na mesma irmandade de Putin

20 março 2022 às 00h00

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O principal fertilizante que o presidente foi buscar com Vladimir Putin é algo que possa fazer germinar no solo uma reeleição hoje complicada

Muita gente, de grande conhecimento do assunto e com muito mais gabarito profissional para tal análise do que este colunista, vem dizendo que a guerra na Ucrânia marca uma nova ordem mundial. Segundo esses estudiosos, a geopolítica global, a partir de agora, se altera de uma forma abrupta como não ocorria desde a queda do muro de Berlim.
Parece ser algo com bastante sentido, se é para pôr no calendário o 24 de fevereiro de 2022 – – ainda que estejamos no olho do furacão, sem ver o todo nem ter como garantir onde isso vai parar – como a efeméride-chave para o fenômeno que este texto vai discutir.
É que a data é um marco para um processo que já vem de décadas. Tem no protagonista do atual e tenebroso episódio, Vladimir Putin, talvez sua maior figura, mas longe de ser a única: a invasão russa finca de vez a bandeira do que poderia ser chamado, como contraposição ao universo das democracias liberais, de “novo autoritarismo”.
Com o processo de globalização consolidado, esta segunda Guerra Fria, que coloca de novo Estados Unidos e Rússia em polos antagônicos hoje – e “hoje”, para o caso, é uma palavra que deve ser lida com bastante atenção, como veremos mais abaixo –, não mais opõe modos de produção, como a primeira, em que se digladiavam o capitalismo de livre mercado e a economia planificada dos socialistas.
Esse novo autoritarismo, que agora literalmente avança sobre quem preza as liberdades ocidentais, une gente de espírito autocrático de todos os vieses políticos: por isso, é tão interessante perceber como sujeitos em princípio tão opostos, como Jair Bolsonaro (PL) e o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, podem nutrir igual simpatia pelo mandatário cujo governo esterilizou o fiapo de semente democrática da Rússia pós-União Soviética.
A questão é que Maduro e Bolsonaro – ainda que, em tese, se odeiem – são unidos entre si e ambos a Putin pelo caráter autoritário das próprias personalidades. O trio, como tantos outros governantes que lhes são semelhantes, constituem uma irmandade que, usando as urnas ou nem tanto, corrói as democracias mundo afora.
Não há nenhuma novidade no que aqui está sendo dito. Essa é a questão a que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, alertaram no essencial “Como as Democracias Morrem”. No livro, eles discutem como a eleição de alguém como Donald Trump se tornou uma realidade nos Estados Unidos da América, a autoproclamada terra da liberdade.
Para tanto, comparam o caso de Trump a exemplos históricos de ruptura democrática nos últimos cem anos, sendo a mais traumática, indubitavelmente, a ascensão de Hitler sobre a Alemanha da República de Weimar. Mas houve também Benito Mussolini, naquela conjuntura; o franquismo da Espanha e o salazarismo de Portugal; e, também, as ditaduras militares da América Latina; o franquismo nos anos 1930.
Mas a ideia central da obra de Levitsky e Ziblatt é que não mais se desfazem democracias à custa de tanques e bombas – e ainda que Putin pareça estar agindo nesse sentido, a especialidade dele é outra, como bem sabe o Partido Democrata estadunidense. Na grande maioria dos casos, não haverá uma condição drástica, por meio de uma revolução ou um golpe clássico, por exemplo.
O que faz o novo autoritarismo é atuar como uma doença crônica, intermitente, que vai aos poucos esgarçando o tecido social, e enfraquecendo aos poucos e constantemente a credibilidade das instituições do sistema político, especialmente as basilares, como o Judiciário e a imprensa. Nessa estratégia danosa, as bolhas das redes sociais e as fake news em modo industrial são as novas armas de combate.
E aqui voltamos àquele “hoje” de parágrafos acima. Hoje, com Joe Biden à frente dos Estados Unidos, percebe-se uma economia e um poderio outrora incontestáveis agora “passando recibo” de sua insegurança: o espetáculo histérico e irresponsável dos estadunidenses na liderança da reação da Otan à invasão russa remete à tentativa desesperada de recuperação da reputação perdida com a saída estabanada do Afeganistão, entregando o país de volta ao talibã que prometeram derrotar.
A sombra de Trump
À espreita do resultado dessa empreitada perigosa está Donald Trump, mais um da irmandade do novo autoritarismo. Se os ventos não mudarem de rumo e se Biden confirmar o mandato no máximo medíocre que vem conduzindo até o momento, é de se esperar que o atual presidente dê posse a seu antecessor em 2024.
Nesse caso, a conturbadíssima eleição de dois anos atrás, com direito à invasão do Capitólio, o equivalente ao Congresso Nacional brasileiro, terá sido apenas uma vitória de Pirro para os que rechaçam o autoritarismo. E, então, será bem provável que os Estados Unidos “desorganizem” o espectro da Guerra Fria que agora se instala: afinal, Trump e Putin fazem parte da mesma irmandade e ambos têm alta resistência ao multilateralismo, cujo maior entusiasta é a União Europeia.
Em meio a tudo isso, ainda no ano passado o grande mentor mundial da extrema-direita, Steve Bannon, deixou claro que as eleições brasileiras seriam o principal campo de batalha dos “conservadores” neste ano. Usando as palavras que um dia foram deturpadas da boca de Dilma Rousseff (PT), é bem provável que a máquina bolsonarista vá “fazer o diabo” para ganhar as eleições deste ano.
Para a internacional reacionária comandada por Bannon – um Foro de São Paulo às avessas –, os próximos quatro anos serão estratégicos para a tomada do Brasil para um avanço considerável na escalada do novo autoritarismo. É bom lembrar o que o próprio Jair Bolsonaro faz questão de não esquecer: o próximo presidente vai nomear mais dois ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF).
Interessante como isso é um bom indicativo sobre o “modus operandi” do novo autoritarismo: na era pré-Bolsonaro, a escolha de um novo integrante da Corte era algo tratado com importância, mas não como prioridade pela mídia e pelas redes sociais. Hoje, há movimentos organizados entre as diversas claques governistas para fazer lobby para este ou aquele nome.
Com essa reflexão, por esse ângulo, se entende melhor o que Bolsonaro foi fazer na Rússia. Pode ter discutido, sim, sobre a pauta do agronegócio. Mas o principal fertilizante que o presidente foi buscar com Vladimir Putin é algo que possa fazer germinar no solo uma reeleição hoje complicada.
Se no início da década passada, a Primavera Árabe fazia brilhar os olhos dos ocidentais, como se nações que tinham regimes políticos bem, digamos, heterodoxos pudessem aderir à democracia, a corrida se inverteu: países europeus e da América se preocupam cada vez mais com a perda de terreno para o novo autoritarismo.
Lá do fundo da sala onde tudo isso acontece, ficando só na observação e anotando tudo na caderneta, ninguém menos do que a China.