Morte de PM causa queda na cotação da vida nas senzalas contemporâneas

06 agosto 2023 às 00h01

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Talvez a situação social mais complexa que exista no Brasil seja a que envolve o narcotráfico e sua ocupação territorial de regiões com populações por si só já vulneráveis. O exemplo triste e clássico é o que se dá nos morros cariocas, cujos acessos são, em grande parte, controlados pelos chefões do crime organizado.
As mazelas de comunidades do Rio de Janeiro já viraram enredo de dezenas de filmes, entre curtas, longas e documentários. Se Cidade de Deus (de Fernando Meirelles, 2002) retrata como se dá uma disputa sangrenta entre quadrilhas do tráfico, Tropa de Elite (de José Padilha, 2007) mostra outra “interação”, no mesmo cenário, com a tomada de um morro de seus “donos” pela polícia dos batalhões especializados. Motivo: a visita do papa João Paulo II ao Rio, em 1997 – o filme é baseado em fatos relatados em A Elite da Tropa, livro do ex-comandante do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) Rodrigo Pimentel que mistura ficção e realidade.
Em ambas as situações, tanto nos filmes como na vida real, uma única certeza: quem mais sofre é a população local, que, como acertadamente disse o jornalista Maurício Ricardo em seu canal Fala MR – após mais uma ocorrência que gerou uma carnificina numa comunidade –, não formam um “condomínio fechado de criminosos” e moram em lugares assim não porque querem, mas por ser o que dão conta de pagar.
E qual foi a carnificina da vez? Na quinta-feira, 27, uma ação do grupo de elite da PM de São Paulo, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) na comunidade da Vila Júlia, em Guarujá (SP), acabou de uma forma nada agradável: a morte do soldado Patrick Bastos Reis, executado a distância por um atirador do crime organizado que comanda a região.
“Comunidades” são uma denominação mais moderna – e também um eufemismo – para “favelas”. Que, por sua vez, surgiram no fim do século 19 por causa do abandono social da população pobre, em especial dos negros após o decreto de abolição da escravatura. O Brasil República acabou com o Brasil Império, mas não com o sistema de castas que dele herdou. Ao contrário, os republicanos fingiram que o problema não era com eles e o quadro só se agravou.
Desde então – ou, poderia se dizer, desde sempre na história nacional, porque dá no mesmo –, os conjuntos de habitáculos onde se refugiaram essas parcelas de brasileiros foram vistos como extensões das senzalas, onde o senhorio da ocasião poderia não só transitar livremente como dar ordens e eventualmente estabelecer punições. No caso dos morros cariocas, os dominantes opressores se dividem entre os de Estado (a polícia e forças oficiais de repressão diversas) e as paralelas (milícias e narcotráfico).
Voltando ao caso do Guarujá, a morte de um PM em serviço por si só já causa uma imensa comoção na corporação militar. O assassinato de um policial em serviço por um criminoso catalisa essa revolta. E, se a execução é de um soldado do grupo de elite, é como acender um pavio ligado a um barril de pólvora: se sabe que vai explodir, mas não se faz ideia de quem será atingido. Numa situação assim, em que a sede de vingança transforma agentes da segurança pública em justiceiros fora da lei, tanto faz quem sofrerá, até porque desde o Brasil Colônia mortes nas senzalas têm o mesmo peso de mortes nos currais.
O saldo da explosão do barril? Até a quarta-feira, 2, ou seja, em cinco dias desde a morte de Patrick, 16 pessoas de Guarujá e da vizinha Santos também perderam a vida. É o “revide”, denominado de Operação Escudo. Os relatos de quem mora por perto são terríveis e foram feitos a uma comissão formada por políticos paulistas e operadores do Direito: deputados estaduais Eduardo Suplicy e Paulo Batista dos Reis, ambos do PT; Mônica Seixas, Ediane Maria e Paula Nunes, os três do PSOL; e representantes da Comissão de Direitos Humanos da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), da Defensoria Pública, da Ouvidoria de Polícia de São Paulo e do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania.
Os testemunhos dão conta de que PMs simplesmente abordavam pessoas que identificavam como egressas do sistema prisional ou com alguma passagem pela polícia e as executavam. Assédio contínuo, na rua ou dentro dos barracos, com violação da privacidade (até porque, se é senzala, privacidade pra quê?), e captura de gente sem nenhum mandado judicial ou argumentação. Um dos mortos teve o filho tirado do colo para ser em seguida executado, segundo quem presenciou. Alguns jovens foram espancados e outros, colocados em viatura para serem mortos em outras comunidades. Filipe do Nascimento, de 22 anos, trabalhava em uma barraca na praia e, segundo seu chefe, havia saído para comprar macarrão e acabou morto num beco, na segunda-feira, 31.
Quando os mortos contados ainda eram “apenas” dez, segundo a Ouvidoria da PM-SP, em uma coletiva na terça-feira, 1º, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) baixou esse número para oito e aproveitou para fazer uma defesa enfática da ação policial, mesmo depois da grande quantidade, fossem oito ou dez, de mortes. Ele se disse “extremamente satisfeito” com a Operação Escudo e chamou as mortes de “efeito colateral”, algo inevitável e que seria o preço a se pagar, já que “estamos enfrentando o crime organizado”.
Matar um PM é afrontar uma instituição. É como atacar a casa-grande. Então, o recado é: quem for da senzala que se prepare
O fato é que desde o dia 28 e pelo menos por cinco dias, cerca de 3 mil PMs de 15 batalhões atuaram na empreitada policial deflagrada na Baixada Santista. E enfrentar o crime organizado com tal intensidade virou questão de honra apenas depois da morte de Patrick, já que a operação foi deflagrada no dia seguinte à execução do militar.
Não se pode, de forma alguma, minimizar a morte de um trabalhador em serviço e Patrick era alguém cumprindo ordens de um superior no dia 27. Foi alvejado e abatido como numa guerra. Ocorre que, por uma tradição secular, ainda que a vítima tenha sido um assalariado do Estado, provavelmente de origem humilde, o soldado ali representava os detentores do poder. Matar um PM é afrontar uma instituição. É como atacar a casa-grande. Então, o recado é: quem for da senzala que se prepare.
Na visão de gente como o governador de São Paulo e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, ex-comandante da Rota – e tantos outros governadores e secretários da mesma linha –, a demonstração de força é necessária para manter o respeito às forças policiais. Na verdade, sempre confundiram respeito com medo, que é algo que a população em geral tem da polícia e que aumenta proporcionalmente ao nível de melanina na pele.
A Operação Escudo não vai acabar com o crime organizado em Guarujá. Assim como as intervenções nos morros do Rio, nem mesmo com as Forças Armadas, venceram o tráfico e a milícia. É a consequência de, lá “atrás, não terem acabado com as primeiras favelas. Não por repressão aos primeiros barracos, mas por políticas públicas que incluíssem a população pobre brasileira no orçamento do começo da República. O resto é história.